Na palma da mão
- É a tradição - declarou solenemente o alto sacerdote Tsomaq, de pé ao lado do rei Akhsar junto ao leito da rainha Eudoxia, que havia acabado de dar à luz à duas meninas.
- É uma tradição perfeitamente estúpida - protestou a rainha. - Vocês não vão matar uma das minhas filhas só porque ela é gêmea!
- Uma terrível catástrofe se abaterá sobre o reino se esse sacrifício não for feito - vaticinou Tsomaq, braços cruzados.
Consternada, Eudoxia encarou o marido.
- Faça alguma coisa! Você é o rei!
- Sou o rei, mas me curvo perante as forças sobrenaturais - admitiu Akhsar. - Se o alto sacerdote diz que uma das crianças terá que ser sacrificada...
- Mas qual delas? - Eudoxia ainda não queria acreditar que o ato inominável iria adiante. - São idênticas!
- A mais velha - decretou o alto sacerdote. - A que nasceu primeiro.
A primogênita foi levada então por uma aia para o berço real, enquanto sua desditosa irmã foi conduzida para fora do quarto por um soldado da guarda de honra.
- O que farão com a pobrezinha? - A rainha estava inconsolável.
- Será eliminada sem dor - prometeu o alto sacerdote.
Ocorre que o soldado que havia levado a caçula para execução, havia recebido ordens expressas para trocar a recém-nascida pelo bebê natimorto de uma camponesa, que havia dado a luz pouco antes da rainha. A pequena, chamada de Lira pela mãe adotiva, foi criada como pastora de ovelhas, bem distante da realidade da corte real onde crescia sua irmã Zarina.
Certo dia, pouco depois de Lira completar 16 anos de idade, uma liteira carregada por seis escravos parou em frente à choupana onde ela vivia com os pais adotivos. Do veículo desembarcou um homem imponente, o alto sacerdote Tsomaq.
- Procuro por Lira, filha de Kazbek e Lidia - declarou aos camponeses.
- Ela está no campo, senhor, pastoreando ovelhas - declarou Kazbek fazendo uma mesura.
- Pois tragam-na aqui. Tenho assuntos do reino para tratar com ela.
Os camponeses entreolharam-se surpresos, mas Lidia foi até o campo substituir a filha adotiva no trabalho. Lira voltou pouco depois, e curvou-se perante o poderoso sacerdote.
- O que deseja de mim, senhor? - Indagou temerosa a jovem.
- Apenas a impressão da palma da sua mão - declarou Tsomaq, retirando uma placa coberta de argila de dentro da liteira.
Obtida a impressão, deu dois talentos de ouro para Lira e recomendou aos camponeses que guardassem segredo sobre a visita, sob pena de consequências desagradáveis. Estes, prudentemente, assim se comprometeram.
Meses depois, por insistência do alto sacerdote, o rei Akhsar anunciou que iria casar sua filha com o príncipe que apresentasse a impressão da palma da mão da princesa Zarina gravada numa tabuleta de argila. Como a princesa jamais havia feito tal impressão, Akhsar imaginou que poderia escolher ele mesmo o melhor pretendente. Qual não foi sua surpresa quando, logo no segundo dia após a convocação, um príncipe apresentou-se no castelo com a requerida impressão numa placa de barro.
- Sou o príncipe Sarmat e vim requerer a mão de sua filha - declarou o homem, que estava agindo em conluio com o alto sacerdote.
Desconfiado de que algo de estranho estava ocorrendo, já que a princesa jurara que jamais fizera tal registro, o rei pediu uma semana ao pretendente para dar sua decisão. E então, despachou secretamente emissários para todos os pontos do reino, para comparar as impressões palmares de todas as jovens solteiras com cópias da impressão apresentada pelo príncipe Sarmat.
Um destes emissários localizou a jovem Lira, e, ao comparar a impressão dela com a cópia que levara, descobriu o engodo. Pressionada, Lira acabou por revelar que a impressão era, na verdade, dela. O emissário então, a levou ao palácio, onde o rei a reconheceu como a filha que supostamente fora sacrificada para apaziguar os deuses.
- Não posso lhe dar o trono, - admitiu Akhsar - mas posso lhe conseguir um ótimo casamento.
O príncipe Sarmat foi chamado à presença do rei, o qual lhe disse que poderia se casar com a verdadeira dona da impressão na placa de barro, a ex-camponesa Lira; ou poderia ser executado por tentar enganar o rei. Naturalmente, Sarmat preferiu a primeira opção.
Quanto a Tsomaq, o rei decidiu que, por tentar enganar os deuses, nada melhor do que ser sacrificado a eles como desagravo.
- [20-06-2022]