Contos de Valanka - Obsidiana, a espada de Aionus
Não sabia se estava mais irritado por causa do vento frio que lhe cortava os ossos ou se pelo fato de ter sido passado para trás por seu irmão mais velho. Seu pai havia pedido que Arcan, seu irmão, levasse a entrega para um cliente, mas este achou um jeito de convencer seu velho pai que a tarefa seria melhor executada pelo caçula, e que ele poderia ajudar na loja fazendo as tarefas mais interessantes.
O resultado foi uma caminhada longa e sofrida, carregando a entrega pesada para o cliente por parte de Ían, o caçula. O pacote era relativamente pequeno, mas pesava uma tonelada. Uma escultura de ferro maciça que exibia Aioria, o deus cavalo, senhor de tudo que é bom e puro. O animal em riste com crina esvoaçante e presença imponente era uma obra sem igual, talvez a mais bonita que seu pai já tenha feito em vida. Antes de partir para a entrega ouviu oitocentas vezes que deveria ter cuidado com a peça.
— Eu sei, vou ter cuidado! — repetiu ele, oitocentas e uma vezes.
O sol já se punha quando, após cruzar boa parte da distância entre sua casa e a do cliente, avistou a ponte que atravessava o rio. O frio era tamanho que era possível avistar pequenas pedras de gelo sendo levadas pela correnteza. De certo, o rio congelaria neste ano.
A menos de cem metros da ponte, avistou dois homens em extremos opostos. Um usava uma armadura completa, com elmo, ombreiras e peitoral de metal reluzente. O outro usava apenas panos maltrapilhos, que somados mal dariam para cobrir o menino que se aproximava. Ambos armados com espadas e parados aguardando o movimento do adversário.
Ían parou a poucos metros dos dois, se escondendo atrás de uma árvore próxima da margem do rio, mas com vista clara para a ponte. Foi então que reparou na espado do homem maltrapilho. Uma espada de lâmina negra como a noite. Nunca havia visto nada assim. Era linda, a empunhadura não fazia jus ao conjunto, tinha um cabo simples de madeira como se tivesse sido montada às pressas, o que acabava por destacá-lo junto do metal brilhante negro. Ían não fazia ideia de que tipo de metal era feita, mas era, sem dúvida nenhuma, a espada mais bonita que já tinha visto na vida.
O vento se intensificou e foi como se alguém tivesse batido um sino para que os combatentes iniciassem seu confronto. O homem maltrapilho se lançou violentamente contra o de armadura que bloqueou o golpe com facilidade. O movimento se repetiu algumas vezes, em poucos segundos estava claro que o homem de armadura era um espadachim experiente e que o maltrapilho não tinha a menor chance contra ele.
Com um movimento circular e cadenciado o homem de armadura aplicou um contragolpe que quase degolou o adversário. A sorte havia estendido a batalha alguns segundos a mais. Num grito de fúria e desesperou o maltrapilho ergueu sua lâmina e a desceu com força contra o oponente, que já antecipara o golpe e erguia sua espada para bloquear a bela lâmina negra que vinha em sua direção.
Foi quando o inesperado aconteceu.
A lâmina negra atravessou tudo que encontrou em seu caminho. A espada usada para bloquear se partiu, a ombreira se abriu e o homem de armadura recebeu um golpe que lhe atravessou do ombro ao umbigo. A arma cortou tudo como se fosse ferro quente atravessando manteiga. O maltrapilho teve que empurrar com o pé para conseguir retirar a lâmina do defunto, tamanho o estrago.
A cena horripilante petrificou o menino que observava tudo sob a proteção da árvore.
O homem admirando sua espada como se tivesse a chave do sucesso, ria descontroladamente. Saltitante de um lado para o outro se vangloriava da conquista quase como Ían fazia quando vencia seu irmão mais velho em uma competição. Mas a do homem havia sido sangrenta e definitiva.
Tão rápido quando o riso veio, um grito tomou seu lugar. O braço do homem ficou rijo, fazendo uma força descomunal para manter a arma em punho. Segurava com as duas mãos e usava cada centímetro de seu corpo para segurar a lâmina negra que parecia cintilar com a fraca luz do fim do dia. Era como se a espada tivesse adquirido vida e batalhasse com seu mestre. Não demorou muito, o homem ficou ofegante e tentava manter o ar fluindo para os pulmões com dificuldade. A tremedeira e um choque violento derrubaram o espadachim e ele sumiu por detrás do parapeito da ponte.
Ían aguardou longos segundos esperando o homem se levantar, mas isso nunca aconteceu. Em um momento de coragem, o menino caminhou até a cabeceira da ponte para observar o resultado do embate. Ambos os homens estavam caídos. O de armadura envolto por seu próprio sangue e o vencedor ao seu lado, imóvel.
Cauteloso e inocente, o menino se aproximou. O sangue escorria na curvatura da ponte. O homem maltrapilho estava deitado a pouco mais de um metro do adversário. Quando Ían estava perto o suficiente viu a feição do homem. Era como se estivesse diante de uma uva passa. A pele enrugada e seca como a de um homem de trezentos anos de idade estivesse na sua frente. Cabelos esbranquiçados e unhas quebradiças. Era estranho, tinha a impressão de ser um jovem e não um velho que combatia o homem de armadura.
Colocou o pesado artefato de seu pai no chão e se aproximou ainda mais dos dois mortos. Imóveis e sem vida, pôde averiguar a situação com precisão. O ancião segurava a bela espada e o homem de armadura era uma grande massa retorcida no chão da ponte. Olhou em volta e se viu sozinho.
Tirou das mãos do corpo seco a bela arma e a sibilou no ar. Era leve como uma pena. Mesmo com a pouca idade e fraco com era, foi capaz de desferir golpes rápidos e ferozes. Animado com a perspectiva de ter obtido um espada para si, correu para pegar a entrega de seu pai e sumir de vista o mais rápido possível.
Agarrado a estátua do deus cavalo e a espada recém adquirida, o menino correu mais rápido que o vento que lhe causava calafrios. Olhava para trás, paranoicamente, esperando que alguém viesse reivindicar a bela arma do homem maltrapilho. Felizmente não cruzou com uma alma se quer.
Chegando ao seu destino, bateu na porta da casa de madeira que já exibia pequenas estalactites congeladas. Estava ansioso para entregar a escultura e exibir a espada para seu irmão mais velho. O cliente levou uma eternidade para atender a porta, e quando finalmente a abriu o fez de forma lenta.
Rápido e ansioso, Ían golpeou o velho cliente com sua apresentação e lhe entregou o cavalo em riste.
— Espere, menino — disse o velho. — O que tem ai?
— Isso? — perguntou ele, escondendo a espada atrás do corpo. — Não é nada!
A resposta ríspida fez uma sobrancelha se levantar.
— Venha comigo, tenho uma xícara de chá pronta, você deve estar congelando neste frio.
— Não, estou bem. Agradeço, mas devo voltar para casa agora.
— Eu insisto, seu pai me mataria se soubesse que deixei você voltar nesse frio sem ao menos lhe oferecer um chá — disse o velho, tornando irrecusável o convite ao jovem educado.
Ían entrou a contragosto, planejando tomar o chá em uma só golada e correr de volta para a casa. O velho se movia lentamente, gerando angustia e ansiedade no rapaz que queria ir embora, mas era educado demais para simplesmente virar as costas e sair. A perna se movimentava tanto que era difícil dizer se era pelo frio ou pela pressa.
— É uma bela espada essa que você tem ai — disse o homem, servindo chá ao menino.
— Obrigado.
— Onde a conseguiu?
Ían hesitou.
— Eu encontrei ela — mentiu o menino, agarrando-se a arma como se a protegesse.
— Entendo — disse o velho. — Posso vê-la?
— Não se preocupe, irei devolvê-la — disparou o homem, lendo os pensamentos do jovem e dando um sorriso convidativo.
Ían cedeu. Estendeu a arma e deu-a ao velho.
Com face neutra e analítico o homem observava cada detalhe da lâmina negra, como se já tivesse visto milhares antes.
— É uma bela arma, sabe do que é feita?
Ían deu de ombros.
— Já vi alguns metais como esse, alguns chamam de Obsidiana. Dizem que é a cor negra vem do coração de seu artesão, porque ela só pode ser feita com ódio e desejos mortais.
O menino apenas observava o velho analisando sua arma, mas com um sentimento de ciúmes da lâmina, e não demorou muito para tentar tirar das mãos do cliente seu recém adquirido artefato.
— Eu teria cuidado com esse tipo de arma — disse o velho, despretensiosamente.
Ían já virara as costas quando a curiosidade o fez dar meia volta.
— Por quê?
— Dizem que as Obsidianas são armas amaldiçoadas. Dizem que o deus corrompido, Aionus, as criou para atiçar os fracos corações das criaturas de Valka, como eu e você. Quando são criadas sugam a vida do artesão e quando usadas cobram a dívida.
— Como assim? — quis saber o menino, confuso.
— Uma Obsidiana é criada para tirar vidas, e faz isso como nenhuma outra lâmina já vista pelo homem, mas ela cobra outra em troca, normalmente a de seu dono.
Um calafrio subiu a espinha de Ían.
— Tome cuidado com essa espada, rapaz — advertiu o homem.
Ían apenas assentiu e tomou seu caminho de volta para a casa. Olhava para a arma hipnotizado, pensando nas palavras do cliente de seu pai. Apesar do medo, a lâmina lhe dava uma sensação de invencibilidade, como se quisesse que alguém aparecesse para lhe desafiar.
Chegando na ponte se deparou com os dois corpos novamente, ninguém havia passado por ali. Observou a vítima da arma estatelada no chão e apesar a imagem repugnante, sentiu-se bem de ter uma arma capaz de causar tal destruição.
A soberba só passou quando viu o corpo enrugado do dono anterior estirado no chão. Sua mente foi inundada por sentimentos dúbios. Medo, confiança e incerteza travavam uma batalha intensa internamente para que uma decisão fosse tomada. Ficar com a espada e arcar com as consequências ou deixá-la para trás e voltar para sua vida pacata e sem emoção.
Olhou a lâmina negra e sentiu uma leve tremedeira na mão, involuntária e incontrolável, como se a arma quisesse se comunicar com seu dono. A situação lhe amedrontou. O menino arremessou a arma por cima do parapeito da ponte e correu desesperado de volta para a segurança de seu lar.
Os anos se passaram e Ían seguiu sua vida como aprendiz de artesão sob a tutela de seu pai e seu irmão mais velho, sem nunca ter mencionado o episódio aos parentes. Um belo dia cruzando a ponte resolveu olhar para a água e teve a impressão de ver um vulto preto tremulante sob a correnteza o chamando. Engoliu seco e em meio a tremedeira resistiu a vontade de procurar pela espada que ainda carecia de um dono.