Retornável

O cavaleiro Magnus afastou com desconfiança a cortina pardacenta que separava a entrada da cabana do aposento sem janelas onde a bruxa Siv recebia seus clientes. Ele a encontrou, no ambiente mergulhado em penumbra, sentada atrás de uma mesinha sobre a qual estava um globo de cristal fracamente iluminado por dentro. Ao redor da bruxa, ao longo de prateleiras nas paredes, e pendurados dos caibros do telhado, estavam maços de ervas, peles de animais, jarros de cerâmica e vidro, e objetos de feitio estranho em madeira ou metal. O cheiro de especiarias, quase opressivo para narinas mais sensíveis, lembrou-lhe o do gabinete de um apotecário onde estivera muitos anos atrás.

- Você é Magnus Engdahl - declarou a bruxa, erguendo os olhos do globo luminoso por onde agora pareciam mover-se nuvens de chuva sob o luar.

- Sim. Você foi muito bem recomendada, bruxa Siv - redarguiu o cavaleiro, ainda segurando a cortina.

- Pois então, entre e sente-se, que não é de bom augúrio começar uma conversa no umbral da porta.

Magnus sentou-se muito circunspecto na única cadeira vaga, de frente para Siv.

- Você é mais um dos pretendentes à mão da princesa Adhelin? - Inquiriu a bruxa, encarando o cavaleiro de forma incisiva.

- Pretendo ser o único pretendente, na verdade - replicou Magnus. - Até porque, todos os que me precederam, voltaram do covil do dragão de mãos abanando...

- O dragão, provavelmente, anda de bom humor, ou suspeito que não teriam voltado - replicou Siv. - Mas, decerto que veio aqui para que eu o auxilie em sua empreitada.

- De fato. Dê-me algo para derrotar a besta, preferencialmente sem que eu me exponha em demasia - admitiu com franqueza o cavaleiro.

Siv lançou-lhe um olhar especulativo.

- Muito prudente da sua parte, embora não seja uma tarefa fácil - disse por fim. - Para obter o resultado que deseja, irei precisar de um dente do dragão.

Magnus ergueu os sobrolhos.

- Não podemos deixar essa parte para DEPOIS que eu tiver derrotado o dragão?

A bruxa fez um gesto negativo.

- Myrnath não é um dragão comum. Ou me traz o dente, ou nada feito.

O cavaleiro balançou a cabeça.

- Está bem... vou ver o que posso fazer.

* * *

Depois de deixar o cavalo preso à uma árvore, Magnus caminhou cautelosamente mais de 500 m até acercar-se da entrada do covil do dragão. Como um lembrete do triste fim que haviam tido outros menos afortunados, esqueletos e restos de armaduras ferrugentas jaziam pelo terreno em frente à caverna. O cavaleiro escondeu-se atrás de um rochedo e pôs-se a ouvir cuidadosamente; aparentemente, a besta não estava em casa, nem muito provavelmente a princesa raptada; ele poderia agir, se fosse bastante rápido, calculou.

- Um dente, preciso de um dente... - murmurou.

E começou a vasculhar os restos mortais, em busca de uma prova de que haviam servido de refeição para um dragão.

- Precisa de ajuda? - Indagou uma voz feminina às suas costas.

Magnus virou-se, assombrado, e viu-se diante da princesa Adhelin.

- Princesa! Vim salvá-la do dragão! - Anunciou Magnus exultante.

- Vai ficar para outro dia, o dragão foi às compras - replicou a princesa, braços cruzados.

- Mas isso é perfeito! - Exclamou Magnus. - Eu estou com um cavalo bem perto daqui, quando o dragão voltar, estaremos longe.

Adhelin fez um gesto negativo.

- Nem pensar. Não acha que é muito fácil vir aqui e me levar, sem ao menos lutar com o dragão? O que acha que vou pensar de você?

- Bem... - Magnus olhou hesitante para Adhelin. - Que sou o seu salvador?

A princesa deu uma risadinha irônica.

- Se eu quisesse apenas uma carona para casa, iria exigir ao menos um cavalo só para mim - redarguiu. - Mas ouvi você falar alguma coisa, antes que eu aparecesse... um dente, é isso?

Magnus lembrou-se do motivo que o levara até ali.

- Sim, um dente do dragão... se eu o levar, a bruxa Siv fará um encantamento que me permitirá derrotar o dragão! - Afirmou confiantemente.

- Os cavaleiros agora estão terceirizando o trabalho pesado? - Adhelin voltou a cruzar os braços. - Bom, não importa. Se você prometer que vai embora, creio que posso ajudá-lo.

Entrou na caverna e voltou pouco depois, exibindo um inequívoco dente de dragão.

- É isso o que procura?

- É mesmo um dente de Myrnath? - Questionou Magnus desconfiado.

Adhelin pôs as mãos nas cadeiras.

- Quer conhecer mais Myrnath do que eu?

Magnus pediu desculpas, pegou o dente, e correu de volta para o local onde prendera o cavalo. A sorte o favorecera, pensou, enquanto cavalgava para casa.

* * *

- Um dente meu? - Indagou Myrnath, ao chegar trazendo provisões.

- Um daqueles seus dentes de leite que guardou numa caixa - redarguiu a princesa. - Foi uma encomenda da bruxa Siv, ele disse; para que você fosse derrotado.

Myrnath soltou uma baforada de fumaça.

- Siv sabe como explorar esses idiotas - comentou. - O dente vai servir para qualquer outra coisa, menos para um encantamento capaz de me derrotar.

- Como tem tanta certeza disso? - Inquiriu Adhelin.

- Siv vende esses dentes como amuletos, - prosseguiu Myrnath - e eles só cumprem o seu papel enquanto eu estiver vivo. Portanto, em outras palavras, vida longa é o que a bruxa me deseja.

- Mas o tal cavaleiro pode voltar aqui, usando o amuleto... - ponderou Adhelin.

- Claro que vai voltar - replicou com tranquilidade Myrnath. - Os dentes naquela caixa... eles sempre voltam.

- [15-03-2022]

Alex Raymundo
Enviado por Alex Raymundo em 15/03/2022
Reeditado em 01/07/2023
Código do texto: T7473372
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