A libertação
Por duas vezes Tiploft mandou que trouxessem mais lenha, até que ficou satisfeito com o tamanho e a intensidade do calor da fogueira.
- Isso tudo tem que virar cinza - ressaltou apontando para o conteúdo do baú, devidamente esvaziado nas chamas: ossos humanos. O baú era, na verdade, um ossário, e quem quer que o houvesse preparado, não havia sequer se dado ao trabalho de separar os indivíduos.
- Estou me perguntando o que os Blodwell fizeram, para acabar desse jeito - comentou pensativo Oswyn Benthey.
- Certamente não foi boa coisa, ou teriam tido um enterro decente - replicou Tiploft.
- E quanto ao pedido que foi feito, de que o baú teria que ser levado para a casa? - Questionou Myles Bosby.
- Ainda podemos fazer isso, mas certamente o que Bethsabe queria é que não víssemos o conteúdo antes de abrir. Eu não tinha nenhuma intenção de cumprir essa parte do acordo - replicou Tiploft.
- Eu desconfiei do que estavam escondendo, o tempo todo - afirmou Portyngton com orgulho. - A mim, não enganam!
- Tudo certo, mas e agora? Como saímos daqui? - Inquiriu Oswyn. - Se a nossa volta ao Bagre-Pintado depender da boa vontade dos espíritos dos Blodwell, desconfio que também não irão honrar a parte deles...
- Os espíritos foram anulados - assegurou Tiploft, fazendo um gesto para as chamas. - Qualquer controle que tivessem sobre este lugar, já não existe mais; o que vamos fazer é voltar ao solar e ver o que aconteceu depois que o feitiço foi quebrado.
Esperaram que os ossos fossem consumidos pelas chamas, e depois que só restaram fragmentos calcinados e montões de cinzas, usaram as pás para encher o buraco onde estivera o baú. A laje foi recolocada no seu lugar e Tiploft finalmente resolveu que levariam a caixa com eles.
O retorno foi feito em silêncio e expectativa, sob o céu cinzento de onde a neve voltara a cair. Finalmente, saíram da floresta em frente ao solar e constataram que as coisas haviam mudado bastante durante as poucas horas em que haviam ficado fora: a mansão agora estava em ruínas, com a porta principal quebrada e seus pedaços caídos sobre os degraus que conduziam à ela.
- Como eu previa - comentou Tiploft. - A ilusão que mantinha esse lugar foi desfeita.
Entraram carregando o baú e o depositaram no saguão onde haviam quebrado o sigilo. Não havia mais quadros nas paredes, cuja pintura estava suja e descascada.
- Sem espíritos, sem volta para casa - ponderou Oswyn.
Todavia, para surpresa de todos, a voz de Bethsabe fez-se ouvir no aposento.
- Obrigada - ela disse. - Cumpriram a sua parte no acordo, e nós cumpriremos a nossa.
- Você não disse que o baú era um ossário, - replicou Tiploft - e que queimar os ossos quebraria o encanto do Solar dos Blodwell.
- Não teriam ido se eu lhes dissesse francamente o que queríamos que fizessem - redarguiu a voz. - Mas como são aventureiros e exploradores, previmos que ao encontrar os ossos tomariam a mesma decisão que qualquer um dos seus pares: queimar tudo numa fogueira; não nos decepcionamos.
Três pares de olhos encararam Tiploft, que franziu a testa.
- Está nos dizendo que fizemos exatamente o que queriam? - Questionou.
- Sim. Você libertou nossos espíritos deste plano material ao qual estávamos presos pela magia dos nossos inimigos - assegurou Bethsabe. - Agora, finalmente poderemos ascender para um plano superior.
As paredes ao redor do grupo começaram a tremeluzir, como se fossem uma miragem. A voz de Bethsabe fez-se ouvir mais uma vez, antes que tudo ficasse desfocado:
- O tesouro prometido está dentro do baú que trouxeram. Podem conferir quando voltarem aos seus quartos, na hospedaria.
* * *
Oswyn Benthey acordou na manhã seguinte com a cabeça doendo e a boca seca; o vinho servido naquela hospedaria certamente não havia sido misturado com água, e ele se excedera um pouquinho... demais. Tivera um sonho esquisito, onde o grupo havia sido sequestrado por espíritos em busca de libertação, e que haviam queimado ossos humanos no meio de uma floresta coberta de neve; tudo muito bizarro. Afastou as cobertas, espreguiçou-se, e ao olhar para o piso ao lado da cama, viu um grande baú metálico, com a tampa aberta. Piscou os olhos, estupefato.
O baú estava cheio de moedas de ouro.
- [16-01-2022]