Contos de Valanka - A criança de Milady Lecroax
Olhava sobre os ombros a cada passo. As sombras eram suas melhores armas contra os olhos curiosos das pessoas na rua. Encoberto por sua capa preta e sem as túnicas de sua ordem, Johnathan se movia como um gato entre as vielas e ruas da cidade. Avistou dois guardas a conversar com um homem de meia idade, claramente embriagado. O frio lhe correu a espinha e dobrou a primeira esquina que seus olhos de lince puderam ver.
Estava perto.
Numa rua escura, ajeitou bem a capa e abaixou a cabeça, uma garantia extra. Sabia exatamente quantos passos deveria dar. Tinha feito aquele caminho uma centena de vezes no passado. Desta vez, entretanto, a pedido dela. Algo que ao mesmo tempo acalmava e afligia seu coração, que de tanto bater parecia emitir som na calada da noite. Alguns anos haviam se passado desde que não a vira, e isso o deixara em pedaços, mas sabia que não poderiam ficar juntos. Era impossível.
Entrou no beco que usavam na juventude. Estava vazio. Se ocultou atrás de algumas caixas e outros objetos para que os que passassem pela entrada do beco nada desconfiassem. Esperou. Ansioso e receoso pelo encontro que estava por acontecer.
Alguns minutos, que pareceram eternidades para ele, se passaram e uma figura encapuzada entrou no beco. A pessoa olhava de um lado para o outro procurando desesperadamente por algo.
— Johnathan? — chamou uma voz feminina.
— Milady — respondeu ele, saindo detrás dos objetos que o ocultavam.
— Quantas vezes já lhe pedi para não me chamar assim?
— Perdão, Deb — disse ele em meio a um sorriso, abaixando o capuz e mostrando o rosto barbado e marcado pela idade. — Está tão linda quanto no dia em que nos separamos.
A moça abaixou o capuz e mostrou o rosto enrubescido. Seu olhar brilhava, mesmo oculto pelas sombras do beco. O rosto já não era mais tão jovem, mas mantinha os traços de uma bela mulher. Esguia e altiva, mantinha uma postura perfeita, reflexo dos anos na corte. As túnicas finas e de alto padrão escondidas sobre o manto encardido e manchado que deveria ter conseguido com algum de seus serviçais.
— Imagino que tenha se lembrado de ocultar seus passos — quis saber ele, receoso.
— Mas é claro — respondeu ela, parecendo irritada com a colocação. — Acha que não sei do que meu marido é capaz se nos pegar juntos de novo?
Ele deu de ombros. Era melhor ter certeza.
— E então, Deb, o que você quer depois de tanto tempo? — disparou ele, tentando parecer o mais indiferente possível, para conter o ímpeto de agarrá-la e dar-lhe um beijo como no passado já haviam feito diversas vezes.
A moça suspirou pesadamente e de dentro da manta revelou um pacotinho, algo embrulhado, que até então o homem não havia percebido.
— Preciso de sua ajuda.
Johnathan olhou e se deu conta que ela segurava uma criança. Pequena, de bochechas rosadas, envolta por uma manta e de cabelos pretos. O bebê deveria ter poucas semanas de vida, visto a baixa quantidade de cabelos e o rosto ainda sem muita expressão ou traços distintivos. O homem deu um passo para trás.
— Ele não pode ser meu, faz anos que não nos vemos, como?
— É claro que ele não é seu! — disparou ela. — Este é Arthie, filho de Lorde Lecroax, meu marido.
Johnathan fechou a cara, com o orgulho ferido. Apesar de saber que esse dia chegaria, ver sua amada segurando o filho de outro era como receber uma facada direto no coração.
— Me chamou aqui depois de todo esse tempo para me mostrar o filho que deve com aquele imbecil? — a frase escapou muito mais ríspida do que tinha planejado.
Milady Lecroax pareceu não receber o insulto. Apenas respirou fundo.
— Não foi por isso. Eu não seria tão cruel, e você sabe bem. Te chamei aqui porque preciso de sua ajuda.
O homem desarmou sua postura irritada e sucumbiu ao tom suave de sua amada. Ainda com o rosto fechado, afagou os cabelos da criança e olhou nos olhos de Milady Lecroax. Olhos brilhantes e verdes que o afastavam de todas as dores do mundo, e de todos os pensamentos que povoavam sua mente.
— É um lindo menino. Parabéns.
Ela sorriu.
— Obrigada. Sei que não é exatamente a circunstância que gostaria para nos vermos de novo. Gostaria que fosse diferente, sabe disso, mas a deusa quis que nossos destinos fossem separados. Você, sendo um sacerdote, deveria saber disso melhor que eu inclusive.
Ele apenas ergueu as sobrancelhas em sinal de concordância.
— E então, para que precisa da minha ajuda?
Milady Lecroax abriu os panos que envolviam o menino no seu colo e mostrou o torso da criança. Envolto no umbigo e fazendo uma espiral que cobria toda a barriga, símbolos formavam um selo. Johnathan deu um passo para trás, assustado.
— Um selo de contenção? O que significa isso?
— Ele nasceu com uma maldição, segundo o sacerdote Deufos, desde que ele nasceu objetos se movem sozinhos pela casa, criados fogem assustados alegando barulhos estranhos no corredor. O que mais me assusta, para falar a verdade, é que nenhum animal entra mais na nossa casa. Os cães ficam na porta como se estivessem com medo de dar um passo.
Ela afagou a pequena criança e suspirou antes de continuar:
— Sabe como é Lorde Lecroax, ele tem receio da magia e isso foi suficiente para acionar Deufos, que é tão louco quanto meu marido. O sacerdote disse que o selo ajudaria, mas me lembro que você um dia me contou sobre a reclusão de dádivas da deusa. Isso pode ser ainda pior que desenvolver a magia. Fiquei com medo pela vida de meu filho e pedi que um dos meus criados lhe levasse aquela mensagem. Por favor, Johnathan, me diga que tudo vai ficar bem.
O sacerdote analisou os símbolos. Um selo de magia antiga que prendia toda capacidade do menino dentro de si. Era difícil acreditar. Se tudo aquilo fosse verdade, o menino teria poderes extraordinários. Os sacerdotes e clérigos precisavam escrever para fazer magia, mas aparentemente, segundo os relatos de milady, o menino teria a capacidade de manifestar a magia sem nem ao menos se dar conta. Isso explicaria o medo dos animais e os acontecimentos estranhos na casa dela. Era a única explicação.
— Já li sobre eventos como esse, mas são extremamente raros. Se seu filho realmente manifesta magia sem ter de escrever isso pode significar que ele é mais poderoso que o mestre Paithon — explicou ele, referindo-se ao sacerdote que o ensinou a magia.
— Não me interessa quanto poder ele tem, me interesso por saber se o selo que Deufos colocou nele vai ser suficiente para conter isso e manter meu marido em paz, sem querer o mau do filho.
O homem tirou da bolsa que carregava consigo uma pena e um pouco de tinta. Desenhou quatro símbolos na tampa de uma caixa e cruzou as linhas conectando todos eles ao centro, onde fez um círculo com o símbolo de Valka, a deusa escriba, no centro.
— Coloque o menino aqui — indicou ele, guardando os objetos.
A mãe pousou o bebê sobre a caixa e se afastou.
O sacerdote começou a entoar algumas palavras que ela não reconhecia na língua comum e em poucos segundos o selo na barriga do menino brilhou em um tom azulado e os quatro símbolos na caixa fizeram o mesmo. Um inclusive criando uma chama logo acima do desenho; outro uma esfera de água; outro um pequeno pedregulho; e o último um tornado minúsculo.
— Pela deusa! Não pode ser! — assustou-se o sacerdote com os olhos arregalados.
— O que foi?
— Deb, seu filho foi capaz de materializar elementos, isso é impossível! E ele ainda tem um selo de contenção. Isso deveria manter toda a magia presa dentro de seu corpo. O selo não está sendo suficiente para conter o poder da criança.
— O que isso significa?
— Significa que seu filho é ainda mais poderoso que eu imaginei. Fazemos este teste com aprendizes na cidadela, mas normalmente os símbolos apenas brilham com o elemento de maior aptidão da criança. Seu filho não apenas manifestou um elemento, mas todos os quatro que regem a magia. Eu nunca tinha visto nada igual. Não sei se o menino é capaz de conter toda essa magia dentro de si.
A mãe pegou o filho no colo, assustada com o prognóstico do antigo amante. Embrulhou o menino de volta nos panos e balançou-o gentilmente para que se mantivesse em silêncio.
— Deb, talvez o selo tenha sido uma boa ideia, mas o menino precisa aprender a controlar essa magia, caso contrário ela o controlará. Isso pode ser ainda mais perigoso do que conter o poder do menino.
— Como vou fazer isso? Lorde Lecroax nunca aceitará um filho sacerdote. Ele atura Deufos por necessidade, mas odeia você e os demais. Ele teme a magia e eu temo o que ele pode fazer com o menino caso descubra que ele é ainda mais poderoso que aqueles que já o deixam inquieto.
— Tolo ignorante — sussurrou Johnathan em desprezo pelo nobre.
— Não tive escolha, sabe bem disso. Meu pai me arranjou o casamento e eu tive que ceder ou matariam você — lembrou ela o motivo de estarem separados.
— Não importa agora. O que fará com o menino? Não conheço nada que possa ajudar a melhorar a eficácia do selo, ainda que não com concorde em conter a magia, talvez seja o melhor a se fazer no caso da criança.
— Se ele ficar com o selo acha que as coisas que estão acontecendo em minha casa vão parar?
O sacerdote pensou um pouco antes de responder:
— Provavelmente não. Se ele está manifestando isso com apenas algumas semanas de vida, à medida que crescer o poder tende a aumentar.
— O que farei, Johnathan? Lorde Lecroax irá prender o menino em algum canto ou pior!
— Ele precisa aprender a conter esse poder, Deb. Pelo bem dele e de todos a sua volta.
— Pode me ajudar?
— Como? — quis saber ele, sem entender as intenções nas palavras dela.
— Leve-o para Cidadela, ele pode ser seu aprendiz!
— Está louca? Como eu explicaria isso lá?
— É a única esperança que tenho. Confio a você minha vida, e agora a de meu filho. Sei que o tratará bem e é letrado na arte da magia ao ponto de poder ajudar-lhe. Por favor, meu amor, faça isso, por mim.
As palavras lhe invadiram os ouvidos direto para o coração. O menino seria um motivo para Deb manter o contato e lhe ter maior apreço. Ainda que o motivo fosse egoísta, sabia que estaria salvando a vida do menino.
— O que dirá a Lorde Lecroax? — perguntou ele, já aceitando sem saber.
— Que o menino não suportou a magia. Tenho certeza de que ele não fará mais perguntas.
— Ele crescerá sem a mãe — pontuou o sacerdote, pegando o menino nos braços.
— Mas crescerá! E isso para mim é mais importante. E crescerá ao lado de alguém que eu amo.
A frase dela lhe apaziguou o coração despedaçado. Mas foi o beijo caloroso como nos tempos de juventude que lhe fraquejaram as pernas.
— Agora preciso dar um jeito de passar pelos guardas da Cidadela sem que eles me parem com o menino — pensou em voz alta o sacerdote.
— Tenho certeza de que o Ilusionista da Névoa dará um jeito — disse ela com um sorriso.
— Espero que meu título ludibrie os guardas — brincou ele, menos confiante que ela quanto a suas habilidades.
Ela lhe deu outro beijo.
— Enviarei para a Cidadela tudo que precisar e sempre manteremos contato via cartas. Ainda lembra de nossa língua?
— Claro — respondeu ele, recordando da língua que os dois haviam criado para se comunicar na juventude sem que suas cartas de amor fossem descobertas.
— Usaremos dessa forma. Um criado de confiança lhe enviara as cartas e só deve me mandar cartas através dele.
A paixão e a facilidade com que sua mente bolava o plano o fascinava de uma forma hipnotizante. Se estivesse em sã consciência veria diversas falhas naquele plano, mas ali, diante dela, parecia que tudo correria bem, e uma vez mais estaria em contato com a amada.
Os dois se separaram e o sacerdote ficou no beco alguns segundos a mais, processando o que havia acontecido. Quando deu por si, segurava um bebê no colo e não tinha a menor ideia do que fazer. Em sua fantasia juvenil havia concordado com algo para o qual não estava preparado. A Cidadela de Björ onde residia era o refúgio de diversos sacerdotes em peregrinação e estudos, e ele como um dos membros responsáveis por doutrinar novos membros da ordem não tinha condições de criar uma criança.
Ao mesmo tempo, estava intrigado com o poder da criança. Seria um sacerdote de capacidades extraordinárias se bem treinado. E caso não o fosse, o poder do menino poderia tirar-lhe a vida ou pior, a de outros.
Receoso, mas empolgado pelo desafio, aceitou a missão em seu coração de tornar aquele pequeno e frágil menino em um sacerdote sábio e poderoso. Seu pupilo rivalizaria com os grandes nomes da história de Valanka. Estava decidido! Próximo passo: Entrar na Cidadela com uma criança de colo sem ser notado. Uma vez lá dentro Iliade e Cassandra, suas companheiras da ordem, poderiam ajudá-lo com a parte de criação. Eram confiáveis e com toda a certeza não iriam expor o menino uma vez que entendessem a situação.
Ao menos, assim esperava.
Cobrindo o corpo do menino com a manta, caminhou de volta a rua. Poucas pessoas andavam aquela hora e pouco se importavam com o homem encapuzado. Dobrou a esquina e viu dois guardas bebendo junto a porta. Passou de cabeça baixa e em silêncio, rezando para que a criança se mantivesse no sono profundo.
Passar despercebido pelas ruas da cidade foi tarefa fácil. Era no portão que estava o desafio. Os guardas não permitiam a entrada na Cidadela após o pôr do sol sem que houvesse uma revista e sem que o capitão da guarda ficasse sabendo. Motivo esse que mantinha o capitão com os bolsos bem preenchidos em função dos subornos recebidos para manter a discrição quando sacerdotes e clérigos queriam se aventurar fora dos portões a noite.
De certo que o bebê não passaria despercebido pelos guardas e muito menos pelo capitão da guarda quando fosse chamado para avaliar a situação — os guardas não faziam nada fora do padrão sem consultar o capitão.
O sacerdote avistou uma pequena carroça ao lado, com um pouco de feno, frutas e outras coisas sobre ela. Teve então uma brilhante ideia. Colocou a criança ajeitada em meio ao feno e usando a pena e a tinta usou a magia que lhe dava o título. O Ilusionista da Névoa fez um rabisco nas vestes que envolviam o corpo do bebê. Entoou algumas palavras e o menino foi envolvo por uma fumaça branca que brotava do rabisco e o envolvia aos poucos. Quando totalmente envolto pela fumaça o sacerdote pegou o carrinho e começou a empurrá-lo em direção ao portão.
— Alto lá!
— Boa noite — cumprimentou ele.
— Boa noite, senhor. Onde pensa que vai? — disparou o guarda não reconhecendo o sacerdote sem as vestes da ordem monástica.
Johnathan abaixou o capuz e mostrou o cordão que carregava sobre as vestes que indicavam que ele era um membro do Sacerdócio.
— Sacerdote? Qual o seu nome, meu senhor?
— Johnathan Virgo, sou um dos mestres da Cidadela, soldado. Agora deixe-me passar! — comandou ele, indicando seu posto com rispidez, imaginando que o guarda recuaria.
O homem de bigode espesso e cabelos calvos hesitou. Claramente não queria arrumar problema com um sacerdote, ainda mais um dos mestres da Cidadela. Pensou em chamar o capitão, mas o homem a sua frente estava muito malvestido para que carregasse algum tipo de riqueza.
— O que leva neste carrinho? — quis saber o outro guarda.
— Apenas algumas frutas e ingredientes para minhas poções.
Os homens olhavam diretamente para a massa envolta pela fumaça, mas que para eles não passava de uma grande abóbora alaranjada em meio a outras tantas frutas e legumes.
A magia de Johnathan consistia em envolver objetos em névoa que tomavam a forma mais aceitável aos olhos de quem as visse. Ganhou muito dinheiro fazendo shows para a nobreza durante a juventude, habilidade que o levou diante do pai de Deb, e aos braços de seu amor.
Torcia para que o bebê não emitisse um som. Caso contrário a ilusão poderia se desfazer. O mínimo sinal de dúvida a grande abóbora viraria um monte de fumaça branca e ele teria problemas sérios com os guardas e com o capitão da guarda. Coisa que não seria muito boa para sua reputação e muito menos para sua saúde. A guarda respondia aos clérigos, ordem irmã da de Johnathan, mas bem menos tolerável a essas pequenas discrições por parte dos sacerdotes. E o sacerdote em questão não era muito bem-visto por seus colegas por ser considerado deveras “astuto”, segundo os próprios clérigos.
O guarda olhou mais de perto o cordão que o sacerdote carregava no pescoço para se certificar que era verdadeiro. Alguns segundos depois, cutucou seu companheiro e fez um sinal negativo com a cabeça, que o sacerdote sabia significar que o guarda não o achava digno de pressionar para extrair algo.
— Passe, senhor. Mas que seja a última vez que o vejamos fora dos portões a essa hora da noite, ou na próxima terá que esperar o dia raiar — disse o homem, fazendo sinal ao guarda do alto da torre para que abrisse os portões.
O sacerdote pegou seu carrinho e empurrou fazendo uma expressão encabulada para o soldado, como se pedisse desculpas. Cruzou o portão e o menino emitiu um som agudo, que o fez parar para olhar para trás na direção dos guardas.
— Passe um óleo nessas rodas, sacerdote, ou vai acordar todo mundo até o pátio principal — disse o homem, confundindo o som do menino com o ranger do metal do carrinho.
Johnathan deu um sorriso e voltou a empurrar o carrinho.
— Como diria mestre Paithon, todo ilusionista conta com um pouco de sorte de vez em quando — disse ele ao menino que agora seria seu pupilo.