O exame de Urina 
 
__ Não precisa nem se sentar, o senhor tem no máximo trinta dias de vida. Vociferou o doutor apontando o dedo indicador pra porta do consultório. - No íntimo o doutor se destilava em júbilo, um prazer líquido que jorrava como uma fonte de praça pública cheia de cores - Falando: escafede alma errante. 
 
__ Mas como assim! Morrer de que? Por que essa presa? Tenho a prerrogativa de saber da causa da minha morte, que enfermidade é essa! do que vou morrer? Com olhos esbugalhados, lábios trémulos, a testa toda enrugada e as bochechas já de uma vermelhidão apavorante.      
 
__ Saber pra que infeliz! Tu estás perdendo tempo em ficar especulando sobre a causa da morte, a morte não é do senhor, é nossa, todos vamos morrer. 
 
__ Doutor, que diferença faz perder duas ou três horas se vou morrer! Por favor, me diga a causa. 
 
__ Senhor Pacífico Raposeiro dias, eu não posso revelar, minha religião não permite que lhe confidencie a causa da morte de meus pacientes, a Deus pertence essa tarefa. 
 
__ Doutor Noah Aquino Rêgo, como posso levar a sentença lá em casa, pra minha família, minha mulher! E para meu pai, minha pobre mãe, sem nenhuma justificativa? Será ridículo chegar em casa falando que vou morrer em trinta dias e o que tenho como prova, é um exame de urina! 
 
Pacífico é um homem de bem, entende leitor, um homem de bem, casou-se com uma mulher de bem também. Com o passar dos anos, esse bem, ficou fora de uso, ou como dizem, em desuso, esse adjetivo saiu de moda, ficou demodê! 
 
Aquela visita ao médico era o retorno da consulta feita 60 dias antes, o retorno era o resultado do exame de urina. Um exame besta, banal, bobo.  
 
__ Doutor! Como alguém pode ser sentenciado à morte por meio de um exame de urina?  
 
Portador de uma doença que nunca contou pra ninguém, inclusive, aos 21 anos quando soube, mudou de cidade, de nome, fugiu da família, Pacífico controlava muito bem sua patologia, um distúrbio esquisito que aloja no cocuruto da pessoa, não ocupa um milímetro sequer de espaço, mas preenche toda a caixa craniana do cidadão. 30 anos atrás, quando o médico lhe revelou tal enfermidade, apenas lhe disse 
 
__ Se fosse possível tirar uma foto do interior da sua cachola, nós veríamos o tudo e o nada ao mesmo tempo. 
 
Pacífico olhou bem para o doutor Noah dos pés à cabeça, seja lá intuição, inspiração, talvez até mesmo um bacorejo de última hora, digamos que num repelão, o paciente desconfiou que o doutor amava a medicina como um jegue asmático. 
 
Um sujeito franzino, com jaleco desbotado, com cara de hiena assustada, mantinha a boca tampada constantemente com a mão, teria perdido um ou dois, talvez até três dentes?  Despertou um frisson em Pacífico, deixando embasbacado, como uma besta mugindo ao luar!  
 
__ Pensando bem doutor, trinta dias é muito tempo pra um homem viver, não vou sair em disparada como um cachorro que caiu do caminhão de mudança. Sente se aí. Vamos, vamos, quero prosear com o estafeta da morte. 
 
Noah, o médico era supersticioso como uma cigana numa praça pública, falava pelos cotovelos quando estava fora do serviço. Durante o serviço era sisudo, sofria de bruxismo às avessas e mais umas neurosezinhas, pequenos surtos psicóticos, isso o tornava impaciente e obcecado em despachar seus pacientes o quanto antes. 
 
Estava convicto que tinha plena consciência como suas neuroses lhe afetavam, Noah se sentia um amaldiçoado, um pulha, às vezes dizia em voz alta: 
 
__ Pulha! Venha cá doutor pulha, e Noah se via diante de um espelho, um patife rindo no espelho, entremente, do outro lado do espelho, um sujeito sisudo com cara de hiena. O biltre lhe esbofeteava a exaustão, quando se sentia prosternado, o ataque neurótico diluía em puro estoicismo. 
 
Pacífico Aquino Rego, descarregou em 20 prestações com juros e correções monetária, todo o peso do corpo na cátedra do doutor, tirou os sapatos, estes, muito bem cuidados, brilhava como o sol do meio-dia, onde estivesse o sapato, lá estava o sol do meio-dia. 
 
__ Noah abancou no lugar do paciente, adorava toscanejar no lugar deles, suas neuras não lhe assaltavam. Pelo contrário, sentia as lhe dando mingau num pires de colherzinha, essas imagens lhe deixavam em conciliação com sua consciência, afinal, pensava Noah nessas horas, a paz de espírito é um santo remédio. 
 
Já se sentindo um presunto fora da geladeira, esticou o braço e puxou a penúltima gaveta do lado direito da mesa, achou uma garrafa de whisky e uma de cachaça, um mini frigobar fechava um lado da mesa com a parede, havia gelo, limão, amendoim e um salaminho italiano literalmente carcomido por dentes, dentro do frigobar 
 
__ Os copos estão na última gaveta, fique à vontade, você já era mesmo né? Não me custa nada ter um dedo de prosa com um defunto sucumbido a caminho da morada eterna. - Noah engoliu um risinho de patife, mas o cinismo estava em cada palavra assoprada para o futuro presunto 
 
Nosso Noah é uma pessoa bem afeiçoada, sarcástico demais, mas tem um coração bom e enorme, se não fosse suas neuras e seu cinismo, seria, digamos um ingênuo. 
 
__ Noah meu chapa, tu acreditas em milagres? Pacífico falou olhando para o exame de urina, enquanto enchia os copos de whisky e ferroando o salaminho carcomido. 
 
__ Não parceiro, milagres não existem, as pessoas acreditam para suavizar a dor, diminuir o desespero. Não foi eu que inventei o 2+2 = 4. Milagres é simplesmente obscurantismo temporário. As pessoas que dizem que suas curas foram milagres é pura ignorância, quando a ciência descobre as razões de tais curas, a vida dos curandeiros, xamãs fica cada dia mais penosas. A cada nova descoberta da ciência é um frio que percorre toda a espinhela desses impostores mequetrefes. 
 
__ Então doutor! O senhor é um ímpio convicto ou no desespero clama por Javé? 
 
__ Que diferença faz se eu acredito ou não! Se ele existe ou não! Se existe, ele é perfeito, sabe de tudo, passado, presente e futuro, é onisciente e onipotente. portanto meu chapa, meu futuro já está decidido, nem ele muda, pois se mudasse não seria perfeito. Se, se ele não existe, não tenho futuro, o que dá na mesma, pois não decido meu futuro, esquece. Vamos! Entorna esse gorô logo. 
 
__ Amenadiel, Amenadiel! Gritou Zoé, esposa de Amenadiel. 
 
__ O que foi Zoé! Por que está tu aos berros comigo? Não vês que estou acordado? 
 
__ Eu sei que está acordado, você está acordado dentro do quarta-roupas a cinco dias com uma faca no pescoço. Meu Deus! Meu Jesus amado. Você teve outro surto psicótico novamente Amenadiel. 
 
O marido de Zoé, passou cinco dias e cinco noites acordado ameaçando cortar a carótida caso alguém tentasse chegar perto dele. 
 
Levantou-se lentamente, mas com firmeza nas pernas e no corpo, abraçou a esposa, deu um piparote na testa da filha que engolia o choro. Foi até a cozinha como se tivesse dormido semanas a fio. Comeu perto do armário um pão com mortadela, às vezes ele brigava por um pão com salame amanhecido. 
 
__ Não esqueça tá, tome seu remedinho agora tá. Zoé balbuciava  já em lágrimas. 
 
__ Tudo bem meu anjo, não se desgaste mais. Mas que envelope é este aqui em cima do armário? Perguntou o marido. 
 
__ É seu exame de urina. Lembra? 
 
Amenadiel se levantou e partiu em disparada para o quarto...
 
__ Eu não mereço essa vida, de novo não, de novo não, vociferou Zoé aos prantos pedindo uma camisa de força.