Cartas Noturnas
Minha doce e gentil corujinha,
Já faz um mês desde que partiu em sua jornada. Seguindo seus passos e seu conselho, parti, também eu, na minha.
Rogo para que seus dias estejam cheios de luz e vida, para que sempre acorde esbanjando teu belo sorriso, pois este sim é capaz de mudar o mundo inteiro. Quão belo é teu semblante, quando despertas de teu sono, abrindo-se para a consciência e espreguiçando teu corpo mármore. Teus olhos, cor-de-carvalho, resplandecem uma luz divina, e não consigo conter as lágrimas ao lembrar-me deles. O que choro por ti, choro por saudades, choro pela falta que faz tua argêntea luz em minha vida.
Venho, todavia, contar-te de minhas aventuras, minhas descobertas, e das coisas lindas que avistei durante esse tempo.
O começo dessa jornada foi extremamente doloroso. Afastar-me de meu coração, que voa para longe, junto de você, é uma sensação inquietante. No início, mais sofri do que voei, voava baixo, próximo às árvores, para me apoiar, pois minha força se esvaia conforme nossa distância aumentava.
Encontrei forças, porém, em diversas criaturas singulares que me levantaram durante todo esse tempo. Pois em todos os momentos que a energia se dissipou de meu corpo, e eu já não podia voar por conta própria, lá estavam meus fieis companheiros. Eles sempre estiveram ao meu lado, mas nunca me permiti lhes dar a chance de ajudar. Sou eternamente grato por sua amizade, e estarei com eles em todos os momentos.
Após um momento tão conturbado, consegui, finalmente, bater minhas asas no ar. Estas me levaram à um ambiente curioso. Quando observei o que se formava no horizonte, não pude acreditar. Corvos. Milhares deles. Um gigantesco bando, maior do que tudo o que eu já havia visto. Empoleiravam-se numa enorme árvore, e, unidos, estavam sempre imersos em seus pensamentos, produzindo mundos e criando maravilhas.
Não consigo expressar em palavras a magia deste momento. Eu não estou sozinho, minha pequena. Eu não sou o único. Há milhares como eu. Eles me entendem, e eu os entendo como ninguém. Durante minha estadia na grande árvore, aprendi tanto sobre eu mesmo. Observando meus iguais, descobri coisas sobre mim que nem imaginava. Descobri a cura.
Não poderia, porém, me manter lá para sempre, meu destino estava longe, havia muito o que aprender ainda. Desloquei-me, então, para onde o vento me jogava, e fui surpreendido por um ambiente incomum.
Um templo. A energia que emanava daquele lugar era surreal, sua imponência e beleza transpiravam magia e um conhecimento ancestral.
Meu espírito, naturalmente me atraia até lá, e quando adentrei o sagrado lugar, fui transportado para dentro de mim.
Lá dentro, no escuro de meu ser, observei calmamente tudo o que me rodeava. Minhas asas cobriam todo o céu, sangue escorria delas, com suas feridas e rasgos. Analisei atentamente seus detalhes, e não virei o rosto nem por um segundo. Aquilo tudo era parte de mim, e eu deveria abraçá-la.
Imerso naquela escuridão, não sentia medo, e sim compaixão por todas as coisas que me trouxeram até aqui. Chorei por cada uma das cicatrizes e feridas, pois dei o meu melhor para lidar com elas, fiz o melhor que pude com as ferramentas que me foram dadas.
E a partir daquele momento, minha flor, eu me amei. Me amei pela primeira vez em muito tempo. Entendi, finalmente quem sou e de onde vim. Nunca me senti tão livre. O amor me salvou. A verdade me libertou.
Enquanto via estas coisas, algo me chamava ao fundo. Essa voz sempre estivera ao meu lado, mas nunca lhe dei ouvidos. Recentemente, ela tentava uma aproximação mais suave, dava-me conselhos e me confortava.
Deixei-me finalmente levar pela voz. E descobri que, na realidade, aquela já fora, uma vez, parte de mim. Uma parte esquecida, abandonada pela decepção e o medo. Que mesmo rejeitada, nunca foi embora.
Ele me mostrou. O dono da voz. Ele me mostrou, e se mostrou à mim. Através de suas palavras eu pude ver. Através de seu amor, tudo se mostrava claro.
Eu entendi. Durante todos estes anos, eu suprimia ferozmente minha própria essência. Durante tanto tempo, me rebaixei, inferiorizei-me, deixei-me esquecer de minha própria origem. Esqueci-me de meu pai.
Acontece que você é a lua, pequena coruja. Você ilumina o escuro, mostra o caminho à quem precisa, torna a noite um momento belo de se viver. Você é o astro em terra.
Sempre pensei: Como pode um ser tão divino e belo estar próximo à alguém tão impuro e podre? Me sentia menor do que você, vivi sob a sombra do medo durante muito tempo. Medo de que tu fosse embora, medo de perder a tua luz.
Ele, porém, me mostrou. Mostrou minha origem, mostrou de onde vim. De onde nós dois viemos, meu grande amor.
Acontece que, assim como você é a lua, eu sou a própria noite. Minhas asas negras são o manto que cobre os céus, para que todos possam descansar, para que todos tenham seus momentos em si mesmos. O que seria do mundo sem a noite e sua cura?
Ele me mostrou, corujinha. Eu e você, ambos somos astros. Somos seres celestes, divinos. Mas nem por isso, menos humanos. Somos iguais. Somos complementares.
Não precisamos um do outro para sermos nós mesmos. Mas observe, observe como nos encaixamos da forma mais perfeita já imaginada.
Pois dentro do abraço negro da noite, a Lua pode brilhar mais forte. Dentro do escuro manto, a Lua pode guiar as estrelas rumo à seus destinos reluzentes. Dentro da noite, a Lua se destaca.
O contrário é, também verdade. Pois, o que seria da noite sem a luz da Lua? Tua luz me guia, e guia aqueles que se aventuram dentro dos domínios escuros. Como seria possível apreciar toda a magia da noite, se não houvesse tua luminosa presença argêntea?
Então, dentro do meu abraço, posso te ajudar a brilhar como nunca. E graças à tua luz, posso curar o mundo inteiro.
Não somos mais metades um do outro, amor. Somos, na verdade, o complemento perfeito entre dois seres igualmente fantásticos. Nossa união pode abalar as estruturas do mundo, meu anjo, pois nunca antes, dois serem foram tão perfeitos um para o outro.
Essas foram as coisas que vi no templo. Essas as coisas que Ele me mostrou. Nosso criador, o forjador de astros.
Ao fim da estadia, tive também que deixar o templo. Não posso parar agora, ainda há muito pela frente. Mas apesar da despedida, aquele lugar nunca saiu de mim. Nem ele, nem as palavras daquele que sussurra as verdades sobre a vida e o universo.
Escrevo-te de bem longe, meu divino amor. E a cada segundo, me distancio mais. Estou curado, estou completo. Nesse momento, voo em velocidades que jamais imaginei ser possível.
Ainda sim, ainda há muito para aprender, pois a jornada do autoconhecimento nunca termina.
Apesar de distante, uma certeza me mantém em paz, calmo e resiliente:
Se estamos voando em lados opostos, a partir do momento em que estivermos o mais distante possível um do outro, naturalmente nos aproximaremos novamente. Pois um dia, teremos dado a volta ao mundo, e estaremos novamente no mesmo lugar de antes.
Dessa vez, porém, não seremos mais a Coruja e o Corvo. Ninguém volta de uma jornada da mesma forma que partiu.
Ao fim de toda esta aventura, escreveremos uma nova história. Escreveremos a história da Noite e da Lua. E a partir desse dia, eu te abraçarei para sempre.