A sorte do divino
Entrou no bar e pediu secamente uma dose de vodca. Enquanto o garçom servia observou a barata no espelho do banheiro. Bebeu e sonhou com a vida em misteriosas circunstâncias. Queria morrer de propósito, estava cansado. O mundo havia devorado seu corpo. A mulher dizendo que acabaria fazendo loucura. Respondia, exaltado.
- Não ganho para tanto! Nem para enlouquecer. Professor não ganhava para tanto e trabalhava feito condenado naquela infernal escola primária.
– Você quer dizer que alguém é capaz de matar divindades só para pôr a culpa no Diabo? Disse o garçom, vindo da mesa dos fundos, sem gravata, mangas arregaçadas, as mãos rosadas de frio.
Ficou um instante a escutar o ruído de louça.
- Deus não existe! É abstração, invenção.
- Seria a certeza nascida de uma indecisão?
A mãe do menino era mulher de quarenta e poucos anos, de feições cínicas, apesar de certa beleza e um pouco maltratada pela vida. Jurou tirar o garoto da escola, (caso o professor não retirasse suas palavras), afinal Deus é poderoso. E existe! No bar o professor ria o riso ebirridente emanado do calor da vodca. O salário era de sacerdote e a confusão espiritual antiga. Bateu com o punho na mesa dizendo:
- Não sou padre! Em sua cabeça havia um jogral: Deus não existe!
O delegado estava de olho nele. Ficou um instante observando o relatório: ateu professor e ateu. Foi interrompido pelo som da sirene do carro carregado de delinqüentes. O escrivão penetrou no recinto jogando o jornal na mesa do comissário adjunto. Manchete:
"Deus está morrendo no coração dos homens!"
Havia queixas contra o monstro e assassino do divino. A vida sem ele seria monótona, faltaria algo na hora das apostas. O delegado mandou entrar a primeira testemunha. Tratava-se de Maria Aparecida de Jesus. O comissário lhe mostrou o retrato.
– A senhora conhece este cidadão? Ela observou com seriedade.
– Ele mesmo. Ah é ele – repetiu com gosto. No fim quis ir lá abraçar o filho na escola, quando fiquei sabendo, mas aquilo ficou pouco claro. Afinal, Deus é poderoso, não pode morrer assim tão fácil.
– E o garoto? O garoto está traumatizado?
– Ficou de telefonar na saída da escola. As religiosas estavam agitadíssimas, Deus morrendo e elas sem fazer nada. Absolutamente nada.
O comissário coçou a nuca e perguntou.
– Nem rezar?
– Não, disse secamente a mulher. A gente não entende...
Quando o telefone tocou, a mulher aproveitou e desandou a chorar, olhando fixamente para o crucifixo ao lado do retrato do Presidente.
O escrivão datilografava concluindo que talvez desse tempo de salva-lo. Deu com os olhos em Maria Aparecida de Jesus, sem compreender muito bem porque devia se curar do priapismo, concluindo rapidamente que ela apenas bastaria para alcançar a cura. No corredor, um bandido era levado pelo guarda, algemado e de cabeça baixa. Foi o que bastou para que secasse o prazer mental daquele instante.
Chamou o guarda.
– Quem é este vagabundo?
– Adamastor, respondeu o guarda.
– Até que ano estudou?
– Fez o ginasial completo.
– Qual a escola?
– Municipal.
O professor não lecionava na escola municipal, era-lhe impossível reunir os fatos. Respirou fundo, aborrecido.
– Francamente, comissário, esse é o homicídio mais difícil da minha carreira. Não sei por onde começar.
Quando a mulher terminou o relato já era noite. O recorte de jornal mantinha-se sobre a mesa. A servente apavorada juntou nos autos do processo a versão do cafezinho derramado “sozinho” sobre a manchete. Ela mesma havia feito a limpeza. Decerto a morte da criatura divina libertaria o demo, o capeta. Havia concluído na noite de faxina entre gemidos e gritos vindo das celas. Era o fim. Se morresse, coisa que não ousava supor verdadeira, como seria possível exclamar: pelo amor de Deus! Na noite anterior havia sonhado com vagalhão desabando sobre o barraco. Uma tragédia medonha. Necessitava de alguém imenso para evitar a catástrofe. No sonho sentiu-se vaidosa porque ela, tão pequenina, era tratada com tanta decência. A procela fez uma curva e a casinha amanheceu enxuta e salva. Fora rebentar nos casebres do lado. Há tantas religiões no mundo que se tornou insuportável não possuir nenhuma. Deus não dá trabalho, comentou.
- Mas é injusto, comentou o delegado.
- Qual nada! Injusto é o diabo criado para ser incorreto e danado. (No júri revelaria uma porção de coisas perversas sobre o Demo). Superstição. O mesmo que saci, mula-sem-cabeça. Histórias trazidas do oriente pelos portugueses. Tínhamos que rezar para Anhangá desabafou. O Juarez estava pálido sob efeito daquelas palavras. O colega de geografia era a segunda testemunha. Juarez diante dele acusando-o aos pouquinhos. Era preciso reconverter os alunos. Juarez examinou sorrateiramente os cadernos guardando uma folha escrita: “Deus é uma invenção do nosso instinto de sobrevivência”. Era a prova. A palavra de um professor de geografia devia valer muito.
A mulher parecia calma. O depoimento de duas horas forçava um alívio. Pelo menos se o criador morresse, ela havia dado o seu testemunho. Sentou-se mecanicamente na cadeira da cozinha exibindo um pouco as coxas dentro da saia sumária. O marido havia chegado do serviço. Julião Taborda era veterinário, ficava apoquentado quando alguém lhe chamava por engano de médico. Convencera a mulher. “Leve o caso até a polícia!”. Esse homem está matando o Divino sem dó nem piedade.
Alisou o vestido dela e quando sentiu o desejo se retirou para o escritório. Estava estudando um caso de aftosa no campo dos Tavares. Nesse dia pensou em trair Maria Aparecida de Jesus. Sentiu que não amava o seu vestido azul e curto o suficiente para se manter fiel. Maria de Jesus detida na cozinha lembrava o delegado.Com ele seria diferente. Revisou o assunto em detalhes e desabafou o peso em dinheiro com a escola do guri. Os gastos exagerados, o dinheiro escasso. Sonhou com aquele delegado, másculo, elegante. Taborda era magro e feio. O delegado querendo saber tudo dela, do marido, do professor.
- Onde trabalha o seu marido? Uma mulher bonita deve exigir muito dele.
Em casa na cozinha sentia a cadeira firme grudada em seu corpo. O filho entrou correndo atrás de café. Procurou saber detalhes sobre a escola e se já tinha namorada.
– Por que está perguntando isso, mamãe?
– Porque não se pode amar sem Deus. Deus é a demonstração de seus segredos no corpo e na alma.
– O que a senhora quer dizer com isso? Ela sorriu nas nuvens.
- Nada. Esqueça. É que estava pensando na morte. O rapazote já não ouvia mais, bebia o copo de leite, ruidosamente. Sorriu e disse que estava na hora de estudar na casa de Zizinha. Precisava completar o trabalho sobre o dilúvio, mito da Mesopotâmia, um aguaçal. Cristo nem existia quando já se empregava a expressão chuva diluviana. Noé não era nascido, tudo havia sido recriado e revivido. Na catástrofe, Deus é a esperança, meu filho, repetiu várias vezes. Sentiu pena do garoto indo até a casa de Zizinha. Ergueu-se da cadeira com ar melindrado. Sentiu vontade de se queixar dos problemas corriqueiros. Rita sempre disposta, vizinha, ouvia-lhe todos os azares da vida. Reviu a carantonha do delegado dizendo ao moleque.
– Não tem importância e não acredite. O que não quero é que vá até a casa de Zizinha e fique sozinho com ela. Permaneça em casa, faça os temas.O garoto saiu, sem ligar para as palavras da mãe, correu até lá. Aguardou escondido no bambual para ver o que Zizinha fazia com as janelas esquecidas, para lá de tão abertas.
Enquanto aguardava na biblioteca o professor rabiscava na folha branca do caderno para afinar a ponta do lápis. “Escrever é tão difícil quanto apertar parafusos”, pensou. Sorriu como quem supera todas as dificuldades. Na rua havia desaparecido a neblina. Quebrou a ponta novamente. Sem levantar os olhos atirou o lápis na lata do lixo com exatidão. O sino tocou e a algazarra dos alunos foi geral.
- Tenho visto coisas. Sei lá, disse o Escrivão para o Delegado.
- O professor fechou todas as igrejas da cidade. Não se pode encontrar divindade em lugar nenhum. A palavra ficou gasta e vazia de sentido.
– Pode ser. O que você acha deste caso? Certeza quem é que pode ter?
– Para mim tem mulher metida na história. São elas que enfeitiçam a vida com fantasias. A história não está bem explicada.
– Vou lhe dizer uma coisa. O professor está sozinho. Não há nenhuma mulher no caso. O escrivão chupou os dentes, sentindo necessidade de um palito de fósforo.
– Há muito tempo não existe nada aqui dentro. Se existisse a prisão estaria vazia, disse resignado. E Barrabás condenado. O Comissário se ergueu, foi até a janela e gritou para o guarda da esquina.
- Norato! O guarda se apresentou. Vá até aquela sala de aula e traga o professor para a delegacia. Acrescentou: Não sei como este soldado agüenta ficar tanto tempo na mesma esquina.
- Eu sei, disse o Escrivão. A cidade é pequena e os criminosos estão na cadeia.(Uma verdade útil).
- Certeza, certeza quem é que pode ter? O soldado subiu as escadas, magro, cansado e tímido.
- Norato! O senhor crê em Deus? Após a continência, tirou o quepe e respondeu.
- Não senhor! Quero dizer, quando a bala vem vindo, sim. (Era dos que acreditava em Deus no campo, mas na cidade não.)
- E se o senhor tirasse a sorte grande? Bem, eu poderia emprestar dinheiro. O Delegado estava perplexo. Pela janela dava para ver o vigário pendurando a batina molhada no varal. Gesto de abandono. Pronto! Acabou.
- Norato me traga o homem aqui, disse ao soldado. E nem foi preciso declarar o nome do acusado.
Naquela mesma tarde a polícia entrou na escola. O professor no meio da lição desmontava em partes os reinos bárbaros germânicos observando o trabalho servil quando se deu a abordagem.
– Sinto interromper o seu modo de produção, mas tenho que levá-lo comigo. Norato algemou o professor em seu próprio braço e foram até a delegacia.
– Cumpro ordens, disse conformado.Começou a chover e ambos chegaram molhados. Com o professor na delegacia o soldado apontou para o recém chegado e para fazer média disse:
– Está aqui o homem sem Deus.
– Muito livro e nenhuma Bíblia, retrucaram, tirando-lhe as algemas. Não sei se o senhor precisa de mim, perguntou o Escrivão para o Delegado.
– Vá até o investigador e solicite um resumo da vida deste vivente.
– Chamo o Juarez?
– Não tem ouvido? Ande! Corra! Mesmo perturbado o Comissário transmitiu suavidade.
– Lembro do senhor, professor, quando desembarcou na cidade. Não posso dizer que não lhe tenho admiração, fui seu aluno. Estimava suas aulas.
– O senhor acredita que matei a crença?
– Certeza mesmo ninguém tem... Apontou-lhe um dedo ameaçador arrematando.
–... Mas à moda comunista. Desejamos saber como matou e onde está o corpo. Arregalou os olhos como se tudo aquilo não se tratasse mais de coisa abstrata.
– Uma figura tão distinta e heróica deve estar em algum canto deste mundo, argumentou o professor.
– Perdão, delegado, disse o Comissário adjunto, mas não vejo como o acusado poderia possuir forças para arrastar um corpo inerme de proporções tão gigantescas.
– Não teme ser castigado?
– Sim, respondeu o professor, pelo senhor.
– Pois bem, um dia o senhor amanhecerá com a boca cheia de formiga por não querer acordar no céu, mesmo o empíreo sendo o lucro dos lucros da imaginação. O escrivão riu. Levantou-se e saiu para lavar as mãos. Devo chamar Josué para dar um trato nele, pensou o Comissário. Uma boa sova talvez resolvesse, lhe devolvesse a fantasia ingênua e poética da natureza glorificada. Esfregou as mãos.
– Vou lhe dar um conselho, professor, porque não se mata e põe a culpa no Demo? Deus é bonzinho, serve para tudo. Use um sabonete descarrego e largue este palavrório. Eu posso ser ignorante, professor, mas de uma coisa eu tenho certeza: Deus existe! Ele somente poderia criar uma pedra grande, a mais pesada, que somente ele pudesse levantar.
– Está muito certo, respondeu o professor, tenho que voltar para a sala de aula. Terminar o período antes que a sala desabe com uma idéia que ela mesma não possa sustentar.O Escrivão deu um passo a frente pensando que a frase fosse para ele.
– Assine primeiro, disse o Delegado.
Aquilo não era caso para hostilidades. Quem não tinha duvidas metafísicas?
- Vamos assine!
Estava escrito no documento: "Deus existe! Dou fé!"