Os três farelos

Se encontraram por acaso do destino. Estavam ali, soltos. Dois começaram a conversar

-Faz tempo que vc está aqui? - perguntou Farelo 1

-Não sei - Farelo 2 não tinha muita noção do que era tempo, mas a resposta "não sei" era uma saída digna pois não deixava claro sobre do que se tratava sua ignorância e poderia se tratar de quanto tempo e não do que poderia ser o termo tempo.

-Parece que sempre estive aqui. - disse Farelo 1

-Eu também - pelo menos nesta resposta Farelo 2 não sentiu culpa, pois não tentava enganar ninguém: era o seu sentimento real e começava a compreender o significado de tempo ou pelo menos que "sempre" era uma das suas gradações.

Os farelos olharam mais ao lado e viram outro farelo, este um pouco diferente - era amarelo, tinha umas tiras brancas e estava meio que olhando de cima os outros dois.

Farelo 2 tentou puxar conversa com a pergunta já tinha aprendido:

-Faz tempo que você está aqui?

Farelo 3 com uma cara de empáfia disse:

-Não costumo conversar com estranhos...

-Prazer, sou Farelo de Pão.- respondeu inocente Farelo 2.

Farelo 3 que vinha de um bolo de abacaxi com cobertura de côco ralado respondeu:

-Nem com ralés conhecidas.

Farelo 1 que percebeu a maldade disse para Farelo 2:

-Deixe os soberbos de lado. Eles estão fadados a serem solitários.

Farelo 3 olhou ao redor e, não vendo outro farelo da sua qualidade, repensou sua atitude.

-Desculpem meu jeito. Muito dele vem da minha educação e da riqueza dos meus ingredientes. Ser melhor não me impede de manter um diálogo com seres mais simples. Agora respondendo, sempre estive aqui - sim, desde que se conhecia por farelo.

Farelo 2 sempre mais inocente ouviu com bons ouvidos o que disse Farelo 3, já Farelo 1 percebendo a maldade disse:

-Por favor não perca seu precioso tempo. Você deve ter coisas melhores para fazer ou não?

Farelo 3 sentiu a estocada e ainda que pudesse sair com uma resposta sobre filosofar ser melhor do que conversa fiada, de nada adiantaria as conclusões de sua filosofia se não tivesse ninguém para compartilhar.

-Não por isto, considero um investimento conhecer e procurar compreender a alma e como pensam os que tem construções mais simples.

Farelo 2 ficou começando a pensar que Farelo 3 era um farelo meio metido. Farelo 1 não tinha dúvidas.

-Construção mais simples não, mais pura, pois tem seres que tem muita mistura e isto acaba por confundir seu discernimento.

-Pois sempre entendi que a diversidade é produtiva e o simples é simples, mesmo que queiram batizá-lo de puro - retrucou Farelo 3.

-Olha só quem diz valorizar a diversidade e à pouco não queria conversar com diferentes...

Farelo 2, que era da paz disse.

-Que tal de focarmos no que temos em comum e termos uma convivência agradável?

-Concordo- disse conciliador o Farelo 3.

-Ok- concordou meio contrariado o Farelo 1 - Estamos nesta mesma área - já buscando algo que dizia respeito aos 3.

-Sim e no mesmo tempo - disse feliz Farelo 2, que começava a entender e utilizar o significado de tempo.

-E apesar de formar um grupo, somos únicos quis completar Farelo 3.

-Ué, pensei que íamos procurar coisas em comum e você vem dizer que somos únicos, ou diferentes? - já retrucou Farelo 1, mesmo sabendo que o incomum podia ser considerado algo em comum.

-Tentei ser agradável como sugeriu o Farelo de Pão...

-Um pouco de boa vontade de todos será melhor – concordou Farelo 2.

-Ok - concordou por fim, abaixando as armas Farelo 1 – o que vocês pensam desta planície onde nos encontramos? Talvez nossos sentimentos também guardem coisas em comum. Eu as vezes penso que é infinita.

Sem querer quebrar o clima bom que começava a se formar Farelo 2 pontuou com muito cuidado:

-Na verdade nunca sai daqui e também desconheço as fronteiras deste desconhecido, mas quiçá não teria um limite?

Farelo 3 parecia mesmo disposto a tornar mais agradável a conversa e buscou o ponto em comum:

-Pois é, vocês dois e também eu tenho dúvidas sobre nosso espaço. Às vezes penso infinito, as vezes penso que existe algo além.

Farelo 1 percebia a boa vontade e disse:

-Também penso no além, mas num além não só deste espaço, mas também deste tempo, desta dimensão...

-Verdade, penso também se nossa existência teria algum sentido maior – falou Farelo 3. Farelo 2 ficou meio perdido nos seus pensamentos, buscou na fé algo para tentar explicar o vazio deixado pelas questões racionais:

-Com certeza tem. Mesmo este nosso encontro acho que não é casual e sim causal ou seja está inserido dentro de um plano maior que ainda desconhecemos mas que já existe.

-Será? – disse meio cético Farelo 1. Farelo 3 concordou com Farelo 2:

-Também acho. Tudo deve ter um significado maior. Não foi por acaso que eu encontrei vocês. Talvez para me melhorar como farelo. Talvez vocês façam parte de um arquiteto divino que quer ver nossa evolução.

-Vocês acreditam mesmo que tem um ser superior que está olhando para nossas vidas e dando meios para guiá-las através de um caminho de evolução?

-Acredito! - disse de pronto Farelo 3.

-Penso ser bem provável. – confirmou Farelo 2.

-Então vocês acham que neste momento tem alguém olhando para a vida de três farelos? Esta nossa existência não vale nada.

-Farelo de pouca fé – falou num tom de repreensão Farelo 3 – teu ceticismo é sujeira aos ouvidos do ser supremo.

-Tu não tens medo do castigo divino? - Farelo 2 também procurava balançar os alicerces da certeza da incerteza com que Farelo 1 falava.

-Mas divino para mim é um conceito de coisa boa, assim como supremo. Por que estaria numa mesma frase com castigo?

-Ser mal agradecido com castigo podem andar na mesma frase. Você não acha boa a sua vida? – apertou Farelo 3.

-Eu não questiono a vida eu questiono o sentido da vida e quando que ter dúvidas seria sujeira aos ouvidos de quem quer que seja?

Nisto ouviram uma voz de trovão:

-QUANTA SUJEIRA!

Farelo 1 ficou assustado. Farelo 2 e Farelo 3 o fitavam com olhares de raio laser que queimavam sua dignidade.

Quando Farelo 1 ia prostrar-se e gritar perdão pela sua falta de fé, ouviram a voz te trovão falar de novo:

-É A ÚLTIMA VEZ QUE EU LIMPO ESTA MESA!

E os três farelos viram surgir no horizonte um monstro que deslizava pela planície em sua direção. Num formato de concha foram arrastados até uma borda (sim a planície tinha um limite), onde outro monstro em concha os esperava. Foram sendo levados e viram outros universos: Planícies, vales precipícios. Viram um buraco negro se abrindo onde um mau cheiro forte reinava. Os monstros ficaram frente a frente e com movimentos paralelos assimetricamente coordenados largaram os três farelos. Um conformado, arrependido pelas suas crenças e outros dois gritando contra as injustiças do ser divino.

Não sei se tem vida após o lixo, mas depois que fechei a lixeira nunca mais ouvi falar dos três farelos.