MECSTAR — O APRENDIZ DE HERÓI • I
• Capítulo 1 - Como Ser Um Grande Herói?
O Sistema Solar de Dustmund passava por uma época turbulenta, quando Bongo, o Gordo, apareceu em sua nave em forma de abóbora no planeta Bolaranja. Havia muita seca e escassez em quase todos os planetas, mas em Bolaranja, que estava no auge do Verão Triplo, a coisa estava ainda pior.
Estava quente, meus amigos, mas tão quente, que, ao acordar naquela manhã, descobri novas rachaduras no teto da minha casa, enquanto observava o vapor de meu suor fugir por tais brechas que lembravam contorcidas raízes secas. Este tipo de estação, onde os nossos três sóis queimavam com força total, acontecia a cada 365.000 anos, o que fazia com que eu considerasse um azar imensurável estar presenciando um desses bem na flor de cacto da minha juventude.
Por isso, e por outros motivos que você logo vai descobrir, eu estava me sentindo péssimo naquela manhã, me considerando mais azarado que uma lesma anã dos pântanos de Fédecem (cujo principal objetivo de vida é servir de alimento para sapos sem dentes que levam uma eternidade para mastigá-las e digeri-las enquanto ainda estão vivas, ou, quando isso não acontece, ficam apenas boiando em águas lamacentas até morrerem afogadas e com um grau importante de transtorno do humor). Eu não tinha nem mesmo um nome. Ninguém na minha vila o conhecia, e eu não tinha coragem de perguntar se algum deles sabia, pois isso reforçaria ainda mais o fato de que eu não tinha um nome, o que era a mesma coisa que dizer que eu não era ninguém. Isso me deixava muito infeliz, e, às vezes, eu passava horas sentado na minha pequena casa de rocha, olhando para a parede e imaginando qual seria o meu nome e se algum dia encontraria alguém que me daria um.
Para todo mundo, na Vila de Solavanco era o Svam, o peste do moleque vadio, arruaceiro, ladrão e com ideias nada conservadoras sobre higiene.
Eu tinha conquistado esta má fama com muitos atos vis e inconsequentes é bem verdade; roubos e desordem tinham feito parte de minha infância e adolescência no vilarejo de Solavanco, e eu acho que até conseguia de alguma forma gostar dessa vida.
Entretanto, tudo começou a mudar quando, um dia, passeando pelo Grande Depósito de Lixo e Outras Coisas Não Muito Desejáveis, encontrei o livro que mudou minha vida. Lembro-me claramente quando um dos três sóis refletiu na superfície dourada sobre a capa vermelha do livro "Como Ser Um Grande Herói?" do Sr. Marmelo Sabequesabe. Havia um desenho minimalista de um homem com uma longa capa esvoaçante, uma tocha numa mão e uma espada na outra, agraciado por um espetacular pôr-do-sol, numa pose que dizia: "Eu sou bom, meu filho, e eu sei disso muito bem... e você, ah, você é só mais um idiota...". Daquele momento em diante, eu decidi que não seria mais só mais um qualquer, um sem nome, zé-ninguém. Seria alguém a ser lembrado nas canções e eternamente zoado nas piadas. Acreditem, meus amigos, naquele momento as estrelas se alinharam e eu senti a corrente do destino me apertar, me puxar para perto e falar baixinho no meu ouvido: "Cara, deixa de ser tapado e vê se começa logo a fazer alguma coisa da tua vida!". Senti um arrepio e uma tontura que pensei ser devido ao impacto do encontro com o destino, mas acabei descobrindo que a causa vinha do cheiro de uma lata de sardinhas podres que emitiam uma catinga suprema que sobrepunha-se as demais catingas do lixão, me causando todo tipo de sensações estranhas.
Sai dali com muita vontade de vomitar e uma certeza em mente: Se eu não almoçar nas próximas duas horas meu estômago vai virar do avesso.
Eu não tinha dinheiro, meu plano anterior era encontrar algo no Grande Depósito de Lixo e Outras Coisas Não Muito Desejáveis que ainda pudesse se aproveitar ou, em caso negativo, roubar alguma coisa na Feira do Vale Torto, mas agora eu tinha um livro que podia valer alguma coisa para alguém (como você) que tivesse o hábito estranho e inútil de ler (como eu considerava na época).
Fui até a feira do vale, agora com a intenção de vender o livro, ou trocar por comida, mas, antes, precisava saber o quanto ele valia, não podia simplesmente negociá-lo com o primeiro vigarista que aparecesse. Sabia muito bem a quantidade enorme de vigaristas que havia ali, afinal, eu era um deles.
Precisava consultar um especialista, e foi por isso que procurei o Sábio das Bolhas de Sabão, um antigo ermitão que perambulava com dois animais, um cão-cavalo, e cavalo-do-cão, enquanto soltava bolhinhas de sabão por onde passava. Diziam que ele já tinha viajado por todo Bolaranja e quem sabe outros planetas. Diziam que ele conhecia os mistérios da vida, do tempo, do espaço e das lendárias Bolas de Gude Carambola. Sobre o tempo, o espaço e a vida, ele falava abertamente a quem procurasse nele um pouco de sabedoria, ou mesmo um conselho que apoiasse aquilo que a pessoa já sabia que devia fazer, mas precisava ouvir alguém falando para ter certeza. Mas sobre as Bolas de Gude Carambola ele jamais falava nada, dizia ser um segredo que "o povo de Bolaranja ainda não está preparado para conhecer".
Encontrei o sábio das Bolhas de Sabão após seguir numerosas bolhinhas pequenas e coloridas que ele fazia naquela manhã, sentado sobre um carregamento de esterco de bode de Neburrosa.
O esterco de Bode de Neburrosa era um item raro em outros planetas na época (e acredito que assim seja até hoje), mas em Bolaranja havia de sobra e era graças a ele que nossas plantações não eram um desastre total devido ao excesso de calor. O problema daquele esterco, porém, era que ele era extremamente fedido. Mesmo quando estava seco, ainda assim era possível sentir o cheiro desagradável. Diziam que o esterco de Bode de Neburrosa era tão fedido que as pessoas que o manipulavam precisavam usar cinco máscaras sobrepostas e sete luvas para evitar o contato com o cheiro. Por muito tempo, autoridades da agricultura procuraram por outros tipos de fertilizantes que pudessem ser usados em Bolaranja. Infelizmente, não encontraram nada que pudesse substituir o esterco de Bode de Neburrosa — sobretudo na situação climática citada. A coisa mais próxima que encontraram foi um tipo de planta que crescia nas montanhas e que era chamada de "Bola de Bode". A planta era extremamente rara e só podia ser encontrada nas montanhas mais altas e inóspitas de Bolaranja. As Bolas de Bode eram usadas como fertilizante e eram muito eficazes. No entanto, elas eram muito difíceis de encontrar e coletar e, por isso mesmo, eram extremamente caras. Já a abundancia de esterco era tanta que ele era vendido mais barato que banana oca.
A banana oca é uma espécie muito comum de banana que nascia sem polpa, mas cuja casca (a única coisa que ela tinha) era usada na caça de gorigards, primatas gorilescos gigantescos, habitantes de matas densas e secas, com crânios enormes e cérebros minúsculos. Para mata-los os caçadores espalhavam as bananas ocas pelo chão e os gorigards escorregavam nelas, morrendo da queda devido a seu diminuto cérebro que fica solto em tanto espaço vazio que há no crânio deles se esmagar no impacto da queda.
— Bom dia, seu Sábio. — Gritei, a uns seis metros de distância, para o velho homem sobre o esterco fedido.
Ele continuou soprando bolinhas de sabão que subiam acima de sua cabeça e refletiam infinitas cores, fazendo-me pensar se elas talvez eram parecidas com as lendárias Bolas de Gude Carambolas, mas sabia que não devia o perguntar sobre isso, e, além disso, meu objetivo ali era outro, era almoçar, não descobrir os grandes segredos do Universo.
O cão-cavalo, que muitos definiam como um pônei com espírito de cachorro, me olhou com desconfiança de início, mas logo estava abanando vigorosamente a calda peluda. Já o cavalo-do-cão era uma criatura horrível de se ver que fazia muitas crianças terem medo do sábio (o que era um alívio para as mães mais conservadoras que muito se agradavam da distância que seus filhos mantinham daquele velho vagabundo) era um cachorro grande, quase do tamanho de um cavalo, magro, com quase nenhum pelo, de pele cinzenta e olhos avermelhados. Estava sempre depressivo. E lá estava ele, deitado, de orelhas baixas, olhos caídos, respirando fundo, praticamente imóvel.
Como o velho não me respondia, comecei a brincar com as bolhas de sabão. Peguei um galho seco que encontrei por ali e comecei a estourar a bolhas que passavam. Ao perceber o que eu fazia, o velho disse:
— Por que tu feres a quem nunca te feriu? — Falou em tom casual.
— Perdão?
— Sim, peça perdão mesmo.
— Desculpe, não pensei que se importasse com essas bolhas, não servem...
— Cale-se, poupe-me de sua ignorância, jovem Svam, tudo serve para alguma coisa, até você, veja só.
— Bem... sim... claro... mas é que...
— Está a procura conhecimento? Sabedoria? Alimento para alma, ou para o corpo?
— Para o corpo, sem dúvidas! Tenho tanta fome que seria capaz de comer uma lesma anã dos pântanos de Fédecem!
— Mas você não sabe como chegar lá, sabe?
— Bem, uma vez... outro dia...ah, não sei, mas não importa... alguém sabe e poderia me informar.
— Pois sim, o conhecimento vem antes do alimento, meu filho. Agora vá em paz, e, da próxima vez, me traga algo para comer.
— Espere, na verdade estou aqui por outro motivo... gostaria de saber se você... digo, o senhor, sabe quanto vale este livro?
— Nada, este livro, assim como nenhum outro monte de papel e tinta, não vale nada em absoluto. — O velho deixou-me um tanto decepcionado.
— Ahh, você acabou de dizer que tudo tem valor! Para de brincar, seu caduco, estou falando sério! Bem sério!
— Assim como eu estou.
— Como pode dizer que um livro não vale nada, quando você é famoso por ser sábio, letrado, e não sei mais o quê... o senhor nunca leu um livro não?
— Sim, li vários, li inclusive este que você tem em mãos.
— E todos eles eram sem valor?
— São sem valor porque o valor não está no livro. O valor é o conteúdo, e o conteúdo é o leitor, o leitor é o livro, o livro é o leitor.
Cocei a cabeça, irritado.
— Mas que enigma é esse agora? Que droga! Eu só quero saber se dá pra almoçar vendendo esse imprestável aqui. — Disse, erguendo o livro vermelho.
— Se dá pra almoçar? — O velho finalmente parou de soprar as bolhas de sabão e soltou uma longa gargalhada. — É claro que sim, jovem Svam, mas se o venderes terás almoço hoje, e amanhã, antes que esta hora se repita, estarás novamente com a mesma fome.
— E daí? Amanhã vendo outra coisa, ou roubo, eu não ligo...
— Roubar? — O velho parou de rir. — Não roube, meu jovem. Pois, ao roubar, estás a roubar de si mesmo.
— O quê?
— Roubar de si mesmo. — O velho enxugou as mãos na bainha de sua surrada veste marrom — Tu és o dono do teu destino, meu jovem. O destino é o que tu fizeres dele.
— Tu é mais é maluco, velho.
— Não, não sou. Repito, tu és o dono do teu destino.
— Ok, então me diz, sendo o dono do meu destino, como é que eu faço para não ficar com fome?
— É simples. — O velho fez uma bolha de sabão particularmente grande e a soprou para longe. — Encontra o teu destino. E, se mantiveres o livro, e, com ele, passares a conhecer tuas próprias ideias, será mais fácil encontra-lo, te libertarás, tua vida nunca mais será a mesma.
— Exato, e se eu não almoçar hoje, minha vida vai ser uma droga pelo resto do dia, e se meu estômago finalmente se revoltar e declarar greve definitiva, eu morro, sem vida nenhuma.
— Pois bem, almoçarás comigo hoje, e manterás o livro contigo, prometerás que vais o ler esta noite, e voltarás quando alguma coisa mudar.
***
O almoço com o velho e seus dois amigos não foi lá essas coisas, eu já tinha roubado refeições melhores, e a catinga do esterco seria capaz de arruinar o melhor dos pratos, mas, com a fome que eu estava, foi bom servir-me daquela sopa de caramujos silvestres e comer aquele pão de cinco dias duro como a vida.
— Obrigado pela comida — disse, me levantando para ir embora.
— Vá em paz, e, lembre-se, tudo o que precisas é da coragem de encontrar e então enfrentar o teu destino.
— Mas o que é o meu destino?
— O destino é o que tu és. Tu só precisas descobrir isso.
— E como faço isso?
— Não sei. Acho que isso é algo que tu tens que descobrir por ti mesmo.
— Obrigado. — Disse eu, incerto se tinha algo realmente a agradecer, e comecei a me afastar.
— Ei! — Gritou o homem, e eu me virei. — Não se esqueça de ler o livro!
— Não esqueço, não esqueço. — Respondi, e sai dali.
Não sabia o que o futuro me reservava, mas, se o livro pudesse me ajudar a descobrir o meu destino, então, talvez, valesse a pena dar uma chance a ele.
Quando anoiteceu, fui para minha casa, uma cabaninha circular de pedra velha que só tinha espaço para minha cama (um monte de palhas e folhas e lençóis mais velhos que a mentira) e minha bagunça ao lado — uma pilha de coisas que eu tinha achado ou roubado. Foi no topo da bagunça que eu joguei o livro que mudaria minha vida, e deitei na cama, vendo o céu a lua dourada por um buraco na parede que eu insistia em chamar de janela.
Depois de um tempo pensando em outra pessoa que pudesse me dar informações financeiras a respeito do livro, me levantei, acendi uma velha lâmpada rachada de óleo de castanha, e me sentei na cama para folhear o livro, não tanto por curiosidade, mais para ter o que dizer a um possível comprador no dia seguinte — embora soubesse que quando começasse a fazer a propaganda, pouco, ou nada, do que diria seria verdade.
O livro não era muito grosso, e a capa era de couro tingido de vermelho, quebrado em alguns lugares, mas ainda forte. Era seguro dizer que era velho, pelo menos uns trinta anos, e ao abri-lo, li, na primeira página: "Eu sou um ser humano. Falo porque tenho a coragem de viver a verdade. Seja quem for que estiver lendo estas palavras, saiba que eu sou um ser humano, um ser humano que vive a verdade."
O que era aquela verdade? Teria algo a ver com o destino que o velho mencionara?
Continuei a leitura e observei o sr. Marmelo Sabequesabe começava então a explicar como eu podia ser um HERÓI, pois, qualquer ser humano podia, bastava querer viver a verdade. E, naquele momento, acredito que ninguém queria ser um herói com a mesma intensidade que eu queria. Afinal, um herói teria tudo o que me faltava. Comecei a ler o livro noite adentro, sem parar, até terminar exatamente na hora do nascer do primeiro sol. Então sai de casa, olhei para o horizonte, o primeiro raio de sol atingiu meu rosto com uma luz dourada como o mel dos deuses e o nome MECSTAR surgiu na minha mente com a força de um trovão.
E esse foi o nascimento do maior herói de Bolaranja.
Respirei fundo, tomado de emoção, cheio de confiança que tudo seria diferente dali em diante, pois, agora eu tinha um nome, finalmente eu era alguém, agora eu era um HERÓI.
Mecstar era um perfeito nome de herói, ao meu ver... mas eram poucos... bem, já que seremos amigos, e estou me abrindo mesmo aqui para vocês, serei um pouco mais sincero: ninguém aprendeu a me chamar assim. Mas isso não me desanimou... um dia meu nome seria conhecido, um dia eles ainda iam clamar por Mecstar.
***
Os dias se passaram e percebi que, pouco a pouco, fui ficando triste e mais e mais triste, até chegar num estado de tristeza ainda maior que antes de encontrar o livro, pois, ao contrário de todos os heróis, eu não sabia qual seria meu destino, minha verdade, e isso me deixava arrasado.
Antes, eu não passava de um vagabundo que não se preocupava muito com nada além de roubar e tirar proveito dos outros. Agora eu era um vagabundo infeliz porque sabia que aquilo estava muito aquém do que eu poderia ser um dia, aquela não era a minha verdade. Esperava pela oportunidade para ser um herói... mas essa oportunidade nunca aparecia, enquanto oportunidades para continuar a ser um ladrão borbulhavam em cada esquina e em cada ronco do meu estômago.
Minha tristeza e consciência de que eu não passava de um nada pior que o esterco da lesma anã dos pântanos de Fédecem estava especialmente forte naquele dia que mencionei no início do capítulo, o dia em que Bongo, o Gordo, apareceu em sua nave em forma de abóbora, e eu acordei com a minha casa destruída sentindo o calor infernal do Verão Triplo. Antes de ter o meu lar destruído por aquela ridícula nave abóbora eu tinha acordado sem nenhuma vontade de me levantar da cama, sem coragem de viver outro dia em que eu faria tudo o que eu não queria e deixaria de fazer tudo o que de fato queria. Meu coração estava ávido por heroísmo, meu estômago ávido por um frango frito na cebola verde que era servido no Coma-até-entrar-em-coma, um dos poucos restaurantes que ainda funcionavam em Solavanco naquela seca dos infernos que enfrentávamos. E então eu vi.
Eu já tinha, claro, visto uma ou duas naves espaciais na vida, mas nunca uma como aquela. A nave em forma de abóbora pertencente a Bongo, o Gordo, aterrissou na colina cuja minha casa ficava aos pés, e desceu rolando, arrancando troncos de árvores secas, cactos, palmas, e esmagando os dois últimos exemplares de suricates albinos que tínhamos em Bolaranja. Minha modesta casa foi o que freou a nave ao pé da colina, destruindo-se, no processo, assim que sai correndo de dentro dela, deixando-me com muita ira por ser obrigado a levantar e sair tão cedo. Minha surpresa ao descobrir que minha casa fora atingida por uma abóbora gigante com escotilhas ridiculamente laranja só não foi maior do que a de ver a portinhola da nave se abrir e sair Bongo, o Gordo, perguntando:
— Que horas é hoje e que dia são? — apontando uma pistola colorida na minha direção.