A preleção
Outra característica do clã Gajda eram os casamentos coletivos; não importava a quanto tempo o relacionamento estivesse ocorrendo, os casamentos sempre eram realizados em grupos, cerca de quatro vezes por ano. Após a cerimônia, os noivos eram oficialmente incorporados aos Gajda, renunciando previamente aos seus clãs de origem. E, momento aguardado por muitos, incluindo Ilko, preparavam-se para receber uma preleção sobre o seu papel numa sociedade matriarcal. Reunidos no grande salão comunal no centro da aldeia, os noivos, sentados no chão de terra batida, ouviam atentamente as palavras da matriarca Vidna, sentada num estrado diante deles.
- Há muitos e muitos séculos, - principiou a falar Vidna - o clã Gajda era formado unicamente por mulheres guerreiras que viviam nas florestas do norte e que não admitiam homens em seu meio; sequer como escravos.
Alguns dos presentes fecharam a cara ao ouvir isso.
- Mas vocês devem estar imaginando que ao menos para reprodução as mulheres precisavam dos homens, não é mesmo? - Vidna parecia estar se divertindo ao pronunciar aquelas palavras. Depois, balançou negativamente a cabeça.
- Não mesmo. As Gajda eram guerreiras justamente porque precisavam trazer mulheres de fora... meninas, quase sempre... para serem instruídas e se tornarem membros do clã. Então, as incursões contra as vilas de camponeses ao redor das florestas ocorriam uma ou duas vezes por ano, dependendo da nossa necessidade de completar as fileiras. E também havia aquelas mulheres que fugiam dos homens e iam se juntar a nós.
Como alguns dos noivos parecessem incrédulos, ela acrescentou, enfatizando as palavras:
- Isso acontecia o tempo todo.
E, fazendo um sinal para que uma criada lhe trouxesse uma taça de hidromel:
- Não precisávamos só de guerreiras, mas de todos os serviços que as mulheres normalmente desempenham quando têm de conviver com homens. Só que, entre nós, todas éramos iguais.
Tomou a bebida sem pressa, enquanto prosseguia na preleção.
- Aquelas que queriam ser Gajda sabiam que tinham que deixar para trás todos os homens que haviam feito parte de suas vidas: pais, maridos, amantes e filhos. E que esse era um caminho sem volta: a sociedade dos homens não as aceitaria de volta, e a morte era a consequência mais provável para quem traísse o clã.
Acabou de beber e devolveu a taça à serva, que retirou-se com uma vênia para a matriarca.
- E por que nós paramos de agir como guerreiras impiedosas, que não toleravam homens? - Inquiriu retoricamente Vidna Gajda. - Porque, dentre nós, surgiu aquela que falava pela deusa Punótcha... Zorana!
Tocou a testa ao pronunciar o nome da mulher santa, no que foi seguida por todos os presentes.
- Ela nos revelou que Punótcha lhe aparecera num sonho e disse que era chegado o momento de parar de tratar as aldeias dos homens como se fossem gado selvagem, pronto para ser abatido. Os homens deveriam ser trazidos para o nosso meio e domesticados.
E com o dedo em riste para os noivos que ouviam em silêncio reverente:
- Vocês, hoje, fazem o que as mulheres das aldeias faziam outrora: vêm até nós em busca de proteção.
Ainda que algum dos homens pudesse contestar, o que não seria prudente, a verdade é que a maioria deles estava ali pelo prestígio outorgado pelo fato de pertencer ao clã Gajda; mesmo que como cidadãos de segunda classe.
- A deusa Punótcha nos disse ainda que se trouxéssemos homens para viver e se deitar conosco, daríamos à luz apenas à mulheres, eliminando a necessidade das incursões para roubar as filhas dos camponeses.
Levou a mão ao queixo, pensativa.
- Claro que, quando ouviram de nós essas boas novas, os vilões a princípio não creram nelas; não os culpo, acostumados que estavam a serem pilhados ao longo de incontáveis gerações. Mas perceberam que algo havia mudado quando permitimos, pela primeira vez, que as mulheres que nos procuravam, trouxessem seus filhos homens.
Vidna ergueu-se lentamente de sua cadeira de armar, colocada sobre o estrado.
- Vocês foram escolhidos para ingressar no clã Gajda pela contribuição que podem dar à expansão das nossas hostes - declarou, encarando os rostos silenciosos abaixo dela, à esquerda e à direita.
E abrindo os braços para um efeito dramático:
- O nosso objetivo, que fique bem claro, é que todos os outros clãs desapareçam... e que nós, Gajda reinemos sobre a humanidade!
- [Continua]
- [01-08-2022]