CRIPTÔNIMO



Minha vida é quase um conto – este; do qual não serei mais que personagem e narrador. Ricardo Zéus Júnior – também chamado Zeuzinho.
Já meu mais eminente ancestral, o velho Ricardo Zéus, esse nunca foi nem personagem de conto; foi antes um heterônimo.
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Segundo o reverendo J, grã-chanceler do orfanato onde vivo, um discípulo do renomado poeta Fernando Pessoa, apaixonado por seu heterônimo Ricardo Reis, teria achado de criar um Ricardo ainda mais rei – porque Zéus, quase Zeus: o rei de todos os reis e de todos os deuses helênicos.
E tal criação viria a ser o galho principal de minha árvore genealógica.
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Mas do heteronimado velho não trago muitas lembranças; embora elas insistam em atrair-me à poeira do quem sou, de onde vim, pra onde vou.
E se do pra onde vou ainda há muito a descobrir, dados meus poucos idos, quando penso no quem sou e no intermitente de onde vim, a pena do autor do conto determina-me que em verdade eu já ando bem abastado de tempo, e minha origem e existência serão mesmo só lembranças – reminiscências.
Recordações, como as que fizeram o cidadão português reverendo J garantir-me, que eu jamais estaria imune às influências da abstração poética geradora de meu antepassado Ricardo Zéus.
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Ao contrário da maioria das crianças que conheci, a mim nunca me tocou fazer muitas perguntas.
Não sei explicar, mas desde sempre as poucas respostas de que precisei, encontrei-as cá comigo, quase em silêncio.
Minha voz pálida de garoto de orfanato sem visitas jamais quis questionar os meus começos, ou as razões do meu jeitão isolado.
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Naquela noite, porém, quanto mais o reverendo falava, mais e mais ele ligava-me os fios da curiosidade.
Sua conversa calma penetrava-me no íntimo, sugerindo-me respostas que eu jamais pensara em ter.
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Quase sempre trancado no gabinete, ou ajoelhado em sua capela particular (quando não estava viajando), o reverendo J era visto pelos internos com muito pouca freqüência.
Quando isso ocorria, revelava-se um homem distante; econômico nas palavras, e com um tom meio de velório até mesmo com os mais afins.
Se chamava um de nós para uma entrevista, era o desligamento, ou no mínimo uma bronca muito séria.
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Discreto, avisara-me que o esperasse em meu quarto após o horário da TV, o que deixou-me apreensivo e ao mesmo tempo aliviado – podia ser uma daquelas broncas, e era preferível que ninguém soubesse.
Ou, se fosse para me despachar de vez, Paciência!
Eu não tinha para onde ir, mas também já estava cheio daquela vida sem sal.
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Findo o jantar achei melhor nem ficar para a TV; fui rapidinho pro quarto – vê se dava uma ajeitada na bagunça.
Para impressionar, arrumei e rearrumei as mesmas coisas o melhor que pude; depois recostei-me na cama já muito ansioso.
Talvez impressionasse mais ser encontrado lendo a Bíblia, mas não achando meu exemplar de ocasião insisti na idéia da leitura, passando a folhear um livro velho e amarelado, perdido numa gaveta desde que ali me instalaram. Nunca me interessara por aquilo, era um volume de poesias, mas gostaria que o reverendo me achasse a ler um troço sério, e aqueles poemas cheios de palavras pomposas, com sotaque português de Portugal, vinham a calhar.
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Pois, pois!
Meu aparente interesse pelas belezas da palavra poética, meu folhear inocente num livro que era não menos que o clássico Mensagem, do dito Fernando Pessoa, fez com que o reverendo se pusesse a desfiar minha linhagem.
Depois de elogiar-me o gosto da leitura e o fato de não achar-me a ler a bíblia, como fariam os outros para impressionar, falou-me longamente sobre o poeta português, e enfim apresentou-me à memória do discípulo criador de meu velho ancestral.
Conheceram-se pesquisando a obra do mestre, e depois de alguns encontros casuais, acabaram cultivando uma amizade sincera e enriquecedora, fundada, entre outras coisas, na apreciação da boa literatura, ...; e etc, etc.
Foi meu primeiro contato com os nós de minha essência; o que, como eu disse, ligava-me os fios da curiosidade.
Mas a calma da conversa, em vez de trazer respostas que anunciassem-me paz, estranhamente fazia-me sentir o desespero das personagens aprisionadas às vontades de um autor; desespero que aos poucos foi tornando-se desamparo, carência de um ancestral com menos letras – feito de carne e osso.
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O velho e sensível padre parecia converter-se na imagem inesperada de um paisão, quase a ninar o frágil filho.
E a penumbra do ambiente parecia preparada para a cena.
Até que minha carência infantil foi me fechando os olhos, levando-me para um de onde vim que abraçava-me o sono.
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Os olhos bem mais fechados, e a voz... era uma voz delicada.
A voz de um pai protetor a aquecer-me os ouvidos.
Já não era importante o conteúdo das palavras; bom era o sentimento.
Eu era criança mesmo; numa cama aconchegante, com o olhar apagado e uma voz sobre mim.
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Minha excitação juvenil clamava pelo abraço: o beijo de boa noite, o toque, o contato do carinho daquela voz envolvente.
E a segurança do homem o fez tocar-me com calma – eu era a criança dele.
O carinho se encorpando, o toque se refazendo, e a voz doce dando o timbre do concerto.
Voz e mãos de padre, de pai, de homem.
Dedos simples e jeitosos a invadirem-me o pijama.
Boca de homem mais velho, revelando outra fala a resvalar-me o corpo, molhar o sul do semblante mordendo-me a cor dos lábios.
Era o sonho inesperado.
Eu e o “pai” reverendo; um garoto, o outro homem – à procura do afago, do calor.
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Meu pinto franco e fértil correndo-lhe pelos dedos; e ele a puxar-me o tato pra dentro de sua quentura.
Até nascer o aperto, o ritmo; e o pinto inteiro do padre envenenar minhas mãos.
Dois pintos se lambeijando, duas bocas mal se mordendo, e um sonho quase sublime ensaiando abortar o gozo impune.
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