AZAEL, ANÃO PROFISSIONAL
Zanzava pela cidade, usando e abusando do vale de desempregado, para tomar todos os ônibus que me levassem para longe de mim, para longe de meu desespero. Não queria voltar para casa e encarar mulher, filhos e falta de comida. Espremia-me entre os corpos suados do fim da tarde, de olho em alguma carteira que pudesse bater, quando uns dedinhos miúdos tocaram meu braço. Olhei para baixo e vi uns olhos pequenos, num rosto grande e enrugado, um sorriso de dentes tortos, mas sincero. Estendeu-me um cartão. Enquanto tentava ler o que estava escrito, o ônibus parou e ele desapareceu entre os que desceram para a rua ainda molhada da chuva que caíra a cântaros há pouco. O cartão dizia apenas isto: LOGRADOURO DE AUSPÍCIOS. Embaixo, no canto direito, em letras miúdas: Azael, anão profissional. Atrás, um carimbo, com o endereço. Desci no ponto seguinte, uma praça. Sentei-me num banco e fiquei feliz de achar uma guimba pouco fumada de cigarro. Nesses tempos bicudos, as pessoas fumam até o filtro. Mas essa, não, estava quase inteira. Pedi fogo ao primeiro cara que passou, que me olhou desconfiado e não parou. Pedi ao segundo, que abriu o paletó, deixou ver o revólver no coldre sob o sovaco, tirou o isqueiro do bolso e acendeu, meio contrariado, o toco do cigarro na minha boca. Puxei fundo a fumaça e fiquei por alguns instantes pensando no que fazer. Como batedor de carteiras, era um fracasso. Escolhia muito e acabava sempre perdendo vítimas em potencial. Como lavador de carros, nunca recebia o que o freguês tinha prometido, me davam sempre menos. Também o serviço nunca se completava, os poucos trapos e o balde de água nunca davam para lavar o carro inteiro. Como flanelinha, levei carreira de gente mais antiga e não encontrei nem um pedaço de rua que já não tivesse dono. Acabava sempre levando para casa uns restos de comida de restaurantes, no fim da noite, mas era pouco, porque também aí a concorrência era grande. Me falaram da sopa distribuída aos mendigos no Largo Santa Cecília, mas era muito tarde da noite e eu não podia perder o último ônibus para a última rua do último bairro da zona leste. Então, só me restava... o quê? O desespero. A brasa do cigarro me queimou a mão, joguei fora o filtro, peguei do bolso do paletó sujo o cartão, revirei para lá e para cá, tornei a colocar no bolso, tirei de novo, conferi o endereço: era ali perto, duas travessas apenas. Já era noite, decidi conferir aquilo. Eu sabia o que era logradouro e sabia muito bem o que eram auspícios, já os tivera há muito em minha vida, não tinha culpa se agora estava daquele jeito. Estudara até o colegial, tinha uma profissão, até lia livros, ganhava o suficiente para sustentar a família, mas de repente não havia mais lugar nos elevadores para mim, todos os ascensoristas foram trocados por máquinas inteligentes, por botões que os próprios passageiros apertavam e os executivos engravatados do meu prédio nem devem ter percebido que eu e os outros ascensoristas já não mais existíamos, jogados na rua com um fundo de garantia que acabou logo, sem profissão, sem futuro, sem nada. Nesses pensamentos, já estava na rua que prometia um logradouro de auspícios, procurei o número, 17, logo após um muro branco, estranhamente branco entre dezenas de pixações, uma porta verde, a campainha no alto. Relutei. O que podia fazer ali, eu, um desempregado, sem um puto no bolso que não fosse o vale transporte que me levaria de volta ao buraco onde estava morando. E aquilo podia ser também um buraco negro, o meu túmulo, o fim do meu desespero. Pensei: melhor morrer com dignidade. Mas a porta se abriu, um sujeito enorme, todo de preto, me encarou, bravo, mas sorriu ao ver entre meus dedos o cartão. Sem que eu me desse conta, tomou o cartão, passou os braços sobre meus ombros e empurrou-me pelo oco da parede, escada abaixo.. Agarrei-me ao corrimão, para não cair, tentando enxergar alguma coisa. Não sei quantos degraus desci, mas no final topei com algo que parecia uma cortina de veludo negro, pesado, que fez cócegas em meu nariz. Tentei achar uma brecha, um jeito de afastá-la e nisso fiquei alguns segundos, mas logo o troglodita de preto me socorreu, e eu passei para dentro de um salão onde mulheres dançavam aos pares, ao som de um bolero, mal tive tempo de perceber um cartaz com a palavra OFICINA, e fui compelido pelo brutamontes a seguir adiante. Já no salão seguinte, havia apenas uma vitrina e, por trás dela, homens com máscaras negras pareciam masturbar-se e uivar para cima, para o que parecia uma lua de papel colada no teto, toscamente iluminada, planejadores anônimos, informou-me o gigante, cujo braço, atrás de mim, já me empurrava para a frente. Um corredor mal iluminado alongava-se para baixo, para baixo, e o ar se tornava sufocante. Dava numa porta onde estava escrito LOGRADOURO. O grandalhão bateu três vezes e a porta abriu-se para um salão enorme e iluminado com luzes coloridas, onde pessoas dançavam, jogavam xadrez, conversavam, bebiam, aos pares, aos trios, aos grupos, sem se perturbarem com a chegada de um estranho, no caso, eu. Tentei identificá-las, mas era impossível, seus rostos não tinham expressão, ou eu não conseguia distinguir traços que me pudessem orientar ou, quem sabe, achar algum sinal de compreensão, de empatia. Nada parecia fazê-las despertar para qualquer outra coisa que não fosse o seu próprio prazer ou sei lá o que estavam sentindo, naquele mundo de estranhos que se confraternizavam.. Também sua conversa era-me inteiramente ininteligível. Soltavam sons, grunhidos que vagamente lembravam palavras ou sílabas que eu pudesse reconhecer. Podiam estar falando qualquer língua ou uma algaravia qualquer de sons que, estupidamente, tinham combinado como código. Não queria permanecer ali, mas quando me voltei para procurar o porteiro grandalhão, este já se havia retirado, não sei por onde, porque não descobri nenhuma porta por onde se pudesse sair, embora tivéssemos entrado por uma. Pensei em interrogar alguma daquelas pessoas, mas desisti. Não estavam interessadas em mim ou não me enxergavam. Dirigi-me ao bar que havia num canto, porque, afinal, se havia pessoas bebendo, eu queria beber também, seja o que fosse, a minha garganta estava seca e eu sentia um pouco de fome. Ao me aproximar, a figura que atendia as pessoas olhou-me um instante e logo ofereceu-me um copo e um pequeno prato com acepipes. Tomei da bebida e me senti bem, comi avidamente o que me serviram e também gostei. Só não consegui saber o que bebia e o que comia. Logo havia pessoas em torno de mim, com quem entabulei uma conversação estúpida sobre o tempo, a chuva que caíra, mas não me lembro dos sons que saíam de suas bocas nem de como eu conseguia falar com aquelas criaturas, algumas muito bem vestidas outras nem tanto. Entre elas, umas duas mulheres até interessantes, em seus vestidos longos, mas de cujos rostos eu não conseguia definir os traços, para dizer se eram novas ou velhas, feias ou bonitas. Eram apenas mulheres. Também os homens não pareciam ter traços definidos, embora, no meu machismo, não os olhasse atentamente. A conversa prosperou um pouco, ainda naquela algaravia de sons e ruídos que saíam de minha boca e entravam por meus ouvidos, e depois morreu, mas uma das mulheres tomou-me pela mão e levou-me ao centro do salão onde dançamos ao som de uma música que julguei conhecer, mas não sabia bem qual era, num ritmo lento e aconchegante, que acabou por me dar um certo cansaço e uma vontade de estar em casa, com meus filhos, com minha mulher, mas ao mesmo tempo algo me impelia a dançar mais e mais. E assim ficamos, por não sei quanto tempo. Sentindo que a própria dança se esgotava, a mulher conduziu-me delicadamente para um canto do salão onde havia uma mesa e duas cadeiras. Sentamo-nos e ela alisou minha mão, olhou-me nos olhos e eu pensei até mesmo perceber um laivo de ternura por trás daquele rosto sem expressão. Conversamos mais um pouco. Bebemos. As horas ali passavam pesadas, plúmbeas, num ambiente que parecia arrastar a todos para um desfecho de fim de baile, quando os bailarinos exaustos dobram os joelhos e imploram ao maestro que pare a orquestra para que consigam respirar um pouco. Haviam chegado várias outras pessoas, sem que eu percebesse. O salão estava, agora, quase lotado. Não havia, no entanto, nem ansiedade, nem animosidade entre as pessoas, todas elas muito solícitas umas com as outras, como se esperassem um acontecimento inusitado que as tirasse daquele estado entre o torpor e a vontade de agitar, de fazer coisas incomuns. Só então notei que minha roupa, suja e puída aqui e ali, fora substituída, sem que eu me desse conta de como isso acontecera, por um traje bastante decente, preto como o de todos os demais, porém com alguns detalhes dourados que me chamaram a atenção, não por muito tempo, porque em seguida um gonzo ou algo assim soou de repente e uma porta deslizou ao fundo e um holofote iluminou o anão que me dera o cartão com este endereço. Estava transfigurado, sob as luzes, sua fisionomia irradiava prazer e alegria que a todos contaminou, pois se ouviram de todas as bocas expressões de surpresa e felicidade, seguidas de uma longa ovação, que ele agradeceu, curvando-se até tocar a cabeça no chão, o que me deixou absolutamente encantado, pois não podia imaginá-lo com tal destreza, já que seu corpo pequeno e roliço não parecia propício a tais exageros. Vestia um terno reluzente, cuja cor não consegui identificar, e trazia no pescoço um lenço vermelho, espalhafatoso, preso com um medalhão antigo, desses que as mulheres do século dezenove deviam usar para prender ao colo os lenços ou xales que então se usavam. O anão, sem dúvida, encantou a todos com sua aparição e seu charme. Disse algumas palavras que eu entendia como algo que se referia a mim, sem que eu pudesse saber exatamente o que é que ele estava dizendo, eram palavras elogiosas, de boas vindas, mas me chegavam como um ruído distante, como se não tivessem nada comigo, entorpecido que estava pela bebida, pela atmosfera do lugar, pelas luzes e pelo cheiro suavemente doce que emanava das pessoas, das comidas e das bebidas. Quando consegui finalmente ligar os sons que saíam de sua boca com o conteúdo do que pareciam palavras dirigidas a mim, já o porteiro de cara fechada me havia conduzido até o anão, que me tomava pelas mãos e, com aquele passinho trêfego de todas as pessoas que têm as pernas bem mais curtas do que deveriam, me conduzia para dentro de uma imensa caverna que se escondia bem atrás da parede negra do fundo do salão. Antes que a porta deslizasse suavemente e se fechasse para sempre atrás de mim, ainda pude ouvir os aplausos e os vivas dos demais participantes daquele sabá misterioso, desejando-me muitos augúrios. Finalmente, pensei, bons auspícios pareciam cair sobre mim, nessa minha vida de busca desesperada de um futuro melhor para mim, para meus filhos e para minha mulher, sem que eu precisasse ficar zanzando pela cidade, como um zumbi, à procura de trabalho e de comida. Porque, agora, estava sob os cuidados de um anão, não de um anão qualquer, mas de um anão profissional.