Diana

Chovia há tanto tempo que a humanidade já havia se esquecido de como era o sol. Os poderes do fogo eram escassos e os que o dominavam estavam quase em extinção. As Ondinas tomaram o poder por um momento de fraqueza do povo do fogo. Outrora poderosos, deixaram-se enganar pelo orgulho, desprezaram os demais elementos, então foram derrotados. A montanha sagrada foi apagada e os filhos do fogo caçados e mortos. Os que sobraram se esconderam e deixaram seus poderes de lado. Agora quase não havia mais chance de equilíbrio. Tudo estava molhado ou úmido. Até a alma das pessoas juntava bolor.

Diana nasceu debaixo de um chuvisco fino, perpétuo, que impregnou seus ossos trazendo dores que nenhuma criança deveria sentir. Cresceu em meio aos fungos e musgos. Algo dentro dela se rebelando àquele tempo. As dores se intensificavam a cada ano completado. Uma ardência, como metal quente mergulhado em água gelada. Borbulhava.

Assim que completou quinze anos de dores e desespero, descobriu o motivo de tanto sofrimento. Um pouco antes do meio-dia seus pais a levaram por um caminho subterrâneo até um salão escuro e abafado. Logo algumas pessoas chegaram, mais silenciosas do que a neve que caia nas montanhas. Viu que entre os presentes estava Leon e seu sangue ferveu, assim como, quando viu pela primeira vez seu sorriso, tão quente quanto deveria ser o sol. Sentia todo o corpo esquentar quando o sorriso era direcionado a ela e com o tempo, passaram a ser tão frequentes quanto às chuvas. Ficou feliz com a presença dele, seria mais uma coisa que teriam em comum. Quando o último dos convidados chegou, fecharam as portas e deram início ao ritual.

Uma mulher idosa coberta por um manto ergueu um bastão, falou umas palavras de ordem e bateu o bastão com força no chão. Faíscas voaram para todos os lados, assustando os desavisados. Em alguns instantes havia fogo! Uma fogueira foi acesa no meio do salão, assim como todas as velas, iluminando o ambiente e trazendo para a jovem Diana uma excitação no tutano dos ossos. Era a primeira vez que via o fogo e na mesma hora soube que havia nascido para controlá-lo.

Não fazia ideia que era uma das filhas do fogo, seus pais não haviam mencionado nada e nunca os vira usando seus poderes. Agora estavam em pé atrás dela segurando cada um a sua vela e incentivando-a a deixar fluir os seus poderes.

Enquanto todos observavam, hipnotizados, as labaredas da fogueira, uma criatura se formava em meio às chamas, uma figura feminina, incandescente, se levantou do meio do fogo e começou a caminhar entre eles.

Os mais velhos entoavam uma canção de boas vindas enquanto os jovens iniciantes observavam incrédulos.

— Seja bem vinda, Vulcana! Hoje é dia de iniciação, acolha os jovens filhos do fogo para fortalecer nosso povo.

Ela caminhou deixando pegadas fumegantes no chão úmido, seu calor diminuía enquanto as labaredas iam dando lugar a uma pele vermelha com alguns tons de laranja. Era assustadora e ao mesmo tempo admirável. Diana nunca havia imaginado nada parecido, nem em seus sonhos mais loucos onde conseguia, de alguma forma, trazer o sol novamente.

Todos os adolescentes em iniciação seguravam uma vela acesa e alguns tremiam de medo ao encarar de perto a figura tão inusitada. Ela foi tocando um por um, falando-lhes palavras mágicas ao ouvido, fazendo a chama da vela que seguravam aumentar. Diana observava atentamente todos os movimentos de Vulcana, nem piscava para não perder nada. Queria ser igual a ela.

Quando a figura se aproximou, sentiu seus ossos estremecerem, tudo nela lhe causava admiração. Seus cabelos pretos como carvão reluziam num emaranhado de cachos apertados, parecendo ter vida própria, cresciam e diminuíam de acordo com seus movimentos. Seus olhos faiscavam como carvões incandescentes. Seu cheiro era de noz moscada e canela. Quando ficaram frente a frente, os cabelos de Vulcana se levantaram e imediatamente pegaram fogo. Diana prendeu a respiração diante de tanta autoridade e vitalidade, podia sentir toda a energia, cura, amor e purificação que emanava do fogo.

Lentamente soltou uma das mãos da vela que segurava e aproximou até quase tocar os cabelos incandescentes. Antes que tivesse a chance, Vulcana disse:

— Eis aqui, depois de tantos anos de espera, a escolhida! Ela vai liderar os filhos do fogo ao equilíbrio. Despertará a montanha sagrada e trará o sol e o verão de volta.

Sua voz ecoava como trovão e diante da notícia uma onda de animação percorreu o ambiente. Ainda sem entender completamente o que se passava, Diana vê os lábios da rainha do fogo vindo em sua direção, não sentiu medo. Sabia, por instinto, o que ia acontecer. Com o tocar dos lábios, toda a essência de Vulcana passou para Diana. Era como engolir fogo líquido. Em algum momento achou que fosse morrer, mas assim que Vulcana desapareceu, pode senti-la dentro de si, parte agora inseparável de seu ser. Sentiu-se poderosa, transmutada, evoluída. Todos formaram um círculo ao seu redor e a anciã anunciou que Diana era a nova rainha do fogo.

Restaurar o equilíbrio não seria fácil, e Diana não imaginava o que teria que sacrificar para conseguir, mas estava disposta a tudo. Olhou para Leon, que a encarava preocupado, sem o sorriso costumeiro. Sem mais espera, a anciã conduziu a nova rainha a uma sala onde estavam acesos incensos de sândalo, café e arruda. Diante da minguada família do fogo, foi preparada para salvar sua raça. Perfumaram-na com óleo de rosas e calêndulas, trouxeram uma poção feita com alho e romãs para atrair mais energia e sucesso.

Depois do ritual de purificação, todos apagaram suas velas e foram, em pequenos grupos, sem levantar suspeitas, até a montanha sagrada, que estava adormecida. Chegando lá, um novo ritual se iniciou e Diana sentia a montanha a chamando. Subiram até o topo, debaixo de intensa chuva que encharcava todos, menos Diana, sua nova essência impedia que a água impregnasse em suas roupas, cabelos e pele

Chegando ao topo tiveram uma visão clara do interior da montanha, um vulcão. Escuro e frio. Diana percebeu então o que teria que fazer. Antes de conseguir processar tudo, ouviu a voz grave de Leon:

— Vai mesmo fazer isso? — seus olhos imploravam.

— Se você fosse o escolhido, faria?— Sentiu que as lágrimas estavam prestes a explodir.

— Claro! Mas é diferente… — Ele titubeou, engasgando na última palavra.

— Diferente por quê? — Olhou dentro de seus olhos querendo conseguir ler sua mente.

— Porque não teria que continuar vivendo sem você…

Diana não conseguiu conter as lágrimas, apertou as mãos dele e sussurrou:

— Pelo menos essa dor eu não terei que passar…

Seria capaz de abdicar de tudo assim? Tão jovem, nunca havia provado os prazeres da vida, nem suas aventuras, seus amores, só as dores. Mas agora fogo líquido corria pelas suas veias e a sensação de pertencer a alguma coisa nunca havia gritado tão forte dentro dela. A montanha a chamava. Aproximou seu rosto ao de Leon e encostou seus lábios nos dele dando assim seu primeiro e último beijo. Olhou ao redor tentando gravar todos os rostos queridos na memória, respirou profundamente e sem pensar em mais nada, ela pulou. Enquanto caia, lembrou do abraço apertado da mãe, do beijo do pai, seus olhos marejados de orgulho e dor. A descida foi longa, quanto mais caia, mais profundo e urgente era o chamado do vulcão, em algum momento sentiu que incendiava. Foi sua última lembrança como Diana.

Um relâmpago riscou o céu e rasgou as nuvens, seguido pelo estrondo ensurdecedor do trovão, que abalou a montanha sagrada que começava a fumegar. Os filhos do fogo celebravam a vitória enquanto as Ondinas se resignavam com o justo reequilíbrio dos elementos. Antes que o vulcão entrasse em erupção de vez, todos conseguiram descer em segurança e observar a lava que escorria, enquanto o céu ia clareando e aos poucos o sol, majestoso, quente, vital, voltava a brilhar depois de tanto tempo.

No ano seguinte, na reunião de iniciação, a rainha do fogo foi invocada, levantou-se das chamas poderosa, esplendorosa e triunfante. Todos reverenciaram Vulcana e como uma homenagem ao sacrifício de Diana, Leon ofereceu a primeira flor que desabrochou no tão aguardado verão, um girassol.

— Não se preocupe, Diana viverá eternamente através de mim. Aproveite o sol.

E foi o que ele fez.

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 09/07/2022
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