ELA VOLTOU...

 

03 de novembro de 2021. Quarta-feira.

Era um dia qualquer de sol bem quente. Eu havia chegado esbaforida da rua. Fui receber minha aposentadoria e pagar contas.  Até ai nada anormal. Mas tudo mudou quando ouvi baterem à porta. Isso foi logo depois do almoço.

— Toc, toc, toc... — Eu achei estranho porque não tinham usado a campainha e cheguei a pensar que ela tinha estragado. Era um toc, toc que ficava martelando na minha cabeça e de certa forma me deixava tensa. Como se eu já não fosse tensa por natureza.

— Quem é? — perguntei já atravessando a sala de TV e enxugando as mãos em um guardanapo encardido com uma pintura de caju já desbotada.

— Sua inspiração. —  respondeu uma voz conhecida, com aquele sotaque, que confesso, me deixa louca que chego a lagar tudo só para fazer suas vontades.  Ainda bem que eu já tinha acabado de arrumar a cozinha do almoço.

—Ah! Meu Deus... — Minhas pernas bambearam. Era inacreditável. Até porque o sol estava quente e fazia muito calor.  Em um dia assim, a probabilidade de minha inspiração voltar para casa é praticamente nula. Além disso, fazia tanto tempo que ela havia partido que cheguei a pensar que nunca mais voltaria. Eu até tinha me acostumado com sua ausência. E cheguei a pensar que acabaria meus dias plantando couves e alfaces num pequeno espaço no fundo da horta; fazendo crochê e assistindo filmes coreanos na Netflix depois do almoço.  Sem contar as horas intermináveis no Instagran salvando looks de blogueiras na nuvem.

Minhas mãos trêmulas seguraram a maçaneta da porta e, meio indecisa, fui abrindo devagar, afinal eu podia estar vendo e ouvindo coisas. Quem garante?  Isso acontece muito com pessoas que tem a síndrome do pensamento acelerado. Mas não, era ela mesma que estava ali de pé bem diante de mim. Com ares de primavera até nos cabelos. Imagine. Com certeza havia se lembrado de que nasci na primavera e viera justo no dia em que eu faria cinquenta e oito anos. Sim. Só pode ser isso. Então me lembrei de como nós duas gostávamos de flores. Nenhuma escapava de nossos versos. Sibipirunas, ipês, Jacarandás, azaleias, rosas. As margaridas amarelas de minha infância, por exemplo, coitadas, penderam-se de tantas rimas que lhes fizemos. Entrávamos noite adentro com os dedos no teclado. Acordávamos de madrugada debruçadas em folhas brancas.

—Entre... — Falei com um tom de voz meio seco. Não, não era uma punição. Muito menos mágoa. É que realmente algo me tapava a garganta. A emoção. Sei lá.  Eu também senti que meu peito queria explodir e tive receio de um infarto. Logo agora? Mas tudo que eu queria logo era pular em seus braços e arrastá-la para nosso cantinho. Abrir o laptop e ai já viu né?

—Por onde andou? —exigi uma explicação. Eu tinha esse direito levando em conta que ela havia ido embora quando eu mais me sentia triste e sozinha.

— Por ai...  Não fui longe... — respondeu com os olhos baixos e tive a impressão de que havia certa relutância em sua voz. — Na verdade... Estive presa. — ela confessou encarando enfim meu olhar.

—Presa? Mas... Como? — Eu não queria acreditar que a minha inspiração houvesse cometido algum delito grave. Tudo o que fizemos foi escrever poemas, contos e crônicas, e pelo que eu sei, não há lei contra a liberdade de expressão. Além disso, como sua cúmplice eu também deveria estar presa então. Quanta injustiça.  De repente a imaginei numa masmorra escura, úmida e fria. As estações passando e ela lá sem ver as flores, a chuva, o vento, as folhas caindo...

—Estive presa nas suas janelas Killer. As tais janelas traumáticas ou assassinas que ficam bem na sua memória... — Ela olhou-me com olhos tristes.  Não havia acusação em sua voz.  Apenas uma constatação. 

—Pera ai... Está me dizendo que eu te prendi lá?  Mas porque eu faria isso? Justo com você? — de repente minha lembrança perpassou as páginas do livro “Armadilhas da mente” de Augusto Cury. Foi então que compreendi que eu havia caído na armadilha de minha própria mente e não havia me dado conta disso.

—Tudo aconteceu quando seu pai partiu para o céu em maio do ano passado. — Ela foi me fazendo relembrar. —Depois daqueles dias que ficou na fazenda com seu irmão, veio a verdade dura de que seu pai não estaria mais lá.  Foi a tua dor que me encarcerou. Mas não te culpo, afinal havia uma ferida psíquica em sua memória.

— Mas como conseguiu se libertar? — perguntei.  Eu sabia que nas tais janelas Killer, as penas poderiam ser perpétuas ou provisórias.  Dependia das evoluções do nosso eu.  Sendo assim em algum momento tinha acontecido comigo algo positivo para que eu libertasse minha inspiração.  Então ela mesma me deu a resposta.

—Todo esse processo começou com a chegada da primavera.  Especificamente quando os ipês rosa começaram a florir na Avenida perto de sua casa. Depois veio a florada do Jacarandá da sua rua.  De repente você estava fotografando as Sibipirunas, as azaleias... E a poesia, embora você não a escrevesse , estava no seu olhar.  Em cada click seu uma barra de ferro se desprendia e ia me libertando.

—Senti sua falta... — Eu disse apenas. — Cheguei a pensar que minha veia poética tinha secado.

—Eu sei... — Havia compaixão em teus olhos.

—Preciso tanto de você. — confessei. — Será que pode me perdoar?

—Não há o que perdoar.  Essas coisas acontecem com os poetas. Não me diga que ainda não aprendeu isso.  Já dizia Cecília Meireles “Não sou alegre nem sou triste, sou poeta”. Isso quer dizer que a dor imensa, assim como a alegria imensa, me afasta. Eu fico bem ali entre esses extremos, bem onde está o poeta. Entende?

Eu concordei com a cabeça e perguntei:

—Trouxe minha poesia?

—Sim... Aqui está... — apontou uma pequena mala no chão a seus pés.

Olhei meio decepcionada, afinal eu esperava uma mala enorme. Daquelas para ficar. Com poemas enormes e rimas fartas. No entanto vi apenas alguns poetrix dobrados, algumas sextilhas.  Levantei meu olhar para minha inspiração

— Nenhum soneto? — Eu tinha feito tantos planos com sonetos para Deus. Para minha mãe.

— Compreendo sua sede de poesia, mas tudo tem seu tempo. — confortou-me — Está pensando o quê. Um poetrix que seja já suga toda a minha energia. Não é fácil condensar uma essência em apenas três versos. 

— Mas porque os trouxe então?  — perguntei.

— Huumm... — fez ares de pensativa— Digamos que é só a entrada. Ou quem sabe o aperitivo. Eu tinha certeza de que você ia querer se embriagar.

— Venha... Dê-me tua mão. — Ela disse sorrindo e eu mais que depressa atirei  o velho pano de prato na mesa da cozinha e seguimos de mãos para o nosso recanto.

—O que vamos escrever?— perguntei eufórica sentindo o calor de sua mão na minha.

—Qualquer coisa... — ela sorriu com aquele seu jeito compreensivo, porém, dominador.

—Qualquer coisa?  Mas... — eu ainda relutava.

— Sim... Haicai, poetrix. O que te der na telha. Veja, tem poesia pra todo lado. — apontou -me a primeira petúnia lilás  que havia florescido de manhã e a primeira rosa cor-de-rosa de meu pequeno jardim... 

Abri meu laptop, clicando mais que depressa em novo documento Word. Só então percebi a pilha de roupas para passar em cima do sofá. Elas tinham olhos de cobranças. Algo que pouco liguei ao longo da vida. Confesso que quanto mais elas me olham com aqueles olhos dobrados, mais eu as ignoro. Já fiz isso até por dois meses seguidos. Não sei porque estava me sentindo culpada justo hoje. Talvez porque eu soubesse que o idílio meu e de minha inspiração fosse durar bastante e as roupas ficariam lá por semanas seguidas. Imaginei blusinhas sufocadas por toalhas. Calças dobradas na mesma posição por Deus sabe lá quanto tempo. Senti-me culpada.

Minha inspiração seguiu meu olhar e me garantiu:

— Isso pode esperar. Bem, o mundo não vai acabar por isso vai? Quanto a mim, considerando a burrice das suas emoções, certamente em algum momento me prenderá de novo nas tais janelas assassinas. Além disso, hoje quero comemorar minha liberdade. E a sua. Afinal enquanto estive presa, você também estava. Só não tinha se dado conta. Concorda?

— Tem razão... — Eu disse afastando qualquer sentimento de culpa.

 

 

 

 


 

 

(  IMAGEM:  Sou eu . Fiz esse video hoje e transformei em giff só para colcoar aqui. rsrsrs)