Contos de Valanka - Amizade em Xeque

Invadiu o pequeno estabelecimento como se uma besta estivesse em seu encalço. Cruzou a porta e a fechou com tanta violência que ficou receoso que tivesse quebrado o pequeno vitral da parte superior da porta. Ficou vários segundos olhando pela janela se seu perseguidor estava à vista, tomando o cuidado para manter a cabeça abaixada.

— Posso ajudá-lo, senhor? — interrompeu-o uma voz feminina e doce atrás de si.

Não respondeu de imediato, ainda preocupado com o que poderia vir do lado de fora. Parecia estar seguro. A mulher insistiu, obrigando-o a olhar finalmente para a pequena figura que se dirigia a ele.

— Preciso falar com seu pai — respondeu ele, ofegante.

Era uma moça com pouco mais de 20 anos que se dirigia a ele. Sendo uma falamari, raça comum no reino de Valanka, não passava de um metro e vinte de altura e seus olhos eram inteiramente brancos. Olhos que causavam aflição a maioria das pessoas, inclusive para ele, mas se forçava a não reparar muito dessa característica da raça.

— Desculpe, senhor, mas quem é você? E o que quer com meu pai?

— Desculpe, desculpe — disse ele se ajeitando e parecendo mais calmo. — Você não deve se lembrar de mim, era somente uma criança quando me viu pela última vez. Me chamo Ícarus e sou amigo de longa data de seu pai. Preciso muito falar com ele.

A moça hesitou, olhando para o homem que ajeitava os cabelos acinzentados, mostrando os primeiros sinais de envelhecimento.

— Se me permite a pergunta, senhor, mas do que está fugindo? — perguntou ela cautelosa na escolha das palavras.

— Fugindo? Eu? Não, não, não! Não estou fugindo de nada, Irani. É seu nome, não é? Me lembro de você deste tamanhinho.

Irani estava claramente desconfiada do homem, mas seu pai tinha amigos estranhos que apareciam vez ou outra no restaurante da família. Mas este homem, em específico, dava mais medo do que todos os que já haviam aparecido.

— Espere aqui.

A falamari virou as costas deixando Ícarus sozinho na mesa em que tinha sentado. Os cabelos brancos da moça balançavam com o caminhar. Eram longos e passavam da cintura. Não fosse ela de outra raça, Ícarus se interessaria pela moça que tinha feições belas e suaves.

O restaurante estava praticamente vazio, não fosse um casal de idosos no canto e um falamari que comia, sozinho em sua mesa, uma sopa de cor escura e aparência duvidosa. Eram poucas mesas, não mais do que dez, dispostas de forma a criar um corredor no estreito cômodo que levava até uma porta vai e vem ao fundo. Porta essa pela qual Irani passou de volta para o salão segundos depois de ter entrado.

— Meu pai vai recebê-lo, venha comigo.

O homem levantou-se de sua cadeira, dando uma última olhada pela janela antes de seguir a moça, certificando-se que ninguém estava se aproximando do restaurante. Tranquilizado ao constatar que não havia viva alma à vista, seguiu Irani tomando cuidado para não esbarrar nas quinas das mesas por causa de seu largo traseiro. A moça parou na porta e, indicando para que ele entrasse, deu passagem ao visitante.

A cozinha era tão pequena quando o salão, se ele fosse o cozinheiro jamais conseguiria trabalhar ali, mas como era um estabelecimento feito por falamaris tudo era adequado a seu tamanho. Balcões eram mais baixos, passagens estreitas e utensílios em alturas baixas. O pé direito da sala não era tão alto, mas com todas as coisas ajustadas para seres diminutos dava uma impressão de grandiosidade.

— Há quanto tempo? — disparou Ícarus alegremente, abrindo os braços para dar um abraço no pequeno amigo que cozinhava algo num caldeirão.

— O que você quer? — retrucou irritado o falamari, se afastando do abraço do homem que invadia sua cozinha.

— Vejo que ainda não superou nosso último encontro, Jaríon.

— O que você quer? — repetiu o pequeno homem cuja barba branca chegava ao meio do peito e a careca reluzia com a umidade. Apesar de baixo, era um homem largo, de expressão dura e barriga saliente, parecendo um toco de árvore. — Achei que a essa altura já estava morto.

— É ótimo ver você também — disparou Ícarus com um sorriso maroto e fuçando nos utensílios sobre a bancada despretensiosamente. — Preciso de sua ajuda, meu amigo.

— Eu sei, Santino e Jordani estão te procurando por toda a parte.

Ouvir o nome dos dois brutamontes que estavam atrás dele fez Ícarus estremecer.

— Eles estão exagerando, como você bem os conhece...

— Não me envolvo mais com eles. Você sabe muito bem disso!

— Sim, sim, eu sei. Família e essas coisas. Mas antes de virar uma dona de casa, você era um dos principais informantes dos dois. Preciso saber o quanto estou encrencado, eu sei que você deve saber de alguma coisa.

O falamari respirou fundo e finalmente olhou para o homem na sua frente. Os olhos sem íris nem pupila lhe causando a expressão comum de aflição no rosto dos membros de outras raças. Limpou as mãos no avental sujo e lançou um olhar de pena ao amigo de longa data.

— Você está bem encrencado — disse, Jaríon, sombrio. — Eles colocaram uma recompensa na sua cabeça, quem te entregar recebe 80 peças de ouro.

— 80 peças de ouro?!

— Eles realmente querem a sua cabeça.

Praguejando e pensando alto, Ícarus se movia impaciente. Ouvir a exorbitante quantia o deixara ainda mais assustado. Conhecia os mercenários que trabalhavam para os irmãos, Jordani e Santino, homens e mulheres duros, criados na batalha, no ódio e violência. Gente com quem lidava para que resolvessem seus problemas, não para estar atrás dele. A relação que tinha com esses mercenários era amistosa, mas com 80 peças de ouro pouco importava que se conheciam. Escaldariam sua pele e arrancariam sua cabeça se os irmãos mandassem.

— O que vou fazer? Você precisa me ajudar, meu amigo!

— Eu não preciso fazer nada — respondeu calmamente o falamari. — Por diversas vezes eu te adverti que esse seu jeito de fazer negócios te daria problema. Demorou, mas o momento chegou.

Ícarus estava pálido. Pensou que Jaríon seria sua salvação, mas o pequeno amigo parecia guardar rancor por ele ter lhe enganado anos atrás.

— Sei que eu não fui leal com você...

— Você ofereceu meu restaurante como garantia em troca de uma carroça para levar as armas que os irmãos precisavam transportar. Sabe como foi difícil resolver isso? Fora que quase que eu fico sem a única fonte de sustento que tinha para minha família. Você não é leal a ninguém além de si mesmo!

— Mas como você pode me culpar? Aprendi tudo que eu sei com você!

— Eu nunca te ensinei a enganar os dois lados de uma negociação só para alavancar os ganhos — contradisse Jaríon, claramente irritado com a insinuação de ser responsável pelos atos desleais de Ícarus, ainda que ele próprio os praticara até certo ponto da vida.

— Me ensinou a enganar — respondeu Ícarus, já mais corado. — Eu só tive mais colhão do que você para ir além.

— E veja onde está agora, com a cabeça a prêmio pelos dois piores criminosos que essa cidade já viu. Parabéns!

O rosto do homem voltou a empalidecer e ele engoliu seco. Só de pensar no que os dois poderiam fazer com ele, estremecia.

— Eu não pude resistir, eles me ofereceram uma quantia para transportar uma carga, mas os Alteanos me ofereçam mais ainda para deixar um tanto pelo caminho. Não havia erro, todos sairiam ganhando, os irmãos e os Alteanos. E mais importante, eu!

— O problema é que Jordani descobriu e ele e o irmão não gostam de ser enganados, você, melhor do que ninguém, deveria saber disso.

— O que eu vou fazer, Jaríon?

Finamente a realidade havia batido na porta. Estava tenso e aflito antes, mas quando constatou que não havia escapatória entrou em pânico. Não havia onde se esconder, não havia para onde correr. Era uma questão de tempo.

Jogado de joelhos e implorando com lágrimas nos olhos o homem suplicava ao falamari de expressão dura e impassível. Agarrou o avental do cozinheiro que rapidamente arrancou o puxou de suas mãos.

— Levante-se, isso é ridículo — disparou Jaríon irritado.

O homem se levantou, enxugando as lágrimas e se pondo de pé, quebrando o ato. Sua encenação havia falhado. Não adiantava apelar para a compaixão do amigo. Claramente, o passado ainda o magoava muito.

A porta vai e vem se abriu. Um homem truculento e alto, com cicatrizes no rosto e costeletas espessas como um a barba de um bode velho entrou na cozinha. Atrás dele vinha uma moça já com suas marcas de idade, mas com rosto esguio e expressão de fuinha, cabelos avermelhados e levemente desgrenhados.

— Lupo! Cida! Que bom ver vocês, o que fazem aqui? — disparou Ícarus, quase trêmulo ao reconhecer os dois capangas dos irmãos.

— Sabe muito bem — limitou-se o brutamontes com voz áspera e grave. — Vamos logo, não me faça arrastá-lo. Acabei de comprar essa camisa, não quero manchá-la.

O homem trêmulo e mais branco que o falamari olhava para todos os lados calculando suas possibilidades de ação. Fisicamente jamais conseguiria vencer aquele embate, já vira Lupo derrubar quatro homens armados e muito mais bem treinados que ele como se fossem crianças brincando com um adulto. Cida era ainda mais tenebrosa, um movimento em falso e uma faca viria do além para lhe cortar a garganta. Proeza presenciada tantas vezes em outras aventuras.

— Meus amigos, isso é um mal-entendido — disse ele, apelando para o único recurso que a deusa havia lhe dado. — Tenho certeza de que podemos chegar a um acordo...

Lupo nem se moveu. Cida riu.

— Vamos logo, homenzinho!

O brutamontes tirou uma bolsa de couro do cinto e lançou-a nas mãos do falamari, que a pegou em pleno ar, já esperando pela ação.

— Jaríon? Você? — perguntou Ícarus, incrédulo.

— Eu tenho família, nunca arriscaria a vida deles por você. Você arriscou demais no que não deveria e foi pego. A responsabilidade é sua, meu amigo.

As palavras do velho falamari lhe golpearam como uma espada. Atônito e sem reação, apenas se deixou conduzir por Cida que lhe pegou pelo braço e arrastou-o em direção da porta. Lupo logo à frente virou as costas e saiu primeiro. Em um último olhar em direção ao pequeno cozinheiro que segurava os espólios por sua informação, seu sentimento não era negativo em relação a ele. Provavelmente, teria feito o mesmo naquela situação, apenas havia ficado surpreso.

— Sinto muito — disse ele por fim. — Por tudo.

— Eu também, não queria que terminasse assim. Mas as coisas são como as coisas são.

Com uma piscadela marota e astuta, ele havia aceitado sua morte. Deixou-se ser conduzidos por seus carrascos até a saída do pequeno restaurante.

Foi a última vez que se ouviu falar de Ícarus, o malandro da rua norte.

Matheus Tonon
Enviado por Matheus Tonon em 12/03/2021
Reeditado em 12/03/2021
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