Calendário sem memória
A depressão veio morar aqui em casa. Mas já faz tanto tempo que eu não me lembro quando. Me crucifico por não ter o registro: sou calendário e nem para datar eu sirvo. Me culpo por não lembrar o dia, porque sabendo quando foi, poderia ter um indício do que tirou seu riso.
Com o aumento da sua tristeza, o tempo se transformou. Nem mesmo meu sistema infalível de cronologia foi capaz de explicar como cabem dias eternos, dentro de uma semana corrida. Na tentativa desesperada de entender o que estava acontecendo, contei segundo por segundo de um dia. No final, couberam 10 anos na data 9 do calendário de Maria.
A verdade é que, desde que ela adoeceu, me tornei inútil. Porque nem o sistema universal do tempo é capaz de dar perspectiva de vida para quem se sente vazio por dentro.
O pior é que nos últimos dias, tudo se agravou. Ela só fica no quarto e daqui da sala eu não vejo nada. O único sinal de vida que escuto são sons de choros e gritos enfurecidos.
Escuto diariamente ela esbravejando que não aguenta mais a vida. Até ontem, achei que ela tinha raiva de viver. Só que hoje ela disse em alto e bom som que tem raiva de não viver. Tem ódio de só sobreviver.
Hoje eu repouso sobre o balcão da sala com as folhas coradas. Faço um esforço para parecer mais bonito na esperança de que ela saia do quarto e me note. Se só por um instante ela colocar seus olhos sobre mim, talvez lembre que amanhã é dia nobre.
O almoço em família, marcado entre ela e as filhas, me dá fé. Acredito no ritual de domingo, onde se esquece da tristeza e se compartilha o riso. Mas ela não saiu do quarto e desde o cair do dia, os grunhidos do seu choro e os gritos sumiram.
Passei duas horas em silêncio. Até que pessoas estranhas arrombaram a porta e correram para o quarto. Em meio a gritos e choros, homens uniformizados carregaram seu corpo.
Pensei em como eu não lembrava o dia em que a tristeza começou. Mas tive certeza que jamais esqueceria de 10 de fevereiro de 2018, a data em que tudo acabou.
Aline do Amaral