Generosidade
Embora ainda não soubesse disso, um cheiro forte foi o primeiro indício que Agnes teve de que estavam se aproximando da residência de Grissell Aldebourne. A amiga de Parnell morava num dos extremos do vilarejo, junto a um córrego que provinha do maciço calcário que delimitava o lado norte da povoação.
- Que cheiro é esse? - A garota indagou para Parnell, franzindo o nariz.
- Grissell está cozinhando! - Disse Parnell, sem especificar o que era.
A choupana de Grissell, coberta de palha e com uma vassoura espetada pelo cabo sobre a entrada principal, logo surgiu numa curva do caminho. Cercada de árvores frutíferas, possuía um terreiro na frente e um telheiro na parte de trás, onde um grande caldeirão de cobre fervia sobre um fogão de barro. Mexendo no conteúdo borbulhante do recipiente com o que parecia ser uma pá de madeira, estava uma mulher de cabelos brancos amarrados num rabo de cavalo. Ela sorriu e acenou, ao ver a chegada de Parnell.
- Chegou bem na hora, Parnell! - Gritou.
- O cheiro está bom! - Replicou Parnell.
Aproximaram-se do telheiro, e Parnell passou um braço sobre os ombros da filha adotiva num gesto de carinho.
- Esta é a Agnes, de quem lhe falei.
- Ela é alta - aprovou Grissell. - Já começou a lhe dar lições de voo?
- Ainda não; creio que Agnes ainda não decidiu o que vai querer ser...
- Isso é verdade, mocinha? - Indagou Grissell, sem parar de mexer no caldeirão.
- Minha mãe só me deixa lustrar os tachos, senhora - redarguiu de pronto Agnes.
- Ela é rápida de raciocínio - riu Grissell.
- Às vezes, até demais - Parnell fez bico. - Mas viemos aqui hoje ver os gatos... prometi que Agnes poderia ficar com um.
- Os filhotes, claro - recordou Grissell. - Mas antes, que tal a jovem me ajudar no trabalho? Se ela ainda não decidiu o que quer ser, talvez eu possa lhe ensinar o meu ofício.
- O que a senhora está fazendo? - Indagou finalmente Agnes, aproveitando a deixa.
- Cerveja! - Exclamou Grissell com indisfarçado orgulho.
E apontando para uma estante improvisada com tábuas, as prateleiras cheias de jarros de cerâmica marcados com runas desenhadas a carvão:
- Me dê aquele pote com a runa gyfu, por favor.
Agnes olhou para Grissell com embaraço.
- Eu não sei ler - admitiu em voz baixa.
- Parece que a história de polir tachos é verdadeira - disse Grissell para Parnell, sobrolhos erguidos.
- Se ela não vai ser uma bruxa, porque deveria ensiná-la a ler? - Questionou Parnell em tom defensivo.
- Se ela quiser aprender a ser uma cervejeira, posso me incumbir disso - replicou Grissell.
Agnes lançou um olhar suplicante para a mãe adotiva, que o ignorou por completo.
- Viemos aqui hoje apenas por conta do gato... e eu sei que você não tem nenhum preto, portanto...
- Portanto, nada a impede de querer aprender o meu ofício - insistiu Grissell. E largando a pá, cruzou os indicadores para formar um "X":
- O pote que tem este sinal, menina... traga pra mim.
Agnes olhou para Parnell, mas esta não fez nenhum gesto contrário. Decidida, a garota avançou para a estante e pegou o pote marcado com a runa indicada, cheio de uma mistura de ervas secas que cheiravam a sálvia, coentro, gengibre e outras que não conseguiu identificar.
- A runa gyfu - disse, ao entregar o pote nas mãos de Grissell.
A cervejeira olhou para Parnell e piscou um olho.
- Agnes acabou de ter a sua primeira lição de runas - anunciou, enquanto jogava uma generosa mancheia das ervas dentro do caldeirão.
Parnell fez que sim, dando-se por vencida.
- Você pode chamar Grissell de tia a partir de agora - disse para Agnes.
- [27-09-2021]