Contos de Valanka - A retomada da cidade
A porta se abriu e uma mulher de cabelos negros como a noite entrou na taverna. Seu rosto angelical quase mascarava a expressão de ódio em seu olhar. Caminhou pesadamente em direção a um homem caído sobre a mesa, claramente bêbado.
— Que merda, Bartok! — esbravejou ela. — Tem que ficar bêbado justo hoje?
O homem ergueu a cabeça como uma tartaruga saindo do casco.
— Se vou morrer, pelo menos quero estar anestesiado — disse ele, soluçando.
— Vamos homem, levante!
A mulher lhe envolveu nos braços e o ajudou a levantar.
— O Conselho não nos dará outra chance — disse ela abaixando o tom de voz.
O homem altamente embriagado dificultava o avanço por entre as ruas da cidade e os dois ganhavam terreno lentamente. Após algum tempo a mulher dobrou uma esquina e adentrou um beco. O sol, já baixo no céu, pouco iluminava o estreito beco em que o casal entrara, dificultando a visão.
— Cuidem dele — disse a moça, jogando o bêbado para dentro de uma porta no beco. — Preciso de um substituto para esse imbecil.
O homem que estava dentro do prédio agarrou Bartok cambaleante e disse não poder disponibilizar ninguém. Estavam todos ocupados com os preparativos, segundo ele.
— Mas que merda! — praguejou ela. — Vou sozinha então, não podemos perder esta oportunidade!
Sem o bêbado para dificultar seu avanço, a mulher avançou pela noite como um raio. No fim da tarde as pessoas se recolhiam para suas casas e os comerciantes fechavam as barracas para se prepararem para o dia seguinte. Apesar de menor, o movimento ainda era intenso nas ruas. Ela subiu uma escadaria larga em direção a Cidade Alta. Os prédios melhoram de qualidade e detalhes a cada esquina que passava.
Clérigos começavam a ser avistados naquela parte da cidade. Em geral não eram bem-vindos em Kzar. Quando se deu conta, estava cercada de Clérigos, como se eles saíssem só no período da noite para caminhar pela cidade. A mulher claramente estava desconfortável, seu ritmo havia mudado, movia-se mais cautelosamente por entre as ruas.
Enfim parou em frente a uma mansão que ficava perpendicular à rua em que descia. Janelas enormes de madeira projetavam-se por todo o prédio. Três andares cresciam sobre a rua, imponto sua majestade a quem quer que fosse. Na rua a sua frente pessoas mais bem vestidas caminhavam apreciando a recém-chegada noite. O frio tomou conta do ambiente com saída do sol, e casacos elegantes eram exibidos com orgulho. Os empregados saiam das casas para acender os lampiões e iluminar a rua.
Antes de bater na porta a mulher de cabelos negros respirou fundo, chacoalhou a cabeça como quem quer tirar um pensamento da mente e finalmente esticou a mão para pegar a argola da aldraba para anunciar sua chegada. Poucos instantes depois um homem bem-vestido recebeu sua visita e fechou a porta a suas costas.
— Boa noite, Lady Hannah — recebeu-a o criado, abrindo a porta para que ela passasse.
— Boa noite, vim falar com o Conselho de Anciões — disse ela sem delongas.
— Sim, milady, estou ciente — respondeu o criado engolindo seco. — Mas fui orientado a não deixá-la subir.
— E quem lhe orientou a fazer isso? — esbravejou ela.
— Fui eu!
Um homem barrigudo e levemente calvo se postava no alto da escada. Usava um sobretudo avermelhado, uma camisa e calça que claramente já haviam visto dias melhores, e que não acompanharam o ganho de peso de seu dono. De tão apertada a camisa, era possível distinguir o contorno de um relógio no bolso do homem.
— Guizza, como ousa me impedir de ver o Conselho? — questionou Hannah, claramente nervosa. — Sabe muito bem que tenho direito a lhes pedir uma audiência.
— Direito? — riu ele. — Você usa o nome de sua família para tentar influenciar o Conselho a me destituir do cargo.
— Você não tem ideia do que eu quero falar com eles, mas deveria ficar com medo realmente.
O homem desceu a escada calmamente, olhando para a mulher no hall que o desafiava com uma postura altiva.
— Não tenho medo de você, menina, sou o representante do Clericato nesta cidade e você é só uma garotinha assustada que acha que pode dar ordens.
— Você é só um fantoche de Valanka, e se me chamar de garotinha de novo farei com que você se arrependa amargamente.
— Ousa me ameaçar nessa casa? — questionou ele, tentando imprimir coragem na voz trêmula.
— Sabe bem, Guizza, que eu não faço ameaças, cumpro promessas. — disse ela aproximando-se do homem que era poucos centímetros mais alto que ela.
— Sua menina insol...
Antes de terminar a frase, Hannah já lhe agarrara os genitais e espremera como quem tenta abrir a casca de uma noz. Ele tentou gritar, mas sua voz se perdera e somente um gruído incompreensível se fez presente no hall.
Com um soco na garganta, a determinada mulher incapacitou sua vítima, que caiu no chão tentando puxar o ar, que era impedido pela dor de preencher seus pulmões.
— Leve-me até o Conselho ou se juntará a ele no chão — disse Hannah para o criado que estava em choque de tão assustado.
— Si...sim...sim, milady — assentiu ele, gaguejando.
Eles subiram as escadas com o criado indo a frente e os gemidos de dor de Guizza ao fundo. No segundo andar da casa, o guia de Hannah virou à direita, conduziu-a pelo corredor que margeava as salas e o hall logo abaixo. Ao chegar ao fim do corredor, virou à direita novamente e um novo lance de escadas se projetava a sua frente indicando o caminho para o terceiro e último andar.
— Lady Hannah, o Conselho a espera — disse o criado, de forma automática, como se nada tivesse acontecido a pouco no pé da escada.
Quando abriu a porta pode ver uma mesa longa em forma oval que ocupava grande parte da sala. Em sua extensão nove cadeiras dispostas de forma a dividir quatro para cada lado e uma na cabeceira completavam a casa do Conselho de Anciãos. A sala com pé direito alto e janelas grandes voltadas para a rua da frente, mas semicerradas pelas cortinas pesadas de tecido vermelho fosco, tinha um cheiro de mofo característico de que aquelas pessoas estavam fechadas ali havia tempo demais.
Hannah puxou a cadeira na cabeceira oposta e sentou-se.
— É falta de educação sentar-se sem ser convidada, minha jovem — repreendeu uma senhora a sua esquerda.
— Tentei ser recebida com educação, mas vocês parecem não querer me ouvir, então já abandonamos essa cordialidade.
— Onde está Guizza? — perguntou um senhor a direita.
— Está no chão que é seu lugar.
O rosto de alguns anciãos estava pálido.
— Você está mexendo com coisas que não entende — disparou um dos membros do conselho.
— Não tenho medo do peão do Clericato e menos ainda de vocês.
Fez uma pausa para olhar todos a mesa e garantir que tinha a plena atenção do conselho.
— Acredito que saibam a razão de eu estar aqui, tenho uma proposta para vocês.
— Sua proposta é guerra! — disse outro senhor a direita, mais adiante na mesa.
— Sim, uma guerra que pode libertar a todos da opressão do Clericato e deixar a riqueza de Kzar aqui, ao invés de pagar os impostos que Valanka nos exige todas as semanas.
Antes que os murmurinhos de protestos pudessem crescer a mesa, o mais velho a cabeceira, Cornélios, ergueu sua mão silenciando os demais.
— Lady Hannah, em respeito a seu pai iremos ignorar sua invasão e resolveremos a situação com Guizza para que suas ações não tenham maiores consequências, mas não se engane, o Conselho não será pressionado por ninguém, muito menos por você.
— Cornélios, se meu pai ainda estivesse vivo, você, acima de todos aqui sentados, deveria saber que ele lutaria pela liberdade de Kzar e não se calaria com medo de um homem que se esconde atrás de um título como o de Guizza.
— Milady nunca viu uma guerra em sua vida, não sabe as desgraças e dificuldades de uma.
As mãos enrugas e trêmulas de Cornélios mostravam a fragilidade de sua saúde.
— Seu pai sabia que o que temos hoje já é muito, se levarmos em consideração as liberdades que conseguimos negociar com o Clericato depois da Expurga.
— Liberdades? — gritou indignada. — De que liberdade está falando?
Todos a observavam atônitos. E antes que alguém pudesse falar Hannah se antecipou.
— Da liberdade ser julgado por um Clérigo e sentenciado a morte independente do que se tenha feito? — Tomou ar e continuou. — Ou ainda da liberdade de ter que ir para a casa todas as noites no toque de recolher que eles impõem, ou ainda da maravilhosa liberdade de dar setenta por cento dos meus ganhos a capital?
Sentiu seu rosto enrubescer de raiva.
— Me digam, de que liberdade estamos falando? — insistiu nervosa.
Todos fitavam Hannah sem demonstrar grandes emoções. Como era de se esperar Cornélios, a cabeceira da mesa, tomava a frente para responder.
— Se não tivéssemos cedido a Valanka, você provavelmente não estaria aqui. Sabe o que tivemos que passar para sobreviver depois da Expurga?
Antes que Hannah pudesse interromper Cornélios ergueu o tom de voz.
— Sem comida, sem armas, sem dinheiro e sem homens fortes o suficiente para trabalhar, tivemos que reconstruir a devastação que se tornou Kzar. Não tínhamos condições de nos reerguer. Não podíamos recrutar mais soldados, não conseguíamos comprar nada das outras cidades, e quando Valanka nos ofereceu o acordo, nós aceitamos de bom grado. Sem o acordo, Kzar não teria sobrevivido.
Alguns dos anciões presentes à mesa enxugavam as lágrimas da lembrança de tempos difíceis.
Hannah deu um tapa na mesa e se levantou num surto de fúria.
— Vocês ficam sentados a essa mesa lambendo suas feridas enquanto o mundo sangra!
— Pode se revoltar o quanto quiser minha jovem, mas ainda somos o Conselho de Anciãos e a decisão de ir ou não para a guerra é nossa! — afirmou Cornélios, claramente satisfeito de contrariar sua opositora. — E não deixaremos que num ataque de histeria você coloque tudo a perder.
— Neste caso, talvez não devesse existir um Conselho — disse ela em tom ameaçador.
— Blasfêmia! — disse um dos anciãos.
— Como ousa? — indagou outra.
— O Conselho existe a quatrocentos anos, não será você a desmantelá-lo — disse Cornélios, fazendo os demais se acalmarem.
— Talvez não sozinha...
Logo atrás de Hannah uma figura tenebrosa adentrava a sala. Um homem com uma máscara de crânio pintada de vermelho sangue, capa e vestes rasgadas movia-se como uma sombra logo atrás da jovem.
— Kazzak-ür! — disse, levantando-se num susto, o ancião mais próximo de Hannah.
— Você convocou os assassinos das montanhas?
Cornélios estava claramente amedrontado.
— Eles não têm problemas em entrar em guerra com o Clericato — disse Hannah.
— Você não sabe o que fez, minha jovem. Estes seres não respeitam a ninguém, a única coisa que conhecem é a morte, acha que serão leais a você?
— Não. — Respondeu ela. — Mas como você bem disse, a única coisa que eles conhecem é a morte, e isso já é suficiente para podemos começar uma guerra.
Hannah fez uma pausa para pensar na decisão que estava prestes a tomar. E sentiu-se aliviada ao dar a ordem.
— Faça o que tem que fazer!
O homem assentiu e sacou sua adaga que rapidamente perfurou o corpo frágil da anciã próxima a mesa. Os demais anciãos entraram em pânico. Mas não durou muito tempo. Sem que houvessem percebido, nove Kazzak-ür estavam presentes na sala, logo atrás de cada posição na mesa, como sombras traindo seus donos. Os homens de capa preta e máscara da morte eram rápidos e sorrateiros demais para que alguns velhos pudessem revidar.
O silêncio na sala era frio e sombrio. O sangue parecia correr pela mesa em direção a Hannah, que sentiu um calafrio subir a espinha.
— E Guizza? — perguntou ela.
O homem simplesmente assentiu com a cabeça.
— Muito bem, então vamos começar nossa guerra!
Calmamente ela se sentou a mesa onde o Conselho de Anciãos existiu por quatrocentos anos. Os assassinos sumiram tão rapidamente quanto haviam aparecido. Tão logo, Hannah se viu em uma sala de corpos inertes e sangue na mesa.
— Pai, espero ter tomado a decisão certa... — disse em voz baixa olhando para o busto de seu falecido pai atras da mesa.