MECSTAR — O APRENDIZ DE HERÓI • 2
• Capítulo 2 - Hora de Voar
Bongo, o Gordo, era um Cruzador Dimensional da 63ª Ordem Galáctica — porque era isso que estava escrito na insígnia no peito do largo traje laranja e branco que ele vestia. O fato de ele ter quatro braços me assustou um pouco, mas o de ele ser uma lesma humanoide em nada me surpreendeu — quem, além de uma lesma, seria tão desastrado?
— Amigo, escuta... — Comecei dizendo, de mãos erguidas, sob a mira da pistola espacial que ele apontava em minha direção com o braço superior direito — com o esquerdo ele coçava a cabeça; com os dois inferiores ele ajustava a barriga para dentro da calça.
— Mãos ao alto, humano esquisito! — Disse ele, estirando em minha direção seus dois olhos verdes suspensos por duas finas trompas cor de sorvete de limão. — Não se mexa, habitante das margens sombrias da galáxia! — Enquanto falava, Bongo ia descendo da enorme nave abóbora até que escorregou, rolou como... bem, como uma abóbora, e caiu de cara no chão. As trompas oculares recuaram para dentro de sua cabeça gorda, deixando-o com uma cara um tanto cômica, aí ele começou a gritar.
— Meus olhos! Meus olhos! — Ele gritava e chorava, o que era difícil de ver, sem os olhos, mas sua voz aguda e infantil estava tão alta que por pouco não acordou da morte os suricates albinos. — Pelas vastas águas de Pancëan! Fiquei foi cego! Fiquei ceguinho! — Gritou desesperado.
Teria sido um bom momento para eu desarmá-lo, mas o sexto capítulo do livro, que eu trazia comigo num bolso do colete de couro de cabra que eu vestia, “Como Ser Um Grande Herói” deixava claro que um herói jamais se aproveitava da desgraça (nem da burrice) alheia, em benefício próprio. De modo que acabei por limitar-me a um comentário heroicamente gentil:
— Além de cego, você tá bêbado? Para num canto, seu esquisito! — Declarei. Embora soubesse que não fossem as palavras mais adequadas, foram as que saíram na hora.
Bongo por fim esbarrou na nave-abóbora e o impacto cuspiu seus olhos para fora novamente.
— Ai, ai, ai, pelas luas de Danatinóia, isso sempre acontece comigo...
— Olá, alô, prazer — disse, afim de não deixa-lo muito embaraçado, afinal, eu lembrava claramente de uma inteira frase do meu amado manual heroico: “um herói sempre se preocupa com os sentimento dos outros; prefere antes ferir a si do que o sentimento alheio”.
— Você está na presença de Mecstar — continuei, tentando usar palavras mais polidas, e não gaguejar, pois aquele momento parecia importante — o Herói de Bolaranja... ao... — pensei tanto em não gaguejar que acabei gaguejando mesmo — ao... seu dispor. O senhor sabia que acabou de destruir minha casa? Pra não mencionar os suricates albinos — continuei, vendo o exemplar macho dar seu último suspiro, tremendo a patinha traseira. — Você é mesmo um Cruzador Dimensional?
— Mais que isso, ô tampinha! Sou Bongo, o Gordo, Cruzador Dimensional da 63ª Ordem Galáctica, com méritos e honrarias em 36 sistemas estelares em 9 galáxias... — Dizia ele, assumindo finalmente uma postura digna de um cavaleiro, embora em vez de murchar a barriga, ele parecesse inchá-la.
— Tá, tá, tá... eu já li na sua roupa, mas o que faz aqui por esse buraco negro?
— Estou a procura de... ei espere aí, eu não vou cai nessa de novo não, você é Me... me...
— Mecstar, herói por profissão e paixão.
— Um herói é? Caramba cara! Mas que sorte a minha! Acredito que você possa ser-me útil. Quantas e quais buscas, aventuras e batalhas você já venceu? Quantos monstros e/ou bestas já liquidou? Quantos braços, dedos, ou pernas, já decepou ou perdeu? Onde está o seu currículo, afinal? Você mora, digo, morava, nesse buraco aí? É famoso? O que pensa o Senhor Sentado sobre você?
— Ei, ei, vamos com calma, amigão. Saiba que sou o herói mais famoso de toda Bolaranja, já enfrentei a harpia cega do bico vermelho, já salvei a princesa... a princesa — foi difícil pensar num nome, meus amigos, mas fiz o melhor que pude ao avistar algo no meio da bagunça que era o resto do lixo da minha casa — a princesa Pote de Melseco.
— Seco? — Ele teria erguido uma sobrancelha se tivesse uma — Pote de Mel Seco?
— É. Tudo junto, Melseco é junto, Pote de Melseco. Fui muito agraciado nessa época, até ganhei uma passagem para a Terra, veja só. Só não fui porque todo mundo sabe a perda de tempo que é... não é mesmo? Mas ganhei também algo importantíssimo e raro, ganhei o acesso aos segredos das bolas de gude carambolas... estava num conjunto de 79 livros mais espessos que a pata de um elefante, cheio de códigos e termos técnicos, uma loucura... — Notei que neste momento os olhos de Bongo saltaram ainda mais, então engatei a segunda — Aliás, sou um dos poucos que domina este raro segredo que o povo de Bolaranja ainda não está apto para assimilar...
— Muito bem, muito bem — Gritou Bongo — assim está bom, está muito bom, acredito que você vai servir, apesar de precisar ganhar uns quilinhos.
Honrados amigos, neste momento eu percebi como tudo que o Sr. Marmelo Sabequesabe dizia no seu livro era a mais pura verdade! A oportunidade tarda, tarde novamente, mas chega, chega sim — eu era a prova viva! Lá estava a minha desejada oportunidade. Aquele cavaleiro me levaria em sua aventura e eu poderia pôr em prática todo meu aprendizado sobre heroísmo — algo em torno de três meses de leitura e releitura do livro vermelho. Tudo o que guardei, por falta de oportunidades para fazer, finalmente viria à tona. Ele ficaria tão impressionado com a graça, a coragem, e a ousadia do grande Mecstar, que seria obrigado a me levar à presença da mais alta Ordem Galáctica, para receber as honrarias por um serviço tão bem prestado. E quando fizesse isso: bingo-bongo-bingo! Lá estaria meu magnífico nome escrito para sempre na história de todos os tempos e universos do cosmos! Lá estariam multidões de garotos sendo inspirados por mim, escrevendo a palavra Mecstar nos seus cadernos escolares e paredes públicas, comprando figurinhas com meu sorriso estampado, lendo minhas aventuras em revistas em quadrinhos baratas. E lá também estaria uma multidão de belíssimas garotas chamando “Mecstar! Mecstar! Liiiiiindooooo!!!”, todas apaixonadas pelo corajoso guerreiro que eu sou. E eu estenderia minha mão bravia para a mais bela de todas e a traria para minha vida gloriosamente heroica. No meu décimo terceiro palácio verde, haveria...
— Mãos ao alto, Mectá e vê se desmancha essa cara de batata podre, antes que eu resolva fritá-la! — Falou Bongo, o Gordo, pronunciando meu nome errado — o tirou-me de vez do meu devaneio — voltando a apontar a pistola para mim, agora com as duas mãos superiores, e com os olhos cerrados.
— Bongo? Mas, Bongo, cara! O que é isso, amigão? Você é um cavaleiro, eu sou um herói, podemos ser parceiros e realizar sua, hum, nossa, busca, missão, sei lá, juntos. O que acha desta... hum... valiosa pro-proposta?
— Eu acho que você fala demais, Mectá. — Disse ele, retirando um dispositivo circular do cinto laranja do seu traje espacial. Antes que eu pudesse pensar no que seria aquilo, ele pressionou um botão no dispositivo e me olhou com uma cara que dizia “até mais, Méctá”, enquanto abanava sua mão de sete dedos e meio. Instantaneamente, três pardais que sobrevoavam o local, fofocando ruidosamente entre si, despencaram no chão — pó-tó-que — imóveis como pedras.
— Ops, errei aqui! Esqueci de ajustar esse troço... — Disse Bongo, digitando, num minúsculo display retangular do apetrecho com as duas mãos inferiores, enquanto as superiores ainda apontavam a pistola para mim. Não fosse por isso, meus amigos, Mecstar teria fugido naquela mesma hora, pois, esperto como você já sabe que eu sou, já estava mais do que ciente daquilo que ele pretendia.
— Calma, calma, não faça isso, Gordo, o Bongo... digo... não, por favor, Bordo Gongo... nãããããão — Foi o que eu disse, nervosamente, antes de perder os sentidos, enquanto ele terminava, evidentemente, de ajustar o aparelho para a frequência dos humanos e tornava a apertar o botão da coisa desmaiadora.
Escutei um apito, fino, distante, como se viesse de algum lugar do passado, de todas as direções. Então tudo foi ficando branco, claro, e claro, e ainda mais claro, até ser uma branquidão só. Eu não gostei nem um pouco de ter sido apagado, mas devo admitir que foi bem confortável, como se uma refrescante brisa marinha soprasse numa onda um vasto lençol branco que me envolvia numa brancura calmante, num sono puro, suave, e então... nada... nada... e apenas nada...
Quando acordei estava com os pulsos e tornozelos amarrados. “Típico”, pensei, deitado num chão metálico, quente, banhado de suor, e um rato robô me olhando com dois olhos brilhantes e um focinho inquieto. Não precisei de muito tempo para perceber que estava dentro da nave-abóbora — que, diga-se de passagem, conseguia a proeza de ser ainda mais ridícula por dentro.
— Acordou, Bongo, o Mectá puro osso acordou. — Gritou o rato robô.
— É Mecstar, seu rato! — Gritei — E eu não sou magro, sou ergonômico! Onde estão minhas ratoeiras quando mais preciso delas?
O Rato Robô, que passei a chamar de R² (R ao quadrado) não só pela dobradinha de R’s, mas também pelas formas quadradas de seu estranho corpo cibernético, vingou-se com uma bela de uma dentada no dedão do meu pé. Fui numa lua e voltei.
— Deixa só eu me soltar daqui, sua lata velha dentuça! Você vai desejar nunca ter sido fabricado! — Ameacei, quando consegui parar de gemer.
— Fique quieto, Mectá, — disse a voz de Bongo, o Gordo, vinda de trás de uma enorme cadeira giratória lilás reluzente.
Estamos sobrevoando o Deserto do Eco Rouco, lar da lendária Miltopéia de Três Cabeças e Cento e Um Ferrões. — Soou uma voz feminina de locutora nos alto falantes da nave.
Bongo, o Gordo, girou a enorme cadeira e me encarou.
— Bem, Mectá, que bom que acordou — disse ele, com o sorriso mais feio que eu já vi, naquela cara verde e gorda — temos um servicinho para você.
— Para mim? — Não consegui evitar com que minha voz saísse menos máscula que de costume.
— Claro, para você! — gritou ele, rindo. — Hora de provar sua bravura.
Muito bem, eu tinha que me mantar calmo. Eu era Mecstar, o maior herói de Bolaranja. Eu era durão que só. Eu tinha que ser o maior dos durões.
— Pois não.
— Eu sabia que podia contar com você! — Bongo parecia contente.
E, nesse momento, quase engoli minha língua.
O rato de lata soltou uma risadinha tosca que aumentou consideravelmente o meu ódio por ele. Até esqueci, por um instante a Miltopéia do deserto. Em minha mente, apenas uma certeza: eu ia MATAR aquele rato.