Vale Yrzul

Com o sol esverdeado à suas costas, Artas e seu cavalo cruzavam com velocidade as planícies do Vale Yrzul, numa cavalgada incessante que já durava quase um dia inteiro.

O cavalo de Artas era um imponente garanhão de pelagem marrom, com músculos bem definidos, que saltavam por baixo da pele em evidente esforço ao manter o ritmo naquele solo estranho, cujas gramíneas pareciam vivas e mortas ao mesmo tempo. Artas se orgulhava muito daquele animal. Navon não pertencia a nenhuma linhagem nobre, não era um puro sangue, mas sim um cavalo de fazenda. Entretanto Artas sabia bem que a nobreza não vinha do sangue e sim do espírito, e por isso, Navon, um cavalo de fazenda, era tão nobre quanto um corcel de guerra. E se a nobreza mora no espírito, na consciência, Artas também era nobre como qualquer cavaleiro, pois acreditava nisto.

Artas havia partido da cidade acompanhado de quatro companheiros, apenas três dias após ter recebido a carta. Virt era um anão grosseiro nas palavras e gentil nas atitudes, com uma barba longa e avermelhada, que carregava um machado de duas faces sempre afiado nas mãos. Irbin era uma elfa de cabelos escuros e olhos pequenos e ágeis, que registravam tudo o que ocorria ao redor e eram perfeitos para encontrar perigos onde o olhar comum nada via. Kalisa era uma mulher de Bartur, e naqueles tempos isto significava destreza e perícia, e Kalisa tinha ambos quando se tratava de lâminas, que ela muito habilmente fazia surgir nas mãos e em seguida aparecer cravada em algum alvo. Dressin era um mago com longos cabelos brancos que contrastavam com sua atitude jovial. Ele foi o primeiro a desistir.

Dressin começou a questionar seu papel na jornada na primeira vez em que eles vislumbraram o Vale Yrzul. O Vale permanece escondido pelas ondulações do terreno, porém o viajante que seguir em direção ao norte e passar pelas montanhas Mak'vas verá descortinar a sua frente um vale amplo e verde, com poucas árvores crescendo na terra, e mesmo estas são retorcidas e mirradas. Algo nos contornos daquele lugar pareceu incomodar o mago, infiltrou-se nele firmemente, como um mau presságio ou apreensão, e sua atitude jovial deu lugar a inquietude. Em dado momento, quando já deixavam para trás os montes, Dressin despediu-se deles e retornou para a cidade.

A perda de um companheiro abalou a todos. Era aquela terra. O vale ressoava desamparo nos ossos daqueles que o cruzavam, incutia nos viajantes o sentimento de abandono. Havia magia muito antiga enraizada no solo e nas plantas esparsas, um poder com a intenção de oprimir, mas não apenas o feitiço era responsável por isto. O que realmente quebrava o espírito ali era a imensidão do vale e a falta de vida, aquele vazio contraditório.

Kalisa foi a segunda a desistir, assim que chegaram na vala. Era um rasgo no chão com mais de duas milhas de comprimento, uma ferida escura feita por algum Deus em sua ira. A apreensão em Artas cresceu ao se aproximar daquilo. Mesmo Navon mostrava-se receoso, relinchando nervosamente e forçando as patas no solo numa clara tentativa de manter distância. Artas aconselhou a todos a contornarem aquela depressão e seguirem logo em frente, mas Virt não concordou. O anão também estava com medo, e este medo o impulsionava a continuar e provar-se para si mesmo. Com uma tocha ele iluminou a cratera. Centenas de esqueletos aguardavam eternamente lá embaixo, à espera de um chamado que nunca viria. Havia esqueletos humanos, de elfos e de anões, adultos e crianças, todos da cor do marfim. Os crânios se empilhavam na extremidade, as orbitas negras como a noite, mas não vazias, elas eram repletas de segredos de um outro tempo, de memórias da época das guerras, do Gavião e da Serpente. Quantas horas duraram o transe nenhum deles soube dizer, não eram magos, não conheciam as implicações daquela magia, mas quando deram por si já era noite. Afastaram-se da cratera para dormir. Quando o novo dia surgiu no horizonte Kalisa havia partido.

Os outros dois permaneceram por mais um dia, mas quando o sol esverdeado cresceu no céu, quando o verde substituiu implacavelmente o dourado, o que os fazia seguir viagem fraquejou. Artas percebeu isso durante a noite, vendo-os confabulando à distância, com olhares furtivos para ele, e sabia o que discutiam. A missão era de Artas, a tarefa, o fardo, o compromisso, tudo estava vinculado a ele, então por que não virar as costas a tudo isso? Por que não o abandonar a própria sorte? Foi o que fizeram.

Agora Artas estava sozinho. Não, não realmente sozinho, Navon estava com ele. E estavam quase chegando; chegando em um ponto final, e isto era perceptível pela degradação cada vez maior do terreno. Havia horas desde que avistara a última árvore, e a grama que cobria o solo como um lençol desde o início do Vale agora rareava e se tornavam marrom e quebradiça, era uma relva morta e seca. Grama de fogo, como era conhecida nas lendas, e ele tinha certeza de que haveria um incêndio até o fim do dia. Logo descobriria se estaria nele. Com um puxão gentil nos arreios fez Navon parar e pulou para o chão. Tocar aquele solo com os pés não era muito diferente de caminhar por um pequeno riacho, a sensação não era de algo concreto e fixo, mas sim de algo que se rastejava por sob seus pés em fluxo contínuo. E a cada instante retirava uma parte dele. Abriu um pequeno bolso que trazia preso a sela e de lá retirou um pedaço de papel amassado. A carta de seu pai. Leu-a uma última vez:

“Não sei mais o que fazer, meu querido Artas. Escrevo-lhe esta carta com pouca ou nenhuma esperança em meu coração. Acreditei que desta vez seria diferente, que havíamos feito algo certo, nos afastado o suficiente, mas não se pode fugir daquilo a que fomos predestinados, daquilo que somos. Você sempre entendeu isto. Agora sei que sua recusa em nos acompanhar não foi por mero capricho, não foi um ato de rebeldia contra seu pai, sei que você entende esta situação de forma mais profunda que todos nós. Temos fome, Artas. Muita fome. As plantações cresceram, meu filho, realmente cresceram, como eu não via há tempos. A distância, foi o que pensamos. A distância nos manteve a salvo do toque do nosso passado. O rosto das pessoas, do seu povo, iluminou-se ao constatar isto. Então veio o momento da colheita. Os grãos se esfarelavam em nossas mãos, o que crescia abaixo da terra estava morto, as folhas secaram diante de nossos olhos. Nunca é longe o bastante. Nunca. As pessoas não possuem mais vontade. Há cinquenta anos vivemos com pouco, mas nunca as vi desta forma. Talvez seja o fim. Se para o bem ou para o mal não sei dizer.

Lembra-se das histórias sobre o Vale Yrzul? Eu as contava para você quando criança. Foi meu pai quem as contou para mim. O Vale que está no fim. É isto que significa Yrzul, aquilo que está no fim. As lendas falam de um lugar morto e arenoso, onde a pouca vida que consegue crescer é varrida por grandes incêndios ocasionais. Porém nem toda vida some com as chamas, há uma exceção. Sim, aquela terrível fera que está no fim, que é o próprio fim. Meu pai acreditava que ela não ficava isolada no Vale Yrzul, que suas raízes se estendiam por baixo de todas as vilas e cidades, por sob as montanhas e rios. Ele tinha a convicção de que a maldição que nos aflige está de alguma forma ligada a ela. Nosso declínio pode ter origem divina, mas quem o executa é um ser terreno.

Nunca havíamos encontrado indício da localização do Vale, até o momento. Foi um Druida Salandri quem nos deu a pista. A magia do homem falhou em saciar nossa fome, mas as palavras preencheram um tipo diferente de vazio, ao menos em mim. Ele me contou das estranhas visões que teve quando cavalgava próximo as montanhas Mak’vas. Em seus sonhos viu campinas infinitas, mortas. Ele sentiu o cheiro da terra, e o odor pungente de podridão e magia. A visão dele se estendeu, cobriu todo o Vale, e onde ele termina havia algo que não quis descrever para mim. A fera! É apenas nisto que consigo pensar nos últimos dias.

Gostaria de voltar, ver com meus próprios olhos, mas não sei se sobreviveríamos a viagem. Engraçado, na ânsia de escapar do destino nos afastamos, e isto nos trouxe para longe de nossa cura. A fuga talvez tenha causado nossa morte. Você foi firme, Artas, ficou e não desistiu. Não quero pedir que se arrisque, mas também não vejo outra opção. As montanhas Mak’vas, elas são o caminho! Você irá nos salvar filho? Você fará isso? Por mim? ”

Artas guardou novamente a carta na sela e refletiu sobre as palavras de seu pai. Ele havia dito que não era possível escapar daquilo a que somos predestinados, e talvez não fosse mesmo, mas era possível mudar, transformar através de atitudes. Estava determinado a provar isto.

Navon resfolegou próximo ao ouvido de Artas. O homem sorriu e acariciou o focinho do animal. Era realmente um cavalo e tanto, seu único companheiro fiel. Não seria justo levá-lo adiante, o final era apenas para ele. Com um tapa, não desprovido de certa gentileza, o cavalo começou a galopar na direção contrária, de volta para as montanhas. Artas virou as costas para o animal e caminhou o restante do trajeto. Até a fera.

O círculo de pedras não estava longe. No centro do círculo havia uma árvore imensa, imponente, como um palácio erigido naquela terra de ninguém. E era antiga, tanto quanto o mundo. A madeira alternava entre marrom e preta, com diversas rachaduras e ranhuras, feridas feitas antes do início do tempo. Na copa não havia folhas, apenas uma confusão de mil galhos retorcidos formando intrincados e horríveis padrões. Brotando do tronco, como um grande apêndice, havia um rosto. Tinha o tamanho de quatro homens, maior que as pedras que o cercavam, e de onde deveria ser a boca saíam raízes tão grossas quanto troncos de árvore que machucavam o solo. Acima da boca havia um único olho, e ele estava virado para Artas.

Va’suruth, como era conhecido nas lendas. Uma das primeiras Crias, um carrasco dos Deuses. O motivo do povo de Artas, de seu pai, terem fome. O motivo de nunca encontrarem um lar, uma terra onde pudessem cultivar e serem prósperos. Uma maldição que já durava décadas por alguma desfeita, alguma ofensa feita antes mesmo do nascimento de Artas. Era um parasita, que roubava a vida de tudo, o porquê do Vale ser tão inóspito, tão desprovido de alegria. Chegara o momento de dar um fim aquilo.

Artas puxou a espada da cintura, a lâmina prateada refulgiu em tons de verde. Conforme se aproximava sentiu o olhar da criatura o acompanhando, avaliando-o, explorando suas fraquezas. A sensação de algo rastejando sob seus pés começou a aumentar, e olhando para baixo viu que haviam pequenas raízes saindo do solo, contorcendo-se como cobras, tentando agarrar seus tornozelos. Sentiu magia vibrando no ar, emanando daquele monstro, penetrando o chão. Olhando para trás, ao longe, viu pequenos focos de incêndio, ainda no início. Entendeu que era uma forma de aviso da criatura. Afaste-se, aquelas chamas diziam, afaste-se enquanto há tempo, antes de ficar preso entre mim e o fogo, ambos somos fatais, não há nada que possa fazer aqui. Resolveu ignorar o aviso e ir adiante. Como resposta ouviu o fogo rugir com fúria atrás de si.

Algo chamou a atenção de Artas na copa da árvore. Os galhos que antes estavam nus pareciam inchar nas extremidades, formando grandes bolsas escuras. São frutos, ele teve tempo de pensar antes que despencassem e se partissem no chão. De cada carcaça se levantou uma criatura com contornos humanoides, a pele feita de madeira, os olhos de um verde profundo, como algas mergulhadas em um lago.

A criatura mais próxima atacou. O braço dela se alongou na direção de Artas, a mão transformada em lança. Antes que aquilo conseguisse o alcançar deu um passo para trás. Ergueu a espada sobre sua cabeça e desferiu um golpe, decepando aquele braço que caiu no solo e começou a murchar. A boca do monstro se abriu num esgar de raiva e dor. Artas não perdeu tempo, com rapidez chegou ao alcance dela e cravou a espada na escuridão daquela garganta. A criatura secou e tombou inerte no chão.

O cavaleiro estava agora cercado pelas outras crias de Va’suruth. Deu combate para todas elas. As criaturas projetavam galhos de seus corpos, afiados como adagas, e Artas se desviava como podia. Vários o atingiram, perfurando a pele e fazendo o sangue brotar. Porém elas também sofriam com seus golpes. Seus cortes atingiam o tronco e o rosto delas, e imediatamente caíam no chão, murchas como flores no outono. A batalha pareceu se prolongar, na mente de Artas o mundo ficou reduzido a fintas e estocadas. Sobreviver e matar. Seus músculos vibravam e latejavam, os pulmões gemiam em protesto quando ele inspirava aquele ar impregnado pela fumaça do incêndio, que agora parecia mais uma muralha de chamas, cada vez mais próxima dele. Mas enfim a batalha cessou. Só restou ele e Va’suruth na campina.

A fera ainda o olhava, mas havia algo novo por de trás daquela pupila. O ódio continuava lá, bem evidente, mas junto dele havia medo. E no fundo, escondido por eras de lembranças e conhecimento, um toque de respeito. Artas tinha certeza de que se os deuses houvessem dado a capacidade de fala para aquilo ela tentaria suplicar. Poderia acreditar nas promessas feitas por ela? Achava que não.

Quanto mais perto chegava mais o chão parecia o repelir. Galhos cresciam do solo e tentavam o empurrar, mas não tinham forças, eram frágeis, partiam-se com a passagem do guerreiro. Estava lado a lado com Va’suruth. Próximo aquelas raízes imensas, raízes que ele tinha certeza que se estendiam nas profundezas da terra até onde seu pai estava. O solo pulsava. A árvore e o coração de Artas também. Enfiou a lâmina na raiz e observou enquanto a seiva branca e translúcida escorria. O monstro urrou. Não parecia possível, mas mesmo assim teve certeza disso. O som não soou no ar, nos seus ouvidos, mas sim dentro da sua cabeça. Artas forçou a espada mais fundo e a arrastou por toda a extensão daquelas raízes, até fazer a seiva jorrar. O grito parou, os olhos da fera começaram a escurecer. E então se apagaram, e Artas soube que ela se fora.

O cavaleiro olhou ao redor. As chamas do incêndio ondulavam, cada vez mais próximas dele, sem brecha, sem caminho por onde buscar a salvação. O calor era intenso e a fumaça tão densa que seus olhos lacrimejavam. Percebeu que iria morrer ali. Não empreendera a jornada com esperança de sobreviver, ainda assim a compreensão da morte tão próxima, tão palpável, acendeu-se nele como o clarão de um raio em uma tempestade. E semelhante a um raio causou destruição por onde passou. Ouviu atrás de si estalos e ao se virar viu, com horror, que o rosto de Va’suruth estava rachando, a testa se partindo, e daquela caverna de escuridão saiu uma criatura em forma de vespa, cavando um caminho para fora. A fera não estava morta.

Artas soltou a espada no chão. Aquele monstro se arrastou até ele. Da boca dele saiu uma lâmina, longa, afiada, mortal. O cavaleiro fechou os olhos, e não viu quando duas adagas atravessaram a cortina de fumaça e se cravaram nos olhos da vespa. Abriu os olhos a tempo de ver Virt, o anão, saltar de cima de um cavalo e enfiar seu machado no corpo do monstro. Viu também Irbin disparando flechas de cima de seu corcel, enquanto Kalisa logo atrás lançava uma lâmina depois da outra. E no fundo estava Dressin com seu cajado conjurando o vento e afastando fogo e fumaça. Seus companheiros haviam voltado!

A visão deles renovou a determinação de Artas. Puxou a espada do chão e atacou. Um grito surgiu no seu peito e o bradou com força, em nome do seu povo. Sua espada buscou aquele monstro, atravessou-o. O ferrão de Va’suruth riscava o ar com intenção mortal. A criatura fez surgir de suas costas asas de um tom de verde pálido, que deixavam passar a luz vinda do incêndio ao redor de todos. Ela não teve tempo de alçar voo. As flechas de Irbin perfuraram aquela fina membrana, e as asas ficaram pendendo inúteis ao lado do corpo da vespa. Com sua última chance de fuga destruída a criatura se rendeu aos ataques daquelas pessoas, e foi apenas questão de tempo até tombar para o lado, enfim derrotada.

Como consequência da morte da criatura a terra ao redor deles começou a vibrar e afundar. As raízes que antes sustentavam o chão estavam agora murchando no subsolo, cedendo sobre o peso do mundo. O incêndio estava mais violento que nunca, fagulhas subiam em direção ao céu esverdeado. Todos se aproximaram do mago, que fazia o melhor possível para rachar aquela muralha de fogo. Mesmo no caos que tudo se transformara, Artas não pode deixar de sorrir ao ver Navon junto com os demais cavalos. Não acreditou em seus olhos. Era realmente um companheiro fiel. Todos eram.

O mago se aproximou do fogo, as chamas refletiam ameaçadoras em seus olhos e emprestavam tons alaranjados para os seus cabelos brancos. Com um grito, um último esforço, seu cajado brilhou intensamente e uma passagem surgiu, um caminho para sair dali. Sem pensar duas vezes Artas se agarrou em Navon e subiu na sela, e juntos cavalgaram por meio das chamas, por entre o chão que se partia, para deixar para trás aquele mundo inóspito. Cavalgaram em busca do sol dourado.

MarcosVP
Enviado por MarcosVP em 01/10/2021
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