FAROL SEM LUZ (Dez ciclos depois...)
FAROL SEM LUZ (Dez ciclos depois...)
“A Escuridão contida outrora, aos poucos se espalhou e a luz em pedaços se afugentou
A Salvação que se elevava ao alto, ao nada se reduz, resta somente o Farol sem Luz” –
Terceiro Livro das Profecias – Cap. 1:1
Do alto do colossal farol era possível vislumbrar a vastidão do Reino das Sombras. A cidade morta e seus cidadãos espectrais cresciam lentamente. A luz opaca dos instrumentos de guerra e da áurea que compunha aqueles que foram renascidos nas sombras transformava todo o cenário em um lamentoso espetáculo.
Em pé, no topo do Farol Sem Luz, a princesa Ne-brae tocava seu violino. Um instrumento tão minúsculo e delicado que emitia uma triste e desoladora melodia. De forma virtuosa, a princesa do Reino das Sombras se utilizava das mais variadas técnicas: arcadas mistas, cordas duplas, acordes cheios e quebrados, harmônicos em oitavas e quintas, dentre outras.
Contava com vinte ciclos de idade. Uma formosa jovem vestida de cinza. O cabelo, delicadamente penteado e ornamentado pelos adereços de cobre sem vida, enfeitavam um belo rosto marfim. Em volta do farol sobrevoava o gigantesco dragão. Suas asas pareciam espalhar a fúnebre melodia tocada. A tudo observava. A tudo perscrutava.
Dentro do farol, em um canto sujo e escuro, jazia um cão cinza. De aspecto moribundo, o animal mirava o escuro acima e uivava abafado. A triste melodia que descia a escadaria do negro farol feria seus ouvidos. Sua audição apurada capturava cada nota musical e transformava em desilusão.
Ao longe, rumo ao desfiladeiro dos escravos, uma fila seguia rumo ao escuro vazio. A casa mortuária, ao norte da cidade emitia de quando em vez uma funesta luz. Almas sendo transformadas. Vidas interrompidas. Raças aniquiladas. A esperança cada vez mais rara.
O débil cão mirou abaixo e vislumbrou o horror: velhos, mulheres e crianças caminhando em direção ao vazio escuro. Cada integrante carregava consigo sua história e seus anseios. A desolação dos mais velhos não superava o choro das crianças que em breve se tornariam órfãs. As mães, desconsoladas, agarravam-se a seus filhos. Protegê-los-ia até o último momento.
Enormes cavaleiros espectrais conduziam o desfile rumo às trevas. Apenas a presença sombria e bizarra daqueles seres era capaz de reprimir qualquer sinal de rebeldia.
A princesa Ne-brae permanecia tocando seu instrumento. Era como se aquele som fizesse parte do ritual macabro. Um espetáculo sem público. Uma peça sem plateia.
Ao pé do Farol Sem Luz, rodeada pelos cavaleiros espectrais, a feiticeira Lo-han assistia todo êxodo dos escravos rumo ao nada. Seria um problema se continuassem a recusar ao Renascimento Negro. O exército das sombras crescia e sobrepujava outros reinos, porém, o imperador Noctus queria muito mais.
Com um livro velho e pesado em mãos, a feiticeira caminhava de um lado para o outro maquinando os próximos passos. Havia sido uma vitória tomarem a cidade portuária. Logo os navios viriam e se renderiam às forças sombrias. O Templo do Vento já fora saqueado. Com aquelas escrituras, tinha o que precisava para converter novos recrutas.
* As Alvoradas!!! *
Olhava para o livro em suas mãos e estremecia de raiva quando se lembrava da profecia. Onde, afinal, estariam as Alvoradas? Deveriam ser encontradas e derrotadas o quanto antes. Que idade teriam? Por que não se revelavam?
* Em breve serão derrotadas! As sombras reinarão e vocês perecerão, Alvoradas!!! * - bradou, voltada para a costa do Reino das Sombras, banhada pelas as águas escuras e quase sem brilho.
Neste momento, a melodia de Ne-brae foi cessada. Uma das cordas estourou. Estranhamente, era a primeira vez que isso acontecia. A princesa, com desdém, retirou um fio de sua frondosa cabeleira e substituiu facilmente a corda. Afinou o instrumento e retomou sua triste ária.
O cão moribundo, encolhido em seu canto, presenciava tudo aquilo sem esperança.