Contos de Valanka - A florestal de Vilkin
Os raios anunciavam a tempestade que se aproximava dos dois homens que terminavam de comer e recuperar suas forças da longa viagem em direção a cidade de Romir. Os cavalos estavam inquietos, presos as árvores da entrada da Floresta de Vilkin.
— É melhor acharmos abrigo — pontuou Taifon, jogando fora o resto de comida em sua tigela.
— Concordo, se formos pegos pela tempestade provavelmente perderemos a encomenda — concordou Thyfos, batendo a mão na bolsa que carregava ao lado do corpo que continha os pergaminhos que deveriam entregar. — Mas onde vamos encontrar um abrigo agora?
— Podemos entrar na floresta, o que acha?
Thyfos hesitou.
— Não me diga que está com medo.
— Você conhece as histórias tão bem quanto eu. Não quero ser mais um velho louco — pontuou Thyfos.
— Não vamos entrar tanto, apenas o suficiente para nos proteger da tempestade.
— Assim espero, Vilkin não é conhecido por ser benevolente com os que invadem seu reino...
Os dois homens entraram entre as árvores e avançaram com cautela. A floresta era densa, com poucos caminhos evidentes e espaços para ocupar. Não muito longe de onde entraram, uma pedra enorme coberta por algumas raízes e folhas em decomposição formava uma pequena saliência logo a frente.
— Valka foi generosa, temos a cobertura perfeita! — animou-se Taifon, correndo em direção a saliência e sacudindo um pedaço de pano para afastar qualquer inseto que porventura ali estivesse.
— É melhor pegarmos os cavalos — disse Thyfos, com a voz claramente trêmula.
— Não é espaçoso suficiente para nós e os cavalos. Além do mais, eles não vão conseguir entrar aqui.
— Nós também não deveríamos ter entrado — respondeu quase sussurrando.
A chuva os havia alcançado. Ainda muito fina e intermitente para lhes propor qualquer perigo, mas o céu se fechava e mostrava os dentes rosnando em fúria. Haviam ajeitado os cavalos em uma posição em que algumas árvores lhes dariam proteção. Era o melhor que conseguiriam, os animais eram grandes demais para percorrer o caminho denso e não havia tempo para achar outra entrada. Da cobertura natural que acharam era possível fica de olho nos cavalos, porém era difícil dizer se estavam bem, apenas suas silhuetas estavam visíveis.
Como num piscar de olhos a água começou a cair como se estivessem debaixo de uma cachoeira. O som era tão alto que estava difícil manter uma conversa, até que eventualmente desistiram e ficaram em silêncio. A fogueira que haviam conseguido acender logo foi apagada pelos respingos da chuva que invadia a saliência. Uma cortina de água os mantinha cegos para o mundo além de seu abrigo. Não demorou muito para que o desconforto tomasse conta dos dois homens, que se remexiam na tentativa de se molhar menos e se encolhiam para diminuir a sensação de frio que invadia até os ossos. Vez ou outra o céu rugia e um clarão tornava a noite em dia.
O tempo passou e eventualmente a chuva deu trégua. Os dois viajantes cansados e com frio, caíram no sono.
Thyfos foi o primeiro a acordar. Esfregou os olhos e passou a mão pela roupa para tirar as gotas que estavam presas ao tecido. O cheiro de mata molhada lhe invadiu a narina e constatou que a tempestade havia passado. Olhou para o companheiro que estava encolhido e cutucou-o para que acordasse. Taifon se remexeu e começou a despertar. Thyfos saiu debaixo da pedra para tentar ver se os cavalos estavam bem, mas havia uma infinidade de galhos quebrados e presos no caminho.
— Não consigo ver os cavalos daqui. Será que estão bem?
— Devem estar, não se preocupe tanto. Me deixe acordar e me secar que nós já vamos — respondeu Taifon, dando de ombros e fazendo o companheiro responder em uma careta.
O mais preocupado resolveu ver com os próprios olhos. Thyfos deu alguns passos em direção onde haviam deixado os cavalos e um som de madeira caindo ecoou pela florestal. O homem paralisou tentando achar a fonte, mas era difícil distinguir em meio a tantas informações visuais.
Sem que pudesse reagir, Thyfos estava a alguns metros do chão. Suspenso pelo que parecia ser uma rede. Taifon se levantou cambaleando, ainda tentando se recuperar do choque.
— Você está bem? — disparou ele aflito.
— Que pergunta cretina! — respondeu ríspido. — É claro que não! Estou preso em uma droga de rede a 50 metros do chão!
Taifon riu e olhou em volta para procurar a corda que prendia o companheiro.
— São 5 metros no máximo — corrigiu ele com um sorriso no rosto.
— Me tira daqui!
Observou a corda que segurava a rede suspensa e com os olhos foi seguindo sua extensão em direção a outra ponta. Estava presa em uma árvore próxima. Enquanto se dirigia até ela, viu uma silhueta se movendo entre as árvores, mas não soube distinguir o que era, talvez algum animal. Forçou a vista tentado identificar do que se tratava, mas não teve muito sucesso. Sentiu um cheiro forte e, por reflexo, virou o rosto, forçando o ar como se alguma coisa estranha tivesse entrado em seu nariz. Se recuperou e se dirigiu novamente para onde estava olhando, o que quer que fosse, não estava mais lá.
— Ande logo! — apressou-o, Thyfos.
— Está bem, só um minuto — respondeu ele, sacando sua faca para cortar a corda. — Muito me surpreende que essa armadilha não tenha sido acionada durante a tempestade.
— É, grande sorte a minha. Pare de enrolar e me tira daqui!
Antes que pudesse cortar a corda, seus olhos começaram a arder e lacrimejar, enquanto sua mão a formigar ao ponto de perder a força, fazendo-o derrubar a faca. Cada segundo que passava tornava mais pesada sua respiração, tendo que puxar o ar pela boca na esperança de não sufocar. O formigamento começou a subir de suas mãos até os braços e foi tomando conta do seu corpo. Tentou gritar, mas sua voz se extinguira. Levou as mãos ao pescoço numa tentativa desesperada de resolver o problema. Seu peito estava pesado. Encolheu-se no chão sem muita consciência de seus movimentos. Seu corpo tremia, estava com medo.
Ao abrir os olhos, sua cabeça doía. Demorou um tempo até o foco voltar e ver que estava preso pelas mãos em uma árvore. Ao seu lado estava Thyfos, que como ele, estava pendurado.
— Até que enfim você acordou — disse o companheiro.
— O que aconteceu?
Taifon estava confuso.
— Não faço ideia. Mas uma coisa eu sei, eu estava certo, não deveríamos ter entrado aqui.
Três ursos estavam próximos dos dois homens pendurados. Eram pequenos, mas se moviam de uma maneira estranha para animais.
Não levou muito tempo para Taifon entender o que tinha acontecido.
— São druidas!
— O que?
— Veja — indicou Taifon com a cabeça. — Estão usando peles de ursos, mas não passam de druidas. É por isso que os homens que saem daqui ficam loucos. Lembra da história do velho Hésquion?
— Você me parece bem calmo com essa possibilidade — transtornou-se Thyfos claramente com a tranquilidade do companheiro. — Se forem mesmo os druidas de Vilkin, nós estamos mortos!
Começaram a prestar atenção as coisas a sua volta. Não tinham reparado antes, mas agora podia ver ao fundo um totem do deus animal. A imagem de Vilkin, um urso enorme de duas cabeças, feita de madeira, que tinha 3 metros de altura. Observando os druidas, homens corpulentos e curvados, com seus rostos coberto pelos capuzes, mas era evidente que já não tinham tantos traços humanos quanto os dois aprisionados. Os druidas gruíam e se esbarravam, como bichos.
—Tente se balançar — propôs Taifon. — O galho em que te prenderam é mais fino que o meu.
Thyfos olhou para cima e averiguou que o galho era realmente mais fino, mas não menos resistente. Seu medo lhe impedia de pensar e apenas acatou ao conselho do amigo. Com o movimento das pernas e braços puxou seu corpo para cima e soltou todo o peso fazendo a corda se estender e o galho ranger.
O prisioneiro conseguiu apenas se balançar.
Um dos druidas ouviu o barulho e foi em sua direção. Thyfos não repetiu a ação, apenas ficou pendurado, balançando. O druida o fitava com olhar animalesco. Tirou o capuz, revelando um homem de cabelos brancos, rosto duro e marcado pelo tempo, seus olhos eram terrivelmente assustadores. Vermelhos e arregalados como se estivesse alucinando. Se aproximou de sua presa que balançava na árvore. Thyfos sentiu um calafrio ao ver a mão em seu peito com unhas enormes e pontiagudas. Parou de balançar. O druida tinha feito-o parar na posição inicial, preso pelas mãos e fácil de abater.
A sensação de impotência era terrível. O druida fedia como um cão molhado, seus dentes sujos lhe davam náuseas. Depois de fazê-lo parar de balançar o druida ficou na sua frente, abriu a capa que usava e enfiou a mão para pegar algum objeto preso ao cinto.
Thyfos não pode ver o que ele tirou de lá.
— Não respire isso! — disparou Taifon, aflito.
Era tarde demais, o druida havia soprado um pó verde no rosto de Thyfos, que tentou se esquivar, sem sucesso.
Os efeitos não tardaram a aparecer. Ficou zonzo, como se o mundo todo girasse a sua volta. Estar pendurado só lhe dava a impressão que era ainda pior, não demorando muito para a náusea tomar conta de si. O druida se aproximou com uma faca e o libertou. Caiu no chão pesada e sonoramente. Thyfos estava com medo e tentou fugir cambaleando para longe, mas em sua confusão foi para o lado errado e acabou cercado pelos druidas. Sua cabeça doida, tudo girava. As árvores cresceram de forma descomunal ao seu redor, atingindo os céus e fazendo os deuses se enfurecerem e lançarem trovões em protesto. Olhou para os druidas que haviam se transformado no enorme urso de duas cabeças, sedentos por sangue. Os ursos gigantes rugiam para ele, fazendo-o se apavorar.
Tentou fugir, mas o totem de Vilkin havia criado vida e o impedia de ir para longe dos grandes ursos. Foi então que viu um gigante socar um dos ursos, sua força incrível arremessou para longe o animal. O sangue jorrou. Tentou fugir para as árvores, mas elas estavam vivas e o prendiam como se estivesse em uma das arenas da cidade de Romir. Um meteoro vindo do céu atingiu o chão e fez tudo tremer. Os monstros de duas cabeças mostravam seus dentes para o gigante e rugiam tão alto que o som fazia os ouvidos zumbirem.
Estava petrificado em meio a guerra daqueles seres. Impotente, apenas observava os acontecimentos e rezava para que sobrevivesse ao que quer que estivesse acontecendo.
O gigante golpeava com força um dos animais. Ele se virou em direção a Thyfos, suas pisadas fazendo o chão tremer. O homem tentou fugir, mas o totem de madeira maciça, se moveu e olhou-o nos olhos, impedindo-o de fugir daquela zona de extermínio. Gritou por socorro. Uma mão enorme vinha a seu encontro, sem ter o que fazer, rezou. O mundo se fez escuro. Em sua escuridão, Thyfos ouvia gritos de desespero. Tampou os ouvidos, o barulho era ensurdecedor. Queria fugir, mas não tinha pernas ou braços, não era ele. O mundo lhe parecia ter sumido e nada mais era real.
Abriu os olhos e o gigante havia voltado a se digladiar com um dos ursos, abrindo-lhe a bocarra, como um dos heróis das antigas escrituras. Viu um meteoro atingir em cheio um dos ursos, fazendo um mar de sangue inundar a floresta. Rapidamente se encolheu para se proteger da onda vermelha que vinha em sua direção.
Quando constatou que não tinha sido arrastado, olhou a sua volta e o mar havia desaparecido. O urso atingido havia se transformado em um enorme tapete. Outro gigante saiu de dentro da uma das árvores, fazendo lascas voarem para todos os lados, como se o tronco fosse sua prisão. Livre, o gigante golpeou o urso que seu companheiro combatia e o animal se curvou em dor. Os seres enormes se moviam harmonicamente, golpeando repetidas vezes as cabeças do animal que cambaleava até desaparecer em meio as árvores.
Subitamente seus pés perderam contato com o chão e Thyfos se viu suspenso, nas mãos de um gigante. Ele se debateu o quanto pode, mas era inútil. A última coisa que sentiu foi uma pancada em sua cabeça e tudo escureceu.
Quando recobrou a consciência, estava amarrado sobre seu cavalo, sendo puxado por Taifon e outros dois indivíduos que nunca havia visto antes. Tudo havia voltado ao tamanho natural.
— O que aconteceu? Por que estou amarrado? — quis saber prontamente. Ainda procurava pelos gigantes, com receio que estivesse alucinando.
— Porque você se debateu e tentou atacar Hécto e Alia no meio da sua loucura. Mais de uma vez inclusive.
— Hécto? Quem é Hécto? — Thyfos estava confuso e sua cabeça latejava.
Todos riram.
— Apenas a pessoa que nos salvou da morte certa.
— A última coisa que me lembro foi de um gigante derrubando os ursos na floresta e que eu era capturado — falar aquilo em voz alta lhe pareceu absurdo.
— Você deve estar se referindo a mim derrubando os malditos druidas. Aquele pó verde deve ser muito bom, virei até um gigante — disse o homem que parecia um caçador.
— O que foi que aconteceu?
— Você respirou o pó de druida. São alucinógenos poderosos e se tivessem conseguido usar os outros em você, provavelmente não voltaria ao normal — informou Hécto. — Vocês tiveram sorte que eu e Alia estávamos por perto e vimos quando eles os capturaram.
Thyfos viu uma moça usando roupas de caçadora e um estilingue preso ao cinto. Inferiu que os meteoros pudessem ter saído dali.
— Foi incrível! — exaltou-se Taifon. — Eles lutaram contra os homens-urso como se...bem, como se fossem gigantes!
O comentário despertou o riso em todos, menos em Thyfos que se sentia idiota por ter acreditado que o que vivenciara tivesse de fato acontecido.
— Bom, eu lhes agradeço, mas será que podem me desamarrar agora?
Taifon desamarrou o companheiro e lhe deu a bolsa com a encomenda que deveriam entregar.
— Tivemos sorte que eles estavam lá. Teríamos ficado loucos como o velho Hésquion.
— E como é que vamos pagar esses dois por ter-nos salvado? Ou esses dois caçadores são honrados e altruístas heróis que não exigirão recompensa? — sussurrou Thyfos para o companheiro.
Taifon esboçou um sorriso. Conheciam bem o tipo.
— Prometi que quando chegarmos a Romir e recebermos pela entrega lhes pagaria uma boa refeição e uma boa noite de sono em uma estalagem.
— Contanto que não comam como gigantes...