A pousada fantasma

A noite havia caído, e a Faixa de Dauntay se estendia sobre nossas cabeças como uma estrada luminosa levando ao Reino dos Mortos - que era precisamente o que a religião dos yasso dizia que ela era. Como estávamos no meio de uma charneca pedregosa, pontilhada aqui e ali por árvores baixas, e sem muitas opções de esconderijo, Shantel sugeriu que o melhor seria continuar andando. Como estava escuro e ela não queria correr o risco de acender uma luz e chamar a atenção, Jaric protestou.

- Não vou me arriscar a torcer um tornozelo, andando nesse breu cheio de pedras! Vamos parar debaixo de uma árvore e acender uma fogueira, Shantel.

- O mímico gigante está por aí em algum lugar - retrucou ela. - Vai querer se arriscar em marcar sua posição para que ele venha nos pegar?

- Jaric não deixa de ter razão - resolvi interferir. - Podemos enfiar o pé num buraco ou coisa pior. Concordo que seria melhor não acender qualquer luz, mas podemos pelo menos parar debaixo de uma árvore e ficar de guarda até a manhã.

Shantel aceitou o meio-termo. Nos sentamos debaixo de um sicômoro, para comer nossas rações frias no escuro, e depois organizamos a escala de vigilância. Jaric pegou o primeiro turno, orientando-se pela rotação da abóboda celeste, e depois acordaria Shantel, ficando eu por último.

Estava dormindo a sono solto, enrolado na minha manta, quando Shantel e Jaric me sacudiram.

- É hora? - Estremunhei.

- Psiu - sussurrou Shantel, cobrindo minha boca. - Olhe aquilo.

Virei a cabeça na direção indicada por ela; a noite ia pelo meio, mas a escuridão já não era mais absoluta: cerca de 200 m de distância de nós, havia uma estalagem com todas as luzes acesas, de onde vinha o som de música e cantoria. Obviamente, era o mímico montando uma arapuca.

- Se eu não soubesse que aquilo vai nos devorar se chegarmos perto, eu bem que iria lá dar uma olhada - murmurou Jaric.

- Ele está contando com isso - replicou Shantel.

- Quanto tempo faz que o mímico apareceu? - Indaguei.

- Eu estava de costas - disse Shantel. - Quando me virei, vi as luzes... a cantoria começou agora, antes estava tudo quieto.

- Como explica isso... o mímico cantar? - Questionou Jaric.

- Mímicos não são criaturas muito inteligentes... ao menos, a grande maioria deles - ponderou Shantel. - Mas pelo tamanho desse, pode ter vários séculos ou até milênios de idade; vai que aprendeu alguma coisa além de se disfarçar, com todas as pessoas que devorou ao longo dos anos.

- Ouvi dizer que alguns mímicos podem reter memórias das pessoas que matou - comentei.

- Ou imitar o seu comportamento - acrescentou Shantel. - Mas nunca ouvi falar de um mímico que imitasse um prédio inteiro... e seus moradores.

Ficamos um instante em silêncio, tentando entender o que estava sendo cantado. Poderia ser uma língua antiga, de uma civilização que talvez nem existisse mais e que só pudesse ser lembrada por aquela contrafação no meio de um descampado.

- Não se deixem enganar - prosseguiu Shantel. - Um mímico pode ser muito esperto com seus truques, mas o seu único propósito é nos transformar em jantar.

- Ele não parece disposto a desistir de continuar nos seguindo - avaliei. - Vai esperar que façamos alguma besteira e então...

A cantiga de um bêbado que poderia ter morrido há séculos, continuava pela noite à luz das estrelas. Concluímos que não teríamos sossego enquanto não acabássemos com aquele sofrimento.

- O que vamos fazer? - Indaguei para Shantel.

- Só há um jeito de derrotar essa coisa - ponderou ela. - E não é atacando pelo lado de fora...

Aparentemente, para destruir o mímico, teríamos que fazê-lo acreditar que sua artimanha tinha dado certo...

- [Continua]

- [18-10-2021]