CONTO DE NATAL III
“Mais um Natal... Este ano espero não ter problemas lá pelas bandas do Brasil. Terra tão bonita e tão cheia de gente complicada. Agora, antes de abrir minha boca, vou ver bem onde estou pisando. Há dois anos seguidos que acabo preso e em um deles os presentes tiveram de ser entregues no dia seguinte. Desse jeito, meu prestígio vai piorar e olha que já não anda nada bom. Cada dia menos crianças acreditam em mim. Ainda vou acabar tendo de contratar um marqueteiro para fazer minha imagem retornar ao que era há décadas atrás e eu não tenho dinheiro para pagar os caríssimos serviços dessa gente. Meu rádio não tem conseguido sintonizar as estações do Brasil, de maneira que não sei o que está ocorrendo por aquela terra de Gonçalves Dias, de Vinícius de Moraes, de Ciro Monteiro, de tanta gente boa que conheci quando fazia minhas entregas tranquilas lá por aquelas bandas onde um dia já cantou e foi cantado, não só o sabiá como a sabiá.”
A chegada de Mamãe Noel o trouxe de volta de suas reflexões.
- Tem alguma coisa a me dizer, querida?
- Nada de importante. Só tenho notado que você anda rabugento e fechadão – respondeu Mamãe Noel.
Papai Noel já ia reclamar das observações da esposa, mas considerou que ela, realmente, tinha razão. A cada dia que passava, ia ficando mais mal-humorado e não era justo descontar em cima de quem só lhe dava carinho e perdoava seus erros de marido ranzinza.
- Diga mais. Prometo não resmungar e nem interrompê-la.
- Você precisa ser menos desligado. Está bem que a bondade é seu maior traço de personalidade, mas um pouco de malícia não ia lhe fazer mal. Afinal, os jovens e até as crianças de hoje em dia estão muito mais “adultos” do que aqueles que nós conhecemos há algumas décadas passadas. Um pezinho atrás talvez o livrasse de alguns aborrecimentos. É o que eu penso.
Noel ouviu com atenção e reconheceu o quanto eram sensatas as observações da esposa, mas ficou a matutar:
“Como alguém, na minha idade, pode mudar um traço tão marcante de personalidade, de uma hora para outra?”
Sorriu para a companheira, abraçou-a e depo- sitou em sua testa um carinhoso beijo, como se, através desse gesto, estivesse concordando com o que ela lhe sugerira.
Conferiu a lista dos presentes, assumiu a boleia do trenó, sacudiu suavemente as rédeas e deu às renas a ordem de partida, rumo ao Brasil, ou mais precisamente, para Brasília - futurística cidade criada pelos gênios de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, sob inspiração e apoio do sonhador Presidente Juscelino Kubitschek, conforme lera numa Enciclopédia que lhe chegara às mãos.
A viagem transcorreu, numa velocidade espantosa, pois Papai Noel precisava fazer todas as entregas, no mundo, por volta da meia-noite. Levando em conta as diferenças de fusos horários, a tarefa era, simplesmente alucinante e, por conta disso, a chegada à capital do Brasil acabou acontecendo no dia vinte e três de dezembro.
Sem perceber o erro de cálculo, Noel estacionou o trenó junto ao lago Paranoá e estranhou que não houvesse quase ninguém nas ruas. Tudo na maior calma.
Das casas, nem um único som que se pudesse associar às comemorações habituais de todos os anos.
Verificando o relógio, Noel logo se deu conta do engano cometido.
Já ia partir para repor tudo nos eixos, quando teve a ideia de conhecer melhor a cidade, tão elogiada por sua arrojada arquitetura, como lera na Enciclopédia.
Estacionou o trenó debaixo de um arvoredo, recomendou silêncio às renas e saiu, carregando seu inseparável saco de presentes, rumo ao centro da cidade.
Caminhando pelas longas avenidas ia matutando:
“Que cidade estranha! Nem um só cruzamento até aqui. Tudo muito árido. Só se anda por estradas. Onde foram parar as ruas?”
Quando deu por si, estava na Praça dos Três Poderes, diante do Congresso Nacional. Ficou sem entender tanta ostentação. Afinal, a Enciclopédia também dizia que a população do Brasil era formada, em sua maioria, por pessoas pobres e remediadas. Quem será que morava naquele palácio, ali perto? Um rei? Certamente que não, porque ele se informara que o Brasil era um país de regime republicano. Por que tanto luxo só para a família do presidente?
Enquanto caminhava, o dia ia raiando.
Que espetáculo magnífico pôde presenciar: a alvorada na capital do Brasil. Contando, poucos acreditariam. Noel ficou abismado com o soberbo espetáculo que a Natureza lhe oferecia, a ponto de deixar no chão o saco de brinquedos e continuar caminhando em direção ao sol nascente.
Nesse momento, uma caravana de jovens, com os rostos pintados, chegava à praça e começava a limpar as ruas com vassouras e sabão.
“Que bonito! Os jovens de Brasília acordando cedo para fazer uma faxina em frente a esses prédios majestosos, certamente para deixar as ruas mais limpas no dia de Natal. Vou ajudá-los” - animou-se Noel.
- Ei, gente, tem um cara vestido de Papai Noel e ele está querendo entrar no Movimento de Defesa da Democracia Contra a Corrupção. Vamos dar uma vassoura para ele - gritou um dos caras-pintadas, que parecia estar à frente da “equipe de limpeza”.
- Estou chegando agora e gostaria que me explicassem o que pretendem, meus jovens.
- A gente está protestando contra a corrupção. Queremos um país de pessoas honestas! Vamos cantar o Hino Nacional, minha gente!
“Quando eu contar para a Mamãe Noel o que estou vendo ela vai me dar razão porque eu ainda acredito na bondade das pessoas. Essa rapaziada está querendo acabar com a corrupção de algumas pessoas e almeja um futuro melhor para si e seus descendentes. Estou com eles.”
Noel teve a cara pintada de verde e amarelo, deu as mãos aos jovens e, embora nunca tivesse ouvido o Hino Nacional Brasileiro, sentiu que as lágrimas lhe rolaram pela face quando uma conhecida cantora de música popular entoou, em ritmo bem lento, a letra do mesmo. Ao final, correram todos em direção ao magnífico palácio, arrastando Noel, e tentaram subir a rampa. Queriam ser recebidos pelo Presidente, a qualquer custo.
O Comandante da Guarda procurou argumentar com o líder do grupo, mas os gritos acabaram por abafar sua voz. A um gesto seu, os guardas cerraram fileiras e sacaram os sabres. A multidão, enfurecida, continuou avançando, até que o Comandante deu a ordem de atacar.
Os soldados partiram em direção à massa, com tal disposição, que os manifestantes estancaram e começaram a correr de volta.
Nesse instante, o chefe do grupo, que estava ao lado do estupefato Papai Noel, abaixou-se, pegou uma pedra e a atirou em direção aos guardas, ferindo um deles no rosto.
Noel, gordo como era, parou de correr e foi logo alcançado, sendo derrubado com uma rasteira e levado preso, enquanto os demais jovens escapavam em correria louca pelos gramados.
E lá se foi Papai Noel, preso antes mesmo de começar, oficialmente, sua visita natalina à capital do Brasil, não sem antes conseguir do comandante da guarda, que alguém lhe fosse buscar o saco de brinquedos que deixara para trás. No sub-solo do palácio, Noel foi fichado, mas quando era encaminhado à delegacia mais próxima, saiu da garagem uma limusine preta, cuja chapa indicava ser de algum deputado que fora visitar o Presidente. Ao passar por Papai Noel, o vidro da limusine foi aberto e o ilustre parlamentar quis saber o que havia ocorrido.
O chefe da guarda foi incisivo:
- Excelência, esse Papai Noel subversivo liderou um grupo de jovens que tentou invadir o palácio e acabou jogando uma pedra que feriu um de nossos soldados. Está indo preso.
- Excelência, eu não joguei pedra alguma. Pensei que estava ajudando os manifestantes que protestavam contra a corrupção e me juntei a eles. Eu sou Papai Noel, cheguei antes da hora e estou esperando a noite em que se comemora o nascimento do Cristo para fazer a distribuição dos presentes às crianças de Brasília. Está tudo aqui neste saco. Será que pode interceder por mim? Dou-lhe a minha palavra de honra que nada fiz de errado. Estão cometendo um terrível engano.
O deputado olhou para Noel, pensou um pouco e, chamando o chefe da guarda, pediu que lhe fossem concedidas umas duas horas, para que ele investigasse a origem daquele saco que o “Papai Noel” dizia ser de brinquedos. Após a apuração dos fatos ele lhe devolveria o arruaceiro, para que a “justiça fosse feita”.
O chefe concordou e Papai Noel embarcou na limusine, timidamente, tendo a seus pés o inseparável saco.
- Diga-me, meu caro Papai Noel. O que, o senhorcarrega neste saco, do qual não se separa um só ins- tante? – foi logo perguntando Sua Excelência, em meio a teatrais sorrisos de compreensão e bondade.
- Brinquedos, Excelência. Os brinquedos que as crianças de Brasília me pediram por carta.
- Diga-me uma coisa, nobre colega – o parlamentar sempre achava que estava tratando com seus pares – como é que cabem todos os presentes neste saco?
- É um saco mágico, Excelência. Basta que eu introduza a mão nele e pense no presente, que ele logo aparece na minha frente.
- Interessante...Qualquer pedido?
- Qualquer um, Excelência!
- Não importa o tamanho e o peso? Imagine se alguma criança pedisse um navio?
- Excelência! Crianças não são como adultos. Elas jamais pedem coisas grandiosas.
- Está certo, mas vamos imaginar que um dia, alguma criança lhe pedisse um avião de verdade?
- Nesse caso, ela o ganharia, mas tenho certeza que isso jamais acontecerá.
- Alguma delas já lhe pediu dinheiro?
- Nunca, Excelência. Crianças gostam de objetos que lhes digam ao coração. Dinheiro é papel ou metal. Nada de interessante para elas.
- E se um dia, alguma lhe pedisse dinheiro? O senhor daria? O senhor seria capaz de tirar quanto dinheiro quisesse deste saco?
- Sem qualquer dúvida, mas tenho total convicção de que jamais tirarei dinheiro do saco pelo que já lhe disse antes.
- E se esse dinheiro fosse para atender a uma causa humanitária, como por exemplo, a construção de um abrigo para crianças órfãs ou até para uma fundação de amparo à infância desvalida?
Papai Noel calou-se e desviou os olhos do deputado. Certa vez ele havia recebido uma cartinha de uma menina da África, rogando que olhasse pelas crianças daquele continente, sem fazer qualquer pedido de presente para ela e ele resolvera, naquele ano, distribuir dinheiro, de casa em casa, para todas as crianças africanas pobres. Entre brinquedos mil, havia algum dinheiro vivo.
Voltou a encarar o deputado e respondeu, com voz firme:
- Nenhuma criança, por sua livre vontade, seria capaz de fazer tais tipos de pedidos. Elas ainda não têm noção das mazelas do mundo e da má distribuição de rendas, Excelência.
O nobre deputado deu ordem ao motorista para que circulasse pela cidade, enquanto entrevistava Papai Noel. Ele achava que estava lidando com um tipo de lunático, mas ficou inquieto com aquela história de que seria capaz de tirar do saco quanto dinheiro quisesse. Resolveu levar adiante a entrevista.
- O senhor me daria uma prova de que pode tirar qualquer presente deste saco? Tiraria um deles, agora, para matar a minha curiosidade?
Noel fitou o homem e respondeu:
- Eu só posso tirar daí os presentes que estão na lista dos pedidos feitos pelas crianças. Assim mesmo, só por volta da meia-noite, na própria casa do autor da carta.
- O senhor consegue estar em todas as casas de crianças do mundo, por volta da meia-noite do dia de Natal?
- Certamente, mas não posso lhe contar o segredo.
- Meu filho escreveu uma carta para Papai Noel, eu li e sei, o que ele quer. Será que o senhor poderia me dizer o que ele pediu?
- Não devo dizer a ninguém, nem mesmo ao pai da criança.
O Deputado deu um sorriso e ficou pensando como aquele velho era ladino. Ele já havia comprado os presentes do filho e queria ver se o pegava na mentira.
- Olhe aqui, Papai Noel. Eu queria muito ajudar o senhor, mas como não facilita as coisas, vou devolvê-lo às autoridades. Acho que se não me disser o que real-mente tem nesse saco, vai acabar tendo de responder a processo por agressão a um membro da Guarda do Palácio e até pode ser convocado para depor numa CPI. Com toda essa história de mala pra cá, mala pra lá, dinheiro na cueca e em paraísos fiscais, uma CPI do Saco de Papai Noel ia cair como uma luva. Imaginem Papai Noel, vestido a caráter, falando por cerca de doze horas e respondendo a uma enxurrada de perguntas tolas de meus colegas. Seria um novo prato feito para a imprensa, não apenas do Brasil, mas do mundo.
Noel ficou sem ação. Ele não sabia mentir. Não contara toda a verdade e agora estava numa situação delicada. Decidiu que o melhor era falar tudo na presença das autoridades. Elas iriam, certamente, entender.
- Obrigado pelo interesse de Vossa Excelência, mas nada posso lhe dizer. É melhor retornarmos ao palácio, que sei como me explicar às autoridades
- Se assim prefere... Motorista, retorne à garagem. Vamos devolver Papai Noel às autoridades, como ele quer.
Às dezenove horas do dia vinte e três de deze bro do ano de dois mil e cinco, Papai Noel dava entrada na delegacia mais próxima ao Palácio Presidencial, acusado de haver atirado uma pedra num guarda, durante manifestação estudantil de caráter subversivo da ordem pública.
O Deputado Sinfrides das Dores, após o diálogo com Papai Noel, ficou pensativo. A situação do governo diante das denúncias de corrupção estava cada dia mais insustentável. Eram CPIs sobre CPIs, todas espremendo testemunhas que acabavam por abrir as bocas, complicando, cada vez mais, as pessoas e autoridades ligadas à cúpula governamental. Aquilo tinha de ter um basta, mas, na visão dos poderosos envolvidos, quanto mais CPIs houvesse, com perguntas tolas a fazer, mais distante ia se tornando a tentativa de se apurar a verdade.
“Já imaginaram uma CPI do Papai Noel ?- pensou o deputado Sinfrides das Dores. Um verdadeiro presente dos céus para o meu partido. Mais tumulto, mais arguições inócuas e tudo acabaria em pizza, como sempre”.
Retornou à Câmara dos Deputados, reuniu-se com a bancada, contou da entrevista com Papai Noel e apresentou seu plano. Foi aplaudido, de pé. Se tudo correspondesse ao que estava planejado, ninguém - ou quase ninguém – seria punido e o deputado já se via em campanha para o Senado Federal, tendo por lema: “Deus sempre esteve comigo, mesmo quando ninguém mais cria em mim”.
Saiu direto dali com um pedido de habeas corpus para Papai Noel, despachado pela justiça imediatamente. Por volta das vinte horas e vinte minutos, justo quando o detetive “Mão-de-pilão” ia começar o “interrogatório”, entrou o delegado na sala com o despacho do Excelentíssimo Doutor Juiz de plantão e ordenou a imediata soltura de Papai Noel.
- Nem uns cascudos nesse cara, doutor delegado? Nem um murro, de leve, no nariz?
- Nada, nada, Mão! Conheço bem essa história de cascudos e murro de leve. O velho ia parar no Hospital de Base de Brasília e eu entrava em cana, pois sou responsável por sua integridade física. Não me meta em confusão! Papai Noel, acompanhe-me, por favor, até minha sala.
- Certamente a Justiça entendeu que eu tinha razão, doutor.
- Como não fizemos sua ficha e o habeas corpus se refere apenas ao cidadão que atende pelo nome de Papai Noel, o senhor está livre e pode levar esse saco, mas me diga uma coisa: como se faz para abri-lo? Todo mundo por aqui tentou. Usaram de tudo: tesoura, chave-de-fenda, martelo. Até tentaram pôr fogo no saco, mas ele resistiu a tudo. Ah, já ia me esquecendo: se precisar de abrigo por esta noite, o Deputado Sinfrides das Dores deixou este cartão com o seu endereço, para que o procure.
Noel pegou o cartão e o pôs no bolso, sem ler o que estava escrito. Já ia saindo quando o delegado avisou:
- O senhor não pode deixar a cidade, até que a Justiça o libere. Passe bem, Papai Noel.
O velho, normalmente brincalhão, estava amuado. Mamãe Noel o alertara para sua extrema ingenuidade diante das pessoas e ele acabara por repetir a dose. O pior é que, por seus princípios de respeito à lei, ele corria o risco de deixar milhões de crianças sem presentes naquele Natal. Caminhou pela agora alvoroçada Brasília, tomada por gente que fazia as derradeiras compras natalinas. Ninguém lhe deu atenção. Cruzou, repetidas vezes com uma infinidade de “Papais Noéis”: gordos, magros, brancos, negros, índios e niseis. Ele era apenas mais um, vestido daquela forma, em meio à multidão.
Sua contrariedade era evidente. Como haviam deturpado sua imagem rubicunda e bonachona! Um total desrespeito.
“Eles não perdem por esperar. Quando der meia-noite, quem vai ser o único a distribuir os presentes às crianças? Quem vai chegar de trenó? Céus! Preciso encontrar o meu trenó. Sei que o deixei perto de um grande lago. Melhor perguntar.”
Escolhendo a esmo, pegou pelo braço um homem alto, trajando elegante terno negro, de riscas. Ao fitá-lo - surpresa! - era o deputado Sinfrides das Dores, que, junto a outros homens em trajes semelhantes, também fazia as compras de última hora
- Colegas, vejam quem está aqui! Papai Noel. Em carne-e-osso, gordura, barbas brancas e com seu indefectível saco - gritou alegremente o parlamentar.
Logo se formou uma roda em torno de Papai Noel e todos começaram a fazer perguntas ao mesmo tempo, enquanto lhe davam tapas de confraternização nas costas.
- Procurando por mim, Papai Noel? - conseguiu falar o deputado, depois de impor silêncio aos nobres colegas. Vamos até minha casa para trocarmos ideias.
E saiu arrastando Papai Noel pela manga de sua camisa vermelha de seda, seguido pelas outras Excelências.
Entraram todos em luxuosas limusines e rumaram para a mansão do Deputado Sinfrides, às margens do lago Paranoá.
A casa era suntuosa. Jardins em volta, arvoredo plantado, gramados extensos, três piscinas, sendo uma aquecida, duas quadras de tênis, seis churrasqueiras, sauna seca e a vapor, sala de ginástica, toda aparelhada.
O corpo da casa era composto de sete quartos (o deputado dizia que esse número lhe havia sido rec mendado por seu guru e ele o usava constantemente), três salões com ar condicionado central e aquecimento, duas salas de jogos para adultos, onde se via, ao centro, uma roleta de cassino e ao lado, um balcão com globos transparentes, onde se misturavam esferas numeradas, prontas para o sorteio das cartelas de bingo.
- Tudo para divertir os amigos e as famílias, dizia to deputado. Tudo na mais pura inocência. Aqui na minha casa, ninguém joga a dinheiro! - dizia o parlamentar, batendo com força o punho na mesa de jacarandá da Bahia que decorava seu escritório, construção anexa à casa principal, onde costumava se reunir com a bancada, antes de tomar qualquer decisão em plenário.
Os empregados, quando ouviam essa frase, tinham de se conter para não rir. A mansão do deputado era conhecida, na Câmara, como “O Cassino do Sinfrides. ”.
O anfitrião tomou a palavra:
- Amigos. Prefiro chamá-los assim, pois estamos reunidos em minha casa nessa condição. Além do mais, como Papai Noel não é nosso par no Congresso, não vamos formalizar esse encontro, mas tenham todos certeza de que, o que aqui for resolvido, certamente será encaminhado a plenário, com amplas possibilidades de ser aprovado.
Noel estava sem palavras. Nunca vira tanto luxo reunido em um só local e olha que já visitara mansões no mundo todo.
Enquanto assim pensava, viu passar diante de si uma bandeja de canapés de faisão. Ele nem sabia como agir em tal situação. Sorriu e recusou. Logo o garçom já aparecia com outra iguaria por ele desconhecida. Noel somente gostava da comidinha caseira feita por Mamãe Noel , lá na Lapônia. Ele e os duendes se empanturravam de pratos altamente gordurosos e sobremesas ricas em açúcar. Nada do que circulava na mansão se aproximava das delícias feitas por sua es- posa.
- Como lhes dizia, amigos, encontrei esse bondoso homem que se diz Papai Noel e ele me contou que nesse saco tem dinheiro. Só que ele não quer dizer como abri-lo e ninguém na delegacia, segundo ouvi falar, foi capaz de fazê-lo. Talvez um de vocês seja mais convincente do que eu.
- Papai Noel - foi logo dizendo um Deputado baixinho, calvo e gordo, aparentando estar passado dos setenta - eu posso lhe garantir que se o senhor nos disser quanto tem neste saco, nada de ruim lhe acontecerá. Se for uma quantia razoável, aí por volta de um milhão de dólares, o senhor fica com quarenta por cento e divide o restante conosco. Afinal, para quê uma criança quer dinheiro? Nós, deputados ganhamos muito pouco, o senhor deve saber. O Sinfrides, por exemplo, mal con- segue, com o salário de deputado, fazer a manutenção de sua piscina aquecida. Pense consciente e patrioticamente. Seu país merece este sacrifício.
Todos os presentes estavam de boca aberta. Desde quando Papai Noel era brasileiro? Que história
era aquela de tocar-lhe os brios de patriota?
O senador Jeremildes Simplício tomou a palavra, pela ordem, e procurou minimizar a falta de conhecimento histórico e geográfico do colega que o antecedera.
- O nobre Deputado Sementrino Cativante, no seu entusiasmo costumeiro, acabou por antecipar um projeto que certamente apresentará, logo após o recesso do Congresso, propondo a cidadania brasileira para o Papai Noel. Em nome da maioria do Congresso, pretendo pedir que Papai Noel seja convocado a depor na CPI que vou instaurar, destinada a apurar o que há realmente em seu saco. Vai ser denominada CPI do Saco de Papai Noel. Devemos dizer a ele o que isso significa: terá de falar a verdade ou entrar na justiça para mentir com garantias, mas certamente não escapará de ser bombardeado, por mais de doze horas, por perguntas das mais diversas naturezas, como, por exemplo, se usa cuecas, de que cor, onde foram compradas, qual a origem do dinheiro que está no saco, se declarou esse dinheiro no Imposto de Renda da Lapônia, se seu trenó está registrado no Detran da Lapônia, se está em dia com o IPVA do veículo, se alimenta, adequadamente, as renas, se lhes dá descanso semanal, se paga o INSS de Mamãe Noel em dia, se os duendes têm carteiras de trabalho assinadas e assim por diante. Isso sem contar as infindáveis reconvocações. O que tem a nos dizer, Papai Noel?
Noel não respondeu de imediato. Sua cabeça girava. Estava preocupadíssimo com a segurança de suas renas e do trenó e nem prestara atenção ao discurso de Sua Excelência, mas a julgar pelas expressões fechadas a sua volta, tinha sido coisa séria.
- Amigos - se me permitem tratá-los assim - meu tempo está ficando curto e confesso que pouco entendo do que dizem. Acreditem ou não, eu sou Papai Noel e estou disposto a provar isso agora mesmo, ainda que seja obrigado a quebrar a regra de ética que sempre jurei manter por toda a vida. Já é o terceiro ano seguido que sofro contratempos aqui por este país tão lindo, mas habitado por gente tão complicada. Tenho a declarar que minha missão única é entregar presentes às crianças do mundo todo na noite de Natal e vou fazê-lo, custe o que custar. Querem que eu tire dinheiro de dentro do saco para que acreditem? Pois vou fazê-lo agora.
Os aplausos foram gerais. Vivas a Papai Noel ecoaram pela mansão. Um dos Deputados tentou, sem sucesso, entoar o mote “O povo, unido, jamais será vencido”, mas os demais quase o esganaram e ele fingiu que nada havia dito.
Aproveitando-se da euforia reinante, Noel caminhou em direção à porta e antes de sair, pôs a mão dentro do saco e de lá tirou um objeto de porte médio, deixando-o sobre a mesa da sala. Debaixo do mesmo, um bilhete dizia:
“Excelências. Tanto poderiam fazer pelo povo de seu país e só pensam em si mesmos. Peçam a essa cornucópia e ela lhes dará o dinheiro que tanto querem. Nunca mais quero ver nenhum dos senhores.”
Já fora, assoviou e logo teve as renas e o trenó a seu dispor.
Foi um delírio quando a criançada viu, chegando dos céus, seis magníficas renas puxando um trenó vermelho, num voo tranquilo. Aqueles sorrisos e aplausos mexeram com os sentimentos de Noel.
“Dessa gente é que eu gosto. Vibra com as coisas bonitas da vida. É um país complicado mas levo sempre dele alguma boa recordação. Haja vista essa espontânea manifestação das crianças.
Sacudiu as rédeas e partiu para sua missão, que naquele ano, começaria, justamente, por Brasília.
Enquanto isso, na mansão do deputado Sinfrides das Dores, os parlamentares se entreolhavam, sem entender como Papai Noel havia conseguido sair sem ser visto pelos poderosos sensores espalhados por todos os cantos, dentro e fora da casa e nem pelos ferozes cães Dobermann que, às dezenas, vigiavam toda a propriedade. Nenhum dispositivo de segurança foi capaz de detectá-lo.
Ao passarem pela sala do bingo, descobriram a cornucópia e, após ler o bilhete, o Deputado Sementrino Cativante se adiantou e pediu que ela lhes trouxesse dólares, muitos dólares. Para espanto e satisfação geral, foram saindo do bojo da cornucópia, verdinhas, sem parar.
Em pouco tempo, a sala estava abarrotada de dinheiro. Todos tiveram de se afastar e até mudar de aposento. E a cornucópia não parava de soltar dólares.
- Creio que já chega, minha gente - disse o senador Jeremildes.
- Pare, cornucópia – berrou Sementrino!
O dinheiro continuava a sair, cada vez com maior intensidade. A cornucópia foi sacudida, jogada ao chão, entupida com papel, pano e água. Alguém até derramou dentro dela uma garrafa inteira de uísque doze anos e...nada. Já saía dólar pelas janelas.
- Joguem ela na piscina. Já tem dólar demais.
Assim foi feito. As verdinhas nadavam na piscina, enquanto do fundo, a cornucópia emitia mais.
Nesse instante, do alto, Papai Noel deu uma última olhada para Brasília e, vendo a encrenca em que
os gananciosos “representantes do povo” haviam se metido, fez um gesto com a mão e a cornucópia parou de jorrar dinheiro, como por encanto, permanecendo, todavia, no fundo da piscina. Os dólares continuaram espalhados por toda parte.
Um vento forte começou a soprar elevando no ar milhares de notas que esvoaçaram pela cidade.
Foi uma festa para os pobres. Só que eles não sabiam como fazer uso do presente.
A Polícia Federal encaminhou o caso ao Ministério Público e este à Câmara dos Deputados, pois logo se descobriu de onde vinha todo o dinheiro.
Uma Comissão de Alto Nível convocou centenas de testemunhas, ouviu depoimento de gente humilde que foi encontrada com dólares nas mãos, quebrou-lhes o Sigilo Bancário (?), indiciou o Deputado Sinfrides das Dores por emissão de dólares falsos, mas o Supremo Tribunal Federal desobrigou-o de prestar depoimento na Polícia Federal e na Câmara dos Deputados.
O parlamentar jurou que de nada sabia e que os dólares certamente haviam sido “plantados” em sua casa para incriminá-lo.
- Manobra típica de oposição rancorosa – decla rou ele em entrevista à televisão.
Quanto a Papai Noel, ele jura que jamais voltará a pôr os pés no Brasil. Deixará a entrega de todos os presentes por conta dos Correios desta “Pátria amada, idolatrada, salve, salve-se quem puder!”.