A DÚVIDA
Cléa Magnani
Naquela noite Elen não conseguiu dormir. Paul, seu jovem marido com uma equipe da NASA, iriam fazer um voo para o espaço num novo modelo de foguete que seria testado para voos de longa duração. O treinamento dos astronautas para se familiarizarem ao novo foguete havia sido exaustivo. Cinco meses sem voltar para casa nem se comunicar com ela, pois a intenção do voo era ultrapassar todas as barreiras já conhecidas pelo homem e ao chegar em Marte, deixar materiais para que os próximos astronautas começassem a construir uma base que seria um trampolim para novos voos de meses e até anos de duração sem ter de voltar à Terra. Estavam casados fazia um ano, e ela aguardava a volta do marido para lhe revelar a gravidez que havia sido confirmada durante o tempo em que ele estava em testes para o voo, e ela não quis que a notícia desviasse sua atenção para tantos novos detalhes da viagem. Finalmente a longa noite terminou, e ela como quase todo o povo norte americano, assistiu nas primeiras horas da manhã pela TV, o lançamento que foi um sucesso! Elen procurava não ficar pensando na ausência do marido, nem como seria passar quase toda a gravidez sozinha. Fazer planos, comprar o enxovalzinho, decorar e preparar o segundo quarto do apartamento para receber o seu filhinho, e o susto de Paul ao chegar e encontrá-la barrigudinha... Qual seria a sua reação? Rose, a mãe de Elen, morava quase que do outro lado do país, e não tinha idade para ficar indo e voltando para visitá-la. E ela, não queria arriscar dirigir tanto tempo assim devido à gravidez. Então só contava com Louise, uma vizinha com a qual se entendia muito bem e com quem trocava confidências, e poderia contar para qualquer situação. Intuitiva, Louise ao saber da gravidez de Elen recomendou que ela contasse para Paul, mas ela não o fez. Agora, ao saber de quanto tempo duraria o voo, voltou a chamar a atenção da amiga sobre o perigo da dúvida que poderia gerar na cabeça de Paul o porquê do silêncio a respeito de uma notícia tão importante. Mas o tempo passou e o voo passou do tempo previsto, já estavam em Marte a quase três meses, aguardando a solução de um problema no foguete que os traria de volta. E Elen teve uma linda menina com os olhos azuis do pai.
Alberto Vasconcelos
Elen ainda estava na maternidade do hospital de base em Houston, quando recebeu a visita do comandante, em terra, da missão Marte One. Um buquê de rosas vermelhas, suas preferidas, e o cartão impresso em 3D, com a fotografia do seu marido acenando para ela desde o solo marciano. O oficial disse a Elen – toque no rosto dele e imediatamente a voz de Paul encheu o quarto. Estou muito feliz com a chegada da nossa filhinha, agora mais do que nunca, espero voltar para casa e abraçar vocês. Eu ti amo. Admirada com o fato do marido saber sobre a filha, Elen perguntou ao oficial – Quem informou a Paul que eu estava grávida? – O oficial explicou - Nossos astronautas ficam acantonados, mas recebem todas as notícias sobre as suas famílias. Faz parte do programa, porque não queremos que eles se sintam isolados do mundo, pois sabem que são livres para deixar de cumprir as missões. Paul ficou eufórico ao saber que ia ser pai, mas numa demonstração de patriotismo preferiu continuar em treinamento e cumprir a missão para a qual se voluntariara a abandonar tudo para ficar com a família. E o senhor tem ideia de quando eles voltarão? (Perguntou Elen com visível aflição). Não, nós não temos. (Constrangido, após alguns de instantes, informou). Houve perda de combustível por fratura do tanque inferior do módulo quando se chocou com o solo rochoso. Elen empalideceu e perguntou, quer dizer que há dúvida sobre o retorno deles? Que eles podem ficar lá para sempre? A resposta do oficial foi protocolar – nossos engenheiros estão examinando todas as possibilidades. Até agora, só temos as perguntas. E retirou-se. A luz do sol que entrava pela janela perdeu brilho e calor. Pouco mais de um ano de casados e deste tempo, em sua maior parte, o marido estivera ausente, dedicando-se a uma missão que tinha todos os ingredientes para ser suicida. Como a pátria pode exigir que os seus filhos renunciem às suas vidas por uma causa sem razão lógica? Apenas para ser o primeiro a chegar, sabe-se lá aonde? Mas para quê? O que a humanidade ganha com a conquista alucinada de outros planetas? Ela era mais uma viúva dessa insanidade e a filha deles órfã de pai vivo que, talvez, neste momento estivesse a 401 milhões de quilômetros de distância e que, se voltar a ser visto, será uma imagem distorcida na tela de TV cuja voz, sem calor, sairá da caixa de som ou do fone de ouvido...
ARISTEU FATAL
Enquanto isso, lá em Marte a situação ainda era incerta, pois o acidente com a nave parecia ser preocupante. Paul, na realidade, era o mais apreensivo, pois não tinha, ainda, a capacidade técnica dos outros, em vista de seu noviciado. Para sua escolha de participar do projeto, houvera uma seleção de novos astronautas, e ele, fora o “felizardo”. Como o possível conserto do tanque de combustível, e recuperação deste não lhe competia, seus companheiros o liberaram para um trabalho de reconhecimento dos arredores de onde estavam. E ele passou a percorrer aquele astro desconhecido. Andou cerca de uns dois quilômetros, e ao longe, para sua surpresa, viu algo que parecia ser um conjunto de casas, esquisitas, com materiais diferentes do que os da Terra. Ao chegar mais perto, em uma delas, notou a presença de um personagem que não era muito diferente dos terráqueos, apenas as orelhas pareciam serem puxadas para atrás da cabeça, como pequenas asas, dando a sensação de que pudesse ele voar. O encontro foi até certo ponto normal, pois a tecnologia marciana, muito desenvolvida, já havia percebido a presença de forasteiros de outro planeta. O marciano deu a entender que língua Paul falava, mas logo percebeu, apertando um botão localizado na cintura, iniciou o diálogo com o estranho, em inglês. Fez várias perguntas ao americano, mostrando muito conhecimento do que se sucedia na Terra. Mas, o que mais intrigou Paul, foi a pergunta se ele conhecia a Elis Regina, a cantora, que interpretava a música composta por Rita Lee e Roberto Carvalho, chamada Alô, Alô Marciano, a qual dava a entender que as coisas na Terra não iam bem, falando em guerra por causa da desigualdade e desentendimento entre a população. O que deveria se entender, o por quê, do ser humano estar “na maior fissura, down, down, down no High Society”? Não soube responder. Paul ficou abismado com a sapiência do marciano, e se despediu dele pedindo para que fosse até a nave, para conhecer os outros tripulantes. E talvez pudesse ele, com seus conhecimentos, ajudar na solução do problema que estavam enfrentando.
Sílvia Grant
Voltou para a nave descrente do que havia visto e ouvido! Ele jamais imaginara encontrar um marciano, quanto mais um marciano que falasse a sua língua e ainda mais, conhecedor da MPB! Nem ele próprio, sendo um americano, conhecia uma cantora chamada Elis Regina. Rita Lee e Roberto de Carvalho então, lhe eram ilustres desconhecidos! Como um marciano poderia saber sobre música brasileira? Isso era muito doido, nada fazia sentido... Todas essas informações lhe foram passadas pelo marciano... Curioso para não dizer estarrecedor. Precisava levar esses dados aos outros tripulantes, comunicar o ocorrido a NASA. Ao alcançar a nave, assim procedeu e novamente surpreendeu-se. Havia várias mensagens subliminares. Descobrira que a cantora Elis Regina encomendara a Rita Lee e seu marido uma música irreverente, ao estilo do casal. Elis foi a única pessoa a visitar Rita Lee na cadeia, sensibilizada por sua gravidez. Era época da Ditadura Militar. Elen também estava só por ocasião do parto e somente recebera a visita do oficial. Seu marido havia optado pela missão patriótica em detrimento da família. Teria sido realmente uma opção? Eis aí uma dúvida.... O recado da música aos terráqueos era claro, como podemos nitidamente perceber na ironia de Elis tão bem interpretada ao retratar a tal “High Society” brasileira: alienada dos reais problemas existentes, vivendo suas vidas despreocupadamente em meio ao luxo. O planeta Terra em meio a tantos problemas como a fome, guerra, saúde, educação, clima, discriminação, desigualdades sociais, conflitos políticos e religiosos, entre tantos outros, infelizmente apresentava também um comportamento semelhante. Os terráqueos, apesar dos anos decorridos, continuavam totalmente alienados. A humanidade ao invés de resolver seus problemas mais prementes investia em foguetes interplanetários! Por que hesitamos em fazer o que é tão simples, o que é necessário, o que está tão claro diante de nossos olhos? Por que complicamos tanto? Por que não resolver os problemas? Por que postergar? Dúvidas, dúvidas e mais dúvidas! Nas palavras de Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”. E você do que tem dúvida?