O Bucho
Havia guerra, e havia paz. Havia conforto, e havia desespero. Havia parte por parte de corações esperançosos que já não batem mais. Quando o mal é capaz de se esconder na alma dos puros, quando o progresso é corrompido pela ganância, faz-se então o momento de se desvencilhar das amarras da opressão que se traveste de segurança.
Numa imensidão de diferentes culturas e religiões que se entendem, limiarmente, como uma nação, os grandes decidem o destino dos menores, mas a atenção que é dada a estes fica relegada ao que vem depois; muitas vezes, a memória deste “depois” é um sopro que logo se mistura ao vento.
Diziam os antigos que quando o bem se aquieta, triunfa o pútrido.
Às vezes, as pequenas mãos constróem maravilhas capazes de gerar a admiração nos mais imponentes Reis e Rainhas. Às vezes, nos encontramos em situações em que devemos agir, ou padecer, mas sempre a persistência de fazer o que é certo é o que nos leva ao passo adicional, ao passo determinante.
Algumas vilas por Gillard sequer sabiam das vidas ceifadas diariamente no conflito entre aqueles que comandavam os grandes Clãs. Mesmo as que sabiam, não entendiam que na sombra da paz em que viviam, espreitava uma terrível sina.
Em algum lugar perto das colinas, muito próximo aos três picos chamados coletivamente naquela região de Montanhas Fantasmas, uma garota nada especial tenta reavivar sua memória de tempos de outrora, exercício que lhe falhava repetidamente.
"Eu sei, eu sei querida. Eu entendo que você sinta saudades." O sorriso estampado no rosto da moça escondia as angústias de ser mãe solteira. Ela arrumava o pouco de trigo que havia sobrado da última colheita na única prateleira da casa e retornou os olhos cansados à sua filha.
"Devemos nos preparar para a próxima safra, muito em breve."
A menina não respondeu, continuou apoiada na mesa ao centro da casa, seu rosto afundado nos braços cruzados à frente. Não era como se ela quisesse ignorar sua mãe, mas por mais que sua memória não fosse muito clara, a saudade já lhe corroía há 10 anos; praticamente sua vida inteira.
O rosto da garota, tão delicado quanto as águas do Espelho da Lua, refletia a angústia de viver nessa pequena aldeia tranquila desde que nascera, não conhecendo muito além disso e dos arredores. Não é que faltasse algo, na verdade, Irina tinha uma vida tranquila, ainda que destituída de posses; no vilarejo todos dependiam uns dos outros de alguma forma, mesmo as duas únicas famílias que possuíam um pouco mais de recursos.
Alana sabia que aquilo a incomodava profundamente, mas tentava de todo modo distrair a filha. "Pare de pensar nisso, Irina."
"Isso? 'Isso', minha mãe? Como podes falar assim de uma pessoa, especialmente se tratando--"
"Filha. Não foi isso que eu quis dizer." Por um momento pestanejou, não sabia se deveria continuar, seu semblante se fechara sem intenção. "Veja com Harad se ainda resta alguma ovelha, mas não creio que haja. Me acertarei com ele depois." Alana olhou de rabo de olho para Irina, e esperou a reação da menina.
A garota rapidamente se levantou e olhou pra sua mãe, com os olhos esbugalhados: "Me diga que se trata daquela canja!"
"Somente se demonstrares a boa educação que te dei com todos que cruzarem teu caminho."
Antes mesmo do som da risada de Alana se difundir com o barulho do dia-a-dia na vila, Irina já estava na rua, suas madeixas negras balançando soltas ao vento; ouvia-se seus "bom dia" e "como vai" com frequência a todos que via. A módica colônia tinha apenas um carniceiro, na região limítrofe norte, que recebia seus produtos diretamente de caçadores e criadores locais, o que reduzia em muito sua capacidade de atender todos. A Vila do Córrego Solitário era aconchegante e todos se conheciam - dos caçadores do Tio Alcipes aos agricultores, do pequeno Conselho aos recém-nascidos - e, descontando o caixeiro-viajante ocasional, este era todo o universo que a maioria dos moradores viria a conhecer durante a vida.
Ainda assim, não podia-se dizer que havia pouca variedade dentre os que ali viviam, não, pelo contrário, desde Harad em sua casa de carnes, aos irmãos Ubar e Udar do mercadinho no centro do vilarejo, a velha Adelaide que reconhecia a uma légua de distância cada comerciante que passava pela vila, e claro, as famílias que ali viviam: os Queixo-Partidos, os Mondeserras, Laçalvos e Segatos, além das pessoas que não tinham um sobrenome ou que o perderam em algum momento, por qualquer motivo. Ah, também moravam ali os Gastan, a última família a se juntar à vila: além dos pais, vieram seus filhos, um casal de crianças já capazes de trabalhar nos campos quando necessário, muito embora a maior parte dos dias elas ficassem dentro de casa, fazendo-se sabe lá o que. Alguns diziam que eles tinham tutores, outros que sequer falavam a língua local.
Poucas crianças tinham a idade de Irina, e menos ainda soavam-lhe interessantes, pensava ela. Quem sabe se tratava de timidez por parte da menina, outros ponderavam. O único com quem conversava ao ponto de perder a noção do tempo, era Gaine Gastan, um garoto ruivo um pouco mais velho, neto de um dos Conselheiros. Embora suas diferenças quanto sua criação, as crianças pareciam ter muito em comum.
Em época de vindima todos desciam de suas moradas, arregaçavam as mangas e atravessavam os limites do vilarejo para a ceifa do trigo e, também recentemente, recolher o mel em um campo menor em separado; esta ideia de uma segunda colheita - e o conhecimento para realizá-la - foi trazida pela família de Gaine há alguns anos. É neste período onde as crianças trabalham lado a lado com seus pais e tios na separação dos grãos para a próxima colheita e na divisão de potes de mel com o conteúdo mais convidativo para servirem de oferta no escambo dentre as vilas nos arredores. Não à toa, é também quando os filhos de todas as famílias passam a maior parte do seu tempo juntos, independente de quaisquer motivos que venham a afastá-los durante o resto do ano.
Após o trabalho de apanhar e separar, precisavam ainda segar, limpar e dividir. Havia um misto de alívio e preocupação ao final de cada colheita, mesmo as abundantes. Por um lado, estavam com a comida em mãos e barganhariam o excedente, além de utilizar os potes mais graciosos em troca de outros alimentos, ferramentas e até serviços; em contrapartida, sabiam que o inverno se aproximava, um período de bastante angústia onde a mortalidade de crianças e idosos acelerava drasticamente. A morte pode ser comum, mas nunca banal.
Pensando no árduo esforço que viria, Irina voltou à si quando caminhava em frente ao mercado e viu Ubar tentando se livrar dos últimos itens que ainda sobravam. A vila não recebia um caixeiro-viajante há um bom tempo, mas Irina pensou que talvez fosse normal, não se recordava exatamente com qual frequência os irmãos eram abastecidos por estes mascates que iam e vinham, aparentemente sem destino, conhecendo novos lugares. Um semblante de inveja seria visível no rosto da menina naquele momento, mas somente se conseguissem ler sua mente.
Ela viu o comerciante e já não tinha certeza se era mesmo Ubar ou Udar. Não, com certeza era Ubar; seu grosso bigode e a cara sempre amarrada lhe entregavam. Ela sorriu e acenou, mesmo sabendo que provavelmente ele não retribuiria - não há uma razão para especificar o porquê, mas digamos que mais de uma vez Irina já foi pega subtraindo objetos do local, na maioria das vezes por pura travessura.
Logo esbarrou brevemente num homem, talvez alguém ali mesmo da vila. Caída no chão, primeiro verificou seu joelho e então se levantou e continuou seu caminho, sem perceber que o homem lhe estendia a mão para ajudá-la. Empolgada com a possibilidade de tomar a sopa da sua mãe duas vezes em um único mês, Irina mal se continha, à tal ponto que sua mente focava apenas na antecipação.
"Irina!" Uma voz um pouco rouca, por trás à distância, a chamava. A voz lhe era familiar, mas ela precisava chegar até Harad.
"Venha aqui, menina." A insistência lhe tirou do caminho, ou talvez tenha sido meramente a curiosidade de ver quem se interpunha entre ela e a famosa canja de bucho de sua mãe.
Ao virar-se, Irina sequer conseguiu segurar sua alegria. Havia esbarrado em Edélio, o ancião da vila; o velho acabara de retornar de um encontro entre os chefes dos povoados nas redondezas, dizia, com o intuito de fortalecer os vínculos mercantis locais, especialmente neste momento em que a nação se aproximava de afundar-se num terrível conflito sem precedentes.
Muitos não acreditavam que havia realmente a necessidade de ajudar alguns vilarejos menores próximos. Argumentavam, principalmente, dois pontos: mal havia comida suficiente para que eles mesmo se alimentassem, então não deveriam pegar nada do excedente para doar àqueles que pouco produzem e que provavelmente em breve pereceriam ou se mudariam; na outra mão, também duvidavam que quaisquer efeitos da guerra entre os Clãs afetariam uma vila que não é nem um ponto de comércio nem estava no caminho de qualquer das estradas mais movimentadas. Pouco chegava até eles em épocas de fartura, argumentavam, ninguém sabe que sequer existem!
Edélio não se abatia. Seu Conselho, embora dividido, honrava as decisões finais. Quem sabe eles estejam certos, pensava o ancião, talvez nunca haja a necessidade dos vilarejos se ajudarem, pode ser que a guerra seja breve ou não saia das regiões do litoral… mas, se saírem de lá, caso se expandam e varram o território com destruição e ruína, eles precisarão uns dos outros e Edélio quer estar preparado.
Seus olhos voltaram para a menina, e logo o velho lhe deu as costas por uns instantes, revelando a corcunda que tanto dificultava seus movimentos. Irina se aproximava vagarosamente, o belo jardim abaixo do alpendre dos Gaston havia escapado totalmente sua atenção, mesmo com suas vivas e diversificadas cores.
"Aqui, pequena." Com um leve movimento que lhe enganava a idade, revelou uma frágil flor-de-lis púrpura.
A garota sorriu, e deu um beijo na bochecha do velho que se apoiava sobre os joelhos. Edélio esteve presente no difícil parto da menina, como fez com todas as outras crianças da vila e Irina reconhecia e o apreciava, mas ela tinha uma missão e iria cumpri-la, quanto antes melhor! "Oh!" A gentil surpresa do beijo o fez levantar rapidamente, mas logo as juntas cobraram o preço da afoitez. A menina limpou a boca da poeira advinda da viagem desgastante do ancião e tomou seu rumo mais uma vez, agora com duas humildes diferenças: um sorriso que parecia estar permanentemente impregnado em seu rosto, e a pequenina flor que, de certo modo, estava intimamente ligada à primeira diferença.
Já ultrapassava o pequeno córrego que dá nome ao vilarejo, desviado do Rio Branco e que divide as duas partes da comunidade, estava agora muito próxima da última construção dentro dos limites que conheceu por toda sua vida como seu lar: a casa de carnes de Harad!
Era capaz de sentir o cheiro que tomava conta da sua casa sempre que a mãe cozinhava, mas seu devaneio foi interrompido por uma voz desconhecida que gritou algo em uma língua que desconhecia. Vagarosamente se aproximou da porta entreaberta e pôs-se a escutar. Agachada, tentou olhar no interior, mas o sol vindo do outro lado dificultava a apreciação de detalhes, ainda que conseguisse distinguir múltiplas formas.
"Isto não foi o combinado, senhor." esta era a voz de Harad, apologético e muito respeitoso.
Ela não estava acostumada a ouvir o jovial carniceiro com esta falta de ânimo. As vozes desconhecidas novamente elevaram o tom, enquanto Harad ficava quieto. Surpresa, a garota se encontrou congelada na mesma posição que estava assim que chegou. Suas canelas não lhe obedeciam, seu coração explodia e os olhos pareciam maiores que a própria cabeça, tudo à sua volta lhe chamava atenção agora, seus ouvidos, entretanto, não lhe traíam: havia alguém lá dentro com o carniceiro e não era uma visita agradável.
"Entenda, as coisas mudaram… general." Entre grunhidos, Harad retrucou:
"Não me chame assim, *ighur ahbat*!"
O homem repetiu as últimas palavras de Harad, também nesta mesma língua, e, ainda neste dialeto, disse-lhe algo mais num tom autoritário. As outras duas vozes soavam engraçado, falavam algumas palavras de um modo diferente. Engraçado não ao ponto de dar risadas, mas engraçado que chama a atenção.
"Espero não precisarmos nos repetir." falou uma outra voz, ríspida e absoluta, complementando-o no idioma local.
"Não, não precisarão, senhor. Mas eu necessito de algum tempo para conseguir recolher tudo."
"Por Arthat, chega! Voltaremos na próxima lua, Harad. Eu não tenho nenhum interesse nesta vila, mas posso mudar de ideia caso esta conversa acabe tomando rumos inesperados, ou se torne de conhecimento popular." respondeu a segunda voz.
Irina continuava imóvel, seu espírito lhe rejeitara e fugia. Deixou escapar um grito de susto com o que disse o homem e infelizmente para a menina, ela não estava tão longe assim.
As vozes silenciaram. Não ouvia-se nada lá de dentro. O tempo parou, Irina conseguia ouvir sua respiração, cada inflada de seus pulmões era sentida como se o movimento voluntário fosse. Sua pele arrepiava com a possibilidade de ser descoberta.
Até que…
"Se eu pudesse conversar com Edélio, talvez--"
"Entenda, Harad, se eu quisesse conversar com o velho, eu mesmo o faria, sem a necessidade de você sequer fazer parte deste negócio. É pra isso que você está aqui: para resolver meus problemas… discretamente." disse o mais baixo.
"Bem, estamos conversados. Vossa senhoria primeiro, por favor." disse a primeira voz enquanto abria a porta vazada rumorosa ao fundo do estabelecimento para seu companheiro menor passar.
A menina fechou os olhos, soltou todo ar que tinha no peito e se pôs encostada na parede, com suas pernas relaxadas esticadas ao chão. Sua mente voava; era capaz de contar os grãos do barro encostando em sua perna e pressentia quais deles iriam grudar quando se levantasse. Não demorou muito para que ela percebesse que não estava sozinha, aliás, uma mão pesando em seu ombro deveria ser o suficiente para que essa ilusão se destroçasse de imediato.
"Irina?" o som de uma voz familiar foi um alento.
Harad, parado na soleira da porta, olhava para a menina com um sorriso no rosto. Sua mão costumeiramente suja ainda repousava sobre o ombro da menina, logo tirando-a para alisar a pequena trança firmada pela sua barba.
Por alguns segundos, ela o olhou diretamente nos profundos olhos escuros, sem mover nenhum músculo, até que o contagiante sorriso do carniceiro fez com que ela retribuísse na mesma moeda. O homem então estendeu novamente a mão e a levantou como se ela não pesasse mais que uma pena, e a convidou para entrar.
"Eu vim ver se ainda há bucho de ovelha."
"Ah! Então Alana vai fazer sua bendita canja, huh?" Irina ria e salivava com a mera expectativa. "Verificarei se ainda possuo algum, mas… se me prometer que um minguado desta sopa encontrará o caminho de minha mesa, procurarei com mais cuidado." o carniceiro se virou em direção ao acanhado estoque, olhando rapidamente para Irina e piscando ao fim da frase.
A pequena se debruçou no balcão de madeira e enfiou o rosto ali, e, sentada, observava o local.
Uma única janela no canto do estabelecimento permitia o sol adentrar, além da porta de entrada e outra nos fundos, mas o vento não soprava e talvez essa fosse a razão do cheiro forte lá dentro. Passando o dedo, Irina brincava com os cristais de sal que se escondiam nos sulgos do balcão. Na parede, algumas prateleiras com vidros fechados e instrumentos usados por Harad; algumas facas, um ou dois afiadores e uma aljava. Curiosamente, esta estava vazia e não havia nenhum arco à vista; aliás, Irina jamais o vira segurando um arco. Quem sabe seja apenas um presente do passado que agora lhe atormenta.
Em oposição à entrada, ficava uma pequena passagem para a parte interna, com uma sala escura onde o carniceiro se meteu para procurar o item solicitado à esquerda deste caminho. Irina nunca foi lá dentro, inclusive, ela agora se pegava pensando em como seria este lugar. Será que os animais ficam lá dentro esperando o homem vir e o entregam o que os pede? Irina deixou escapar uma risadinha com a invencionisse que se formara em sua mente. O pouco de barulho que vinha lá de dentro entregava, mesmo que basicamente, o que ocorria. Infelizmente não era nem um pouco parecido com o que ela imaginava. O arrasto de pedras de sal e algumas batidas do cutelo revelavam a verdade; a enfadonha verdade.
No fim do corredor, uma portinhola agarrada desesperadamente na única dobradiça que ainda estava ferroada no batente desbocava na parte traseira. De lá ouvia-se alguns animais que ficavam vagando onde ficava a módica morada de Harad. Sabia que, se tentasse, conseguiria atravessar o corredor e investigar a casa dele e voltar sem que percebesse. Riu baixinho para si mesma com a possibilidade.
"Quem eram aqueles homens, Harad?" a pergunta estava em sua mente desde que entrou, mas agora escapou de sua boca. Por sorte, ele não a escutara.
"Clientes. Apenas."
Pelos olhos de Agorn, ele ouviu sim!
Irina queria saber mais, mas seu coração parecia se apertar, uma espécie de aviso para não se meter onde não foi chamad--
"Eles não pareciam ser clientes. Pareciam bravos. Por que saíram pelos fundos?"
Houve silêncio por alguns momentos. Irina levantou o rosto de seus braços e pôs-se a observar o local. Será que eles ainda estavam lá? Não havia como sair por lá, certo? O sentimento de perigo novamente tomou conta dela e ela se levantou totalmente, afastando-se do balcão, ao mesmo tempo sua curiosidade não permitia que fugisse, sua mente gritava para que corresse como uma lebre.
"Desculpe a demora, querida." voltou o homem lá de dentro, absorvendo toda a expectativa de que algo diferente viria a ocorrer.
Irina respondeu-lhe apenas com um sorriso simpático. Havia um pouco de decepção em seu rosto.
“Eu tive que pedir gentilmente à ovelha, mas sabemos como são teimosas."
A menina riu brevemente enquanto olhava para cima, na direção dos olhos do carniceiro e retornou à banqueta que sentara anteriormente. Suas mãos no balcão pareciam pequeninas linguiças. A observação contentou o homem, que logo percebeu que ainda segurava o bucho. Rapidamente se pôs a amarrá-lo com dois cordões, fazendo uma pequena alça no topo.
"Aqui, pequena. Diga para sua mãe que mandei lembranças!"
Irina pegou o artigo de seu desejo e disparou em retirada, contente com o fato de que o homem havia encontrado um bucho em ótima forma. "Ah! Ele foi tão gentil, e eu tão descuidada!" logo pensou.
O homem limpava o balcão, arrastando sal que havia caído enquanto amarrava o bucho, até um pequeno recipiente para se juntar mais tarde ao monte maior. Quando terminou, percebeu que havia alguém a porta, e levantou para encarar a visita:
"Obrigada, Harad." Era Irina, sorridente.
"De nada, garota, de nada."
Agora sim satisfeita: com o bucho em mãos, indo para casa e tendo sido educada com todo mundo que encontrou, assim como lhe fora solicitado.
Ao chegar em casa, encontrou sua mãe deitada na cama de palha que compartilhavam, ainda com a mesma roupa. Provavelmente ela caiu exausta mais uma vez. "Só vou fechar os olhos rapidinho" ela costumava dizer quando Irina estava por perto. Tudo bem, ela tinha razão, Alana fechava os olhos com uma rapidez incrível, então, de certa forma, não estava errada.
Do único bolso de seu vestido de linho a menina tirou a flor-de-lis que lhe foi presenteada por Edélio e colocou junto de seu pequeno recipiente de barro, onde encontravam-se pelo menos outras onze flores similares. Organizou-as separando por tamanho e tentou manter a mesma distância entre cada uma, e assim, logo logo teria um jardim como dos Gastan! Colocou o bucho em cima da mesa e o cobriu com um pedaço de pano que estava ali por cima, tentando fazer o mínimo de barulho possível.
"Outra Irina?"
Aparentemente o cuidado não foi o suficiente.
"Oi mãe, sim, coloquei junto das outras. Esta é roxa ainda por cima! E para completar este dia de sorte, era o último bucho no estoque de Harad."
"Ah, que maravilha. Já vou me levantar..."
Irina sentou-se diante de sua mãe, com a mão repousando no ombro dela. "Não não, eu nem estou com fome, na verdade. Podemos deixar pra depois." A própria vontade a traíra com sua voz evidenciando o oposto de suas palavras.
Sem respondê-la, Alana se pôs de pé e foi até a mesa, iniciar os preparativos. Era uma sopa simples, sem muitos segredos, mas que rapidamente tornou-se o deleite dos seus conhecidos. O zelo com que ela tomava conta da comida para que estivesse tudo tão perfeito quanto possível definitivamente era um diferencial. Aquela era a cascada de ovelha mais saborosa de toda região!
Irina sentou-se na cadeira e assumiu sua postura costumaz com seus braços cruzados.
"Mãe", começou ela, com seu queixo pressionando o próprio antebraço "Harad sempre foi carniceiro?"
"Bem, que eu saiba sim..."
A pergunta parecia simples e inocente, mas Alana logo percebeu que não se lembrava desde quando conhecia o homem, embora definitivamente sabia que ele não crescera na vila.
"Na verdade, Harad não cresceu com a mamãe. Mas sim, ele sempre foi um carniceiro. Pensa em seguir o mesmo rumo?" a piada não ressonou com a pequena, que ainda mantia o olhar focado em lugar nenhum.
"Ele já lutou em alguma guerra?"
Alana irrompeu-se em gargalhadas, e virou-se esperando ver sua filha na mesma situação.
"Sim, filha." ela tentava segurar o riso enquanto falava "Harad foi o bravo herói da famosa Batalha do Pé-de-Porco! Graças a ele nunca mais os porcos grunhiram em desafio ao poderoso Vilarejo do Riacho Solitário."
Irina acompanhou a mãe desta vez. Era inevitável, imaginar Harad combatendo alguns suínos vestidos de gente sobre duas patas era cômico por si só. A conversa acabou se estendendo muito mais que o esperado, e aquela noite, que seria preservada pra sempre na memória de Irina, foi temperada com risadas e comentários sobre a tal épica guerra porcina.