SEU OTAVIANO
Ele já passou dos noventa anos. Quem com ele convive, diz que parou, fisicamente, nos cinquenta. É magro e elétrico. Saúde excepcional, diz que jamais teve uma única dor-de-cabeça na vida. Quando as pernas lhe doem, ele simplesmente passa pomada de sebo de carneiro e ...
- Pronto, fiquei bom!“- exclama sorridente. O segredo da minha boa forma é o consumo de açúcar refinado” - costuma dizer sorrindo, quando lhe perguntam sobre sua longevidade.
Ele, de fato, come doce diariamente. Nunca em grandes quantidades, é certo, mas jamais dispensa uma boa compota caseira de mamão ou de abóbora, acompanhada por generosa fatia de goiabada com queijo Minas, após o almoço. À noite toma uma sopinha de legumes batidos, com uma colher de requeijão cremoso. A refeição matinal é digna de nota. Para começar, suco de couve. Logo, vem uma tigela onde se juntam a coalhada, a aveia, duas ameixas secas picadas, farelo de trigo, melado e uma colher de sulfato de magnésio. Depois, café puro com pão, recheado de queijo de Minas.
Seu Otaviano tem uma notável capacidade de absorver impactos emocionais a que a vida o tem submetido. Perdeu um neto, já adulto, tragicamente. Chorou muito, mas deu a volta por cima. Tempos depois, faleceu o filho único, vítima de complicações diversas. Ele e a mulher ficaram chocados. Ela não conseguiu superar as dores das perdas e mergulhou num processo de recolhimento, que contribuiu bastante, para sua morte. Complicações respiratórias completaram o quadro. Faleceu justo no dia em que comemorava noventa e um anos.
Os familiares de seu Otaviano ficaram preocupadíssimos. Cercaram-no de todos os cuidados e carinhos.
Ele se abateu, chorou bastante, mas levantou a cabeça e seguiu em frente, retomando suas atividades diárias de prestador de serviços religiosos à comunidade, além da responsabilidade de fazer as compras e efetuar os pagamentos bancários. Jamais permitiu que empregada ou parente o fizesse em seu lugar.
Não é minha intenção me alongar mais nos hábitos do seu Otaviano. Acredito que sua maneira de ver e resolver os problemas do cotidiano é que acabam por torná-lo uma das mais interessantes figuras que já conheci.
Violência, por exemplo. Sempre que ouve em sua casa o noticiário da TV sobre guerra de quadrilhas de traficantes nos morros ele, exaltado, dispara comentários do tipo:
- Isso é falta de determinação de nossas autoridades! Se eu fosse Chefe de Polícia, chegava lá com mil soldados, subia o morro e ordenava que os moradores de bem descessem. Só sobrariam os malfeitores e aí seriam todos presos! Em pouco tempo, a violência estaria sob controle.
- Mas seu Otaviano, os bandidos estão muitíssimo mais armados que os soldados...
- É por isso que não se resolvem as coisas nesse país! Tem sempre alguém para rebater as boas ideias.
- Outra coisa – prosseguia ele. Se eu fosse autoridade, às seis horas da manhã já estaria de pé, indo de repartição em repartição pra ver se estavam todos trabalhando mesmo.
- O Jânio também fazia isso e...
- Aquele era doido. O maior erro dele foi condecorar o Guevara. Virou comunista.
- O Jânio era comunista, seu Otaviano?
- Se não era, tinha jeito de ser. Onde já se viu condecorar o Guevara, aquele comunista. E com a Ordem do Cruzeiro do Sul! O Lacerda é que estava certo. Tinham de tirar o beberrão do Jânio, do Catete!
- Calma, seu Otaviano! A sede do governo, quando o Jânio foi eleito, já era em Brasília.
- Mais um erro. Tudo culpa daquele outro larápio, o Juscelino, que ficou rico às custas das propinas cobradas dos empreiteiros que construíram a maldita Brasília.
- Mas seu Otaviano, o Juscelino terminou o governo e vivia no Brasil, com a família, sem qualquer tipo de luxo. Onde estava a riqueza?
- Só de pensar no Juscelino já me dá azia.
- Está bem, seu Otaviano. Vamos falar da sua vida aqui no bairro. Que lugar privilegiado esse, em que o senhor mora. Árvore pra todo lado.
- Bonito, de fato, mas tem lá os seus problemas. Veja aqui da janela. Mal consigo enxergar o outro lado da rua. Essa amendoeira quase entra pela minha sala.
- O senhor já pediu ao Departamento de Parques e Jardins para agendar uma poda?
- Cansei de telefonar e eles sempre dizem que ainda não é época de poda na minha rua. Enquanto isso, a árvore vai crescendo...
- O senhor podia pedir a um dos porteiros do seu prédio que, durante a noite, subisse na árvore e cor-
tasse os galhos que mais o incomodam.
- De maneira nenhuma eu passaria por cima da lei! Vou aguardar que eles possam vir e rezar para que o crescimento dos galhos não me impeça de fechar a janela ou até me quebre uma vidraça.
Seu Otaviano é assim. Respeito à lei, acima de tudo!
Quando lê os jornais, fica estarrecido com a corrupção e o descaso no Congresso.
- Esses políticos têm de cumprir suas promessas de campanha. Não podem, de maneira alguma, desrespeitar as ideias apresentada nos comícios.
- Comícios, seu Otaviano? Hoje em dia só se faz showmício, ou fica vazio.
- Como é? Showmício? O que é isso?
- É assim, seu Otaviano: o candidato está achando que poucas pessoas vão aos seus comícios. Procura alguns artistas em evidência e os contrata para que se apresentem no início, no meio e no fim das falas dos candidatos. Estes fazem “vaquinha” e pagam o cachê. Os showmícios são procuradíssimos pelos fãs dos artistas e vários deles acabam votando nos cândida-
tos que os promovem.
- Mais isso sai caro! Os cachês dos artistas devem ser muito altos! Além do mais é uma indignidade. No tempo do Lacerda isso não acontecia. Sua eloquência como orador é que atraía as multidões.
- Os tempos mudaram, seu Otaviano...
- Para pior. Os candidatos têm de seguir o que prometem em seus discursos, ou não se elegerão para um novo mandato!
É, como seu Otaviano, nunca mais. Com uns quatrocentos dele na Câmara dos Deputados, uns sessenta no Senado, meia dúzia de Ministros selecionados por ele, como Presidente, quem sabe esse país não tomava jeito?