MECSTAR — O APRENDIZ DE HERÓI • 6

• Capítulo 6 - Rök •

O impacto da queda da nave foi tão forte quanto imaginei que seria. Fui jogado para o teto e em seguida para o piso umas duzentas vezes, e bati com o nariz em ambos os lados em todas elas menos uma — no fim meu nariz estava mais vermelho que as luas de Danatinóia. Duas portas de emergência abriram-se assim que paramos de girar. O Sol do meio-dia entrou por elas rasgando a cortina de poeira que tinha se erguido lá dentro.

— Paramos, mestre, veja, paramos! — Anunciou a voz do coelho piloto que aparentemente não sabia dizer nada mais óbvio que penas em galinhas.

Alguma coisa me dizia que eu tinha que aproveitar aquela oportunidade para fugir. Não obstante, lembrava claramente do capítulo 9 do meu manual heroico, que era intitulado Como Fazer Fortuna dos Infortúnios. No parágrafo 7, sob o subtítulo Oportunidades Disfarçadas, dizia o seguinte:

Em situações em que uma virada inesperada o der exatamente aquilo que você mais precisa no momento, você terá duas opções: aproveitar bem a situação, isto é, pegar o que lhe for oferecido ou você poderá optar por fazer o melhor. Fazer o melhor, neste caso (e na maioria deles — se quiser saber mais sobre o assunto sugiro a compra do meu livro “Estratégias Heroicas — Por Que Não Fazer Apenas Uma Simples Limonada Quando a Vida lhe der Limões?”, distribuído em todo o multiverso nas melhores dimensões galácticas pela editora Sunstorm), refere-se a rejeitar a saída obvia. Por trás de uma sugestão lógica, evidente, e, aparentemente, arrebatadora, sempre há uma opção ainda melhor escondendo-se por trás dela, ou de você mesmo. Por isso, sempre em que uma oportunidade dessas o for oferecida, olhe em volta com atenção, rejeite a boa saída e busque a melhor. Faço apenas uma ressalva aqui: a melhor é, no geral, um seguido de vinte e oito zeros por cento menos segura).

Ciente desta sabedoria heroica, olhei em volta onde tudo estava revirado e, exatamente como dissera meu querido manual, lá estava ela. Em toda minha curta vida como Svam em Solavanco, nunca imaginei que veria algo tão belo e valioso. Lá estava a joia cobiçada por todos os grandes conhecedores dos segredos do multiverso. Talvez você possa duvidar, caro leitor, mas o digo com toda honestidade heroica que possuo lá estava uma Bola de Gude Carambola. A espiral misteriosa emitindo uma luz azul, vermelha, verde e amarela, dentro de uma esfera de vidro, que rolava vagarosamente alternando raios de luz coloridos. Confesso que a cobicei. Desejei tê-la em minha posse e fugir dos dois malucos espaciais, Bongo e Re-Claw, para um futuro rico e cheio de prestígio.

— Ora, mas que berinjela sem sal! — Ouvi a voz do Reclamão. Corri desajeitadamente pelo que eu esperava ser o piso da nave, apanhei a esfera brilhante, que devia ter uns 4,2 centímetros de diâmetro, e pulei em direção à saída. Ela brilhava ainda mais na luz dos três sóis. Quando olhei em volta, de pé sobre a nave, avistei muitas coisas inesperadamente inusitadas. De forma que meu cérebro, como todo bom cérebro em situações como essas, quase entrou num colapso brando implorando por uma poltrona confortável, num ambiente devidamente climatizado e uma TV 4K exibindo paisagens naturais.

A primeira das coisas que percebi foi que estivera voando numa cebola. A nave não apenas tinha cheiro, ela tinha a forma de uma cebola. A segunda coisa foi que não havia sinal da nave-abóbora de Bongo, como o Reclamão suspeitara — havia uma nave, a uma distância que meu cérebro ainda não estava preparado para discernir, mas que não tinha nada de aboboresca. A terceira foi que tínhamos caído (ou aterrissado forçosamente, como talvez dissesse o coelho piloto) em uma espécie de areia movediça. A quarta foi que a cebola já estava quase completamente submersa naquela pasta, gosma, ou sei-lá-o-quê. A quinta e a sexta percepção vieram de mãos dadas, juntinhas. A quinta foi que alguém montado num dromedário de duas corcovas, nove caldas e nenhum nariz, lançou um laço de corda para mim, que já me circundava na altura do tórax, por baixo dos braços que estavam erguidos no momento para abrandar a luz nos olhos. A sexta, que não foi a pior delas, foi que uma mão com garras vinda da entrada da nave cebola, agarrou-se ao meu tornozelo. A sétima, que ainda não foi a pior, foi de que, sendo puxado por cada uma das extremidades em direções opostas, não precisava ser nenhum pós-graduado em exatas para saber que iria ser dividido em dois, ter a vida subtraída em menos um, e ser reduzido matemática e dolorosamente a nada.

Eu já estava submerso até a cabeça, naquela lama nojenta, apenas os dois braços de fora, um aferrando-se à corda, o outro tomando o máximo de cuidado para não deixar a Bola de Gude Carambola cair, quando senti uma movimentação brusca abaixo, e então a mão que puxava meu tornozelo finalmente me deixou, deixando um arranhão com cada garra, ao fazê-lo. Fui arrastado até a margem daquele mar de...

— Fezes. — Disse a pessoa que acabara de me salvar. — Ah, sim. Fezes de búfalo tricórnio... pode crer, sei do que estou falando. — Acrescentou, vendo minha expressão cética, já descartando a corda que me resgatara como imprópria para usos futuros. E essa, meus amigos, foi a oitava e tardia percepção — e a pior.

O sujeito que me salvara de afundar nas fezes de búfalo tricórnio era um gafanhoto marrom do deserto. Por sua vestimenta, era uma espécie de cowboy, invejei um chapéu como o dele — com dois buraquinhos com ilhoses de metal, por onde passavam duas antenas de gafanhoto — para proteger minha cabeça dos sóis. Ele mascava uma folha de capim com o canto de sua boca irrequieta.

— Quem é você e por que me salvou? — Perguntei, a fim de ganhar tempo para esconder a bola de gude no meu colete, no bolso do lado oposto ao que estava meu querido manual.

— Um xerife, é claro, não tá vendo, não? — Ele apontou para a estrela prateada que trazia no peito. — Me chamo Rök. O prazer é seu, afinal, não há prazer em interceptar vagabundos fora-da-lei, e depois ter de resgatá-los. Sou eu quem põe as coisas em ordem no Deserto do Eco Rouco, rapaz.

O dromedário de duas corcovas arrastava atrás de si um carrinho com uma grande e provavelmente poderosa arma.

— Ah, então foi você quem atirou na gente?

— Nããão! Foi uma careca toupeira dentuça! Mas é claro que fui Rök, o deserto derreteu seu juízo?

— Mas por quê, Rök?

— Por causa da lei, uora. Tavam acima da velocidade permitida de 763 quilômetros por hora.

— E nós estávamos acima disso? — Perguntei, mais pela surpresa do que pela dúvida.

— Estavam a exatos setecentos e sessenta e três quilômetros e meio por hora.

— Ah, saquei... e por que me salvou então?

— A lei. Ou o cumprimento dela, como queira. — Disse, cuspindo e fazendo uma careta de gafanhoto — Para que o infrator possa pagar pela infração é preciso que ele esteja vivo. Se o fizéssemos pagar mortos seriam uma ferida aos direitos legais mortuários estaduais, federais e internacionais dustmundenses-galácticos.

— Hum, entendi. Mas que bom, nossa, nem sei como agradecer, cara, digo, xerife Rök, você apareceu na hora certa, nem imagina... à propósito, sou Mecstar, o maior herói de Bolaranja, bem, talvez não ainda, mas serei, estou numa de minhas missões mais importantes e...

— Sim, claro — Disse Rök, sem ao menos dirigir-me atenção com seus olhos castanhos âmbar semi transparentes, enquanto retirava uma corda nova de uma bolsa perdurada no dromedário de duas corcovas, nove caldas e nenhum nariz. — Agora estenda as mãos para que eu possa amarrá-las, sim? Não quero usar violência.

— Me-me amarrar? Com-como assim?

— Como assim? Você se diz herói e não sabe que o primeiro passo para captura é amarrar o capturado?

— Mas o que eu fiz? Ah, é a nave? Não é minha, cara, Rö-Rök, meu irmão, xerife, acredite, eu nem sei pilotar uma... uma cebola! Dá pra acreditar? Eu nunca pilotei uma cebola na vida...

— Isso você vai dizer ao juiz, e é melhor ter um bom advogado — bem, melhor para sua liberdade, pior para o seu bolso, e pior ainda para sua saúde psicológica.

— Eu era prisioneiro do cara lá, do dono da nave, o Re-Re-Claw Mão, era ele, bem, na verdade era um coelho idiota, mas a mando dele, que estava pilotando.

— E como era esse tal de Rerreclamão?

— Eu não sei, não deu...

— Estenda as mãos, infrator. Não resista à lei.

— Você tá ouvindo o que estou dizendo?

— Sim, claro, por isso mesmo. Espera que eu acredite que era o prisioneiro de alguém que não sabe como ele era e que, além disso, não estava amarrado? Rök não é idiota, sacou, meu chapa? Xerife Rök pode ser tudo, menos idiota! — Ele jogou o capim que mascava no chão seco, pisou sobre ele em seguida e me encarou com uma expressão simpática como concreto.

Dez minutos após, estava eu, como as mãos e pernas amarrados, sendo levado como prisioneiro por um gafanhoto casca grossa, em cima de um dromedário de três corcovas, nove caldas e nenhum nariz, me perguntando o que o manual heroico dizia sobre situações como esta e onde estaria aquela lesma gorda estelar do Bongo.

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 21/07/2022
Reeditado em 08/09/2022
Código do texto: T7564891
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