O GRANDE CASO DE TIAGO COM JANE LOREN
Que Tiago sempre foi um aficcionado por cinema, muitos sabem. Que ele, na adolescência, nutria intensas paixões por algumas estrelas do cinema, talvez uns poucos também saibam. O que provavelmente ninguém sabe é que o cinemaníaco em questão chegou a partilhar breve momento de amor com sua estrela favorita nos longínquos anos sessenta.
Tudo se passou de forma inesperada numa das raras vezes em que Tiago assistiu à última sessão do filme escolhido. O adolescente comparecia às salas de cinema geralmente na primeira sessão, às duas da tarde, porque era menos concorrida e havia menor risco de sentar-se algum tipo avantajado bem à sua frente, prejudicando sua visão da tela e forçando-o a buscar outra poltrona.
Daquela vez, no entanto, como o dia seguinte era feriado, Tiago optou pela última sessão, pois não precisaria acordar cedo para preparar os deveres de casa para o colégio, à tarde. Meia hora antes da sessão, como de hábito, saiu calmamente de seu apartamento na Antônio Basílio e foi caminhando em direção ao cinema, na Praça Saens Peña. Embora não tivesse pressa, Tiago invariavelmente caminhava rápido e chegava ao cinema bem antes da sessão. Aproveitou os minutos disponíveis para dar uma olhada no folheto com a programação da semana naquela sala e em outras do grupo, bem como para comprar nova caixinha do seu inseparável Mentex, já que esquecera de trazer a que ainda tinha em casa.
O filme narrava uma viagem aventurosa em imaginário país exótico e era estrelado por Jane Loren, atriz européia, filha de pai italiano e mãe norte-americana. Embora bem jovem, na casa de seus vinte anos, a atriz já visitara diversos países, inclusive o Brasil, falava diferentes idiomas e, ademais do dom da representação fiel e impecável, possuía beleza deslumbrante, em que a perfeição dos traços do rosto e o corpo de miss universo iluminavam-se por irradiante e natural simpatia. Desde que a vira em sua primeira película, a comédia “Um Tiro Sem Direção”, Tiago tomou-se de amores pela moça, que se tornou a número um das muitas paixões cinematográficas que cultivava.
A escolha do filme revelou-se acertada. Tiago saboreou cada cena, riu e divertiu-se como nunca. A história prendia a atenção e o desempenho do elenco foi muito satisfatório, com destaque, claro, para as intervenções da heroína principal. Que rosto, que olhos, que voz, como era cativante e convincente Jane Loren em cada participação! A sessão, como sempre, poderia ter durado mais, tal o encantamento que o filme exerceu sobre o ardoroso fã.
Tiago gostara tanto que, desta vez, não só aguardou a passagem dos letreiros finais, mas resolveu ficar um pouco mais na poltrona, a projetar, com os olhos colados na tela, algumas das cenas que tinha apreciado de modo especial. Olhava a tela e revia partes do filme, nas quais brilhava sua estrela favorita. Ficou assim um bom tempo, enquanto os demais espectadores deixavam a sala.
O recinto esvaziou-se completamente e já quase não se ouviam vozes na ante-sala. Tiago resolveu levantar-se e ir-se também. Poderia continuar a rememorar o grande filme em seu quarto de dormir. Mal se levantara da poltrona e viu uma mulher entrar na sala, olhá-la e começar a caminhar na direção da fileira onde ele se encontrava. Inicialmente, pensou tratar-se de uma espectadora que esquecera algum objeto pessoal na sala. Apurando melhor o olhar, Tiago não conseguiu acreditar no que viu. A mulher era ninguém menos que a atriz Jane Loren. Como era possível? Imaginou que fosse uma sósia, contratada pelo cinema para fins promocionais. Deu-se conta, porém, de que era mesmo Jane, em carne e osso. Não entendia como o cinema deixara de anunciar a presença da estrela ali, naquela noite. Ela devia estar na ante-sala, à espera da saída da audiência, para distribuir autógrafos. E ele a demorar-se ali dentro, quase perdendo a oportunidade de ouro de vê-la pessoalmente.
Que sorte que ela entrou na sala! E caminhou justamente ao seu encontro, perguntando, com aquele sorriso mágico, o que ele ainda fazia ali. Entre as várias línguas que conhecia, Jane falava o português, o que certamente salvou Tiago de um apuro, pois, naquela época, ele apenas iniciara os estudos de inglês e francês. Imagine ter de comunicar-se em outro idioma que não fosse a boa língua materna numa situação como aquela.
A conversa fluiu fácil, como se ambos há muito se conhecessem. Com sua simpatia, Jane deixava o adolescente bem à vontade para responder às perguntas e também satisfazer a própria curiosidade dele sobre os gostos e preferências da atriz. Ambos gostavam de histórias em quadrinhos e trocaram impressões sobre seus heróis prediletos. Tiago comentou que tinha pretensões de vir a ser desenhista e até lhe mostrou uns desenhos que casualmente guardara no bolso da camisa. Jane divertiu-se com os rabiscos de Tiago e comentou que o professor que ele havia caricaturado durante a aula parecia-se com um dos professores que ela tivera na escola, na Inglaterra.
À medida que o bate-papo avançava, o adolescente deixava cada vez mais evidente seu deslumbramento com Jane. Seus olhos brilhavam ao encontrar os da atriz, ao percorrer a delicadeza do seu rosto, ao tentar desvendar o que a roupa encobria. A estrela, por sua vez, acabou sensibilizada por tamanha devoção e passou a estimular a aproximação crescente entre os dois, com perguntas bem pessoais, acompanhadas de afetuosos toques de mão nos braços, nas pernas e no rosto de Tiago.
Em um desses toques, a mão de Jane manteve-se nos cabelos, por trás da nuca do menino, afagando-os e depois deslizando até o pescoço, que começou a acariciar. Tiago, sentindo-se em brasa e já quase sem condições de manter o diálogo, levou suas mãos aos ombros da atriz, nos quais ensaiou algumas carícias, um tanto trêmulas de início. Os corpos se aproximaram de vez, estreitando-se em carícias mais firmes, seguidas do primeiro beijo. Tiago esqueceu a inveja que sentira de tantos atores que vira contracenar com Jane e beijá-la nos filmes. Nenhum dos beijos vistos comparava-se àquele. Entendeu, como nunca, o sentido da expressão “lábios aveludados”. A boca de Jane era puro veludo, macio e capaz de aquecer em pleno Ártico.
Quando os beijos se interrompiam, os olhos do adolescente abriam-se e voltavam-se, extasiados, para o rosto e o corpo de Jane, que lhe pareciam infinitamente mais deslumbrantes do que em qualquer filme ou foto antes vistos. Sempre imaginara que sua estrela favorita deveria ser mais linda ao vivo. Comprovar que assim de fato era aumentava seu orgulho e o prazer de ali estar com ela. Voltaram a beijar-se. A sala do cinema parecia girar como um rolo de filme. As luzes fracas do teto foram esmaecendo e sumindo, substituídas pelas estrelas da noite lá fora. Nenhuma ofuscava, contudo, o brilho da estrela que Tiago apertava em seus braços. Tal qual a sala de cinema, tal qual a noite estrelada, sua mente também girou, a ampliar a sensação do êxtase amoroso.
Horas depois, ele ainda estava sentado na poltrona, quando um empregado do cinema lhe perguntou por que não havia ido embora. Olhou em volta, confirmou que Jane se fora, endireitou e abotoou sua camisa e, sorrindo para o empregado, como se nada houvesse, levantou-se e saiu. Começava a amanhecer. O calor típico das noites e madrugadas cariocas combinou, como nunca, com o calor experimentado por Tiago nesse inesquecível encontro com Jane Loren. Feliz com seu fantástico caso de amor, o menino caminhava menos rápido do que de hábito, a assoviar e a perguntar-se quando estrearia o próximo filme da fulgurante estrela. Convenceu-se de vez de que, entre todas as artes, seria sempre fascinado pela magia do cinema.
JAX, Traços e Troças (2015)
Editora Lamparina Luminosa, S. Bernardo do Campo, SP