Duas rodelas de limão no copo de Platão
Compenetrado, Platão pensava na existência da alma, no mundo ideal, sensitivo, transcendental. Mas o convidei para uma palestra amigável, sem grandes pretensões filosóficas, apenas para um bate-papo entre bons amigos. Enquanto ele explanava de forma complexa princípios ininteligíveis sobre a unidade/separação de alma e corpo, sobre as prerrogativas da completude humana para a felicidade, indaguei:
- Mas, Platão, pra quê ocupar-se disso? Não seria ao homem suficiente o mundo sensível? Dotado dos cinco sentidos que suprem-lhe a curiosidade, os ânimos e as necessídades físicas, não estará o homem satisfeito em sua existência?
- Ora, Cyntia. Pense comigo que a alma está dividida em três. Mas antes comungue comigo da premissa de que a visão de mundo só estará completa se eu partir da possibilidade de dividir uma laranja ao meio.
- Não compreendo, mestre. Pode esclarecer-me? – inquiri.
- Filha, olha só. Temos uma laranja inteira.
- Prefiro limões, meu senhor. O sabor é mais marcante e a mistura com álcool é mais inebriante e saborosa. – falei bem humorada.
- Está certo. Se tenho um limão inteiro, tenho um mundo. Ao dividi-lo posso compreender que uma metade é a matéria, o mundo como o vemos. Aí está tudo o que os nossos sentidos são capazes de alcançar. A textura de sua casca é notada pelo tato, seu cheiro pelo olfato e blá, blá, blá... A outra metade é o mundo das ideias, donde podemos extrair o sumo da verdadeira felicidade. – enquanto ele falava notei que o grande mestre espremia a segunda banda partida em um copo de molho de tomate vazio e limpo.
Ele prosseguiu animado adicionando um pouco de vodca ao seu copo:
- O mundo das ideias nos traz a verdadeira felicidade, uma vez que nos faz transcender, pois é nessa banda do limão que eu acrescento minhas indagações e minha percepção real do que é a vida, de onde extraio também as minhas conclusões ou muitas outras dúvidas difíceis de sanar, e isso gera vida. Nessa banda encontro a liberdade verdadeira, pois ela não tem o condão de prender-me à matéria e nem às ideologias. É quando posso adicionar a dúvida, fomentar o conhecimento, questionar infinitamente todas as coisas e brindar à sabedoria.
- Então a vodca que o senhor acrescentou ao limão é todo conhecimento que me fará transcender?
- Ora, jovem! Que tolice! Não faça perguntas idiotas. A vodca é apenas o meu combustível para relaxar e pensar. O que dá gosto é o limão. Ele é o aperitivo sob medida para minha introspecção. O paladar é todo dele. – respondeu com uma certa rispidez, o grande mestre.
A fim de esconder minha vergonha por não ter sido capaz de absorver a filosofia de suas palavras, espremi a outra banda de limão no meu copo de azeitona, adicionei vodca, um pouco de gelo e propus um brinde:
- À alma e a filosofia, meu nobre amigo! Estou muito feliz de reunir-me ao senhor hoje.
Notando que eu procurava um jeito de escapulir da sua retórica, Platão, deu um gole no seu copo, só depois brindou comigo. E prosseguiu incisivo:
- Quanto à alma, baixinha, é o seguinte. Pode ser que alguns prefiram chamar por outros nomes, já ouvi coisas como “chacra” , já ouvi chamarem de esplênico, umbilical, sacro ou algo assim, mas fato é que uma das três partes da alma, eu chamo de “Alma concupiscente” e está localizada à altura da pelve. – Platão partiu outro limão em três partes. Bebeu o último gole da sua vodca, colocou duas rodelas no copo e completou com mais vodca, dessa vez adicionou gelo. A terceira parte do limão ele colocou no meu copo, que ainda se encontrava cheio.
Tentando demonstrar que estava entendendo, sorri levantando meu copo:
- Opa! Essa alma aí eu conheço.
- Sim, conhece. Todos nós conhecemos, está ligada à nossa sexualidade, aos nossos desejos carnais, à concupiscência. Sozinha essa alma é desequilibrada. Ela precisa das outras duas partes.
Curiosa perguntei:
- E quais são elas?
Platão sorriu e fez uma piadinha:
- Então essas você não conhece, menina?
- Talvez eu conheça, só não sei como se chamam. – Sorri sem jeito.
- Ora bolas! – Sorveu um grande gole e prosseguiu – A alma irascível está relacionada às paixões, se localiza na altura do peito.
Eu o interrompi corajosamente:
- Sim, é quando o coração arde de amor, é quando estamos apaixonados! Não é mesmo, meu amigo?
-É um pouco mais profundo do que isso, mas assim está suficiente. Compreenda que nem sempre a paixão é algo bom. Os sentimentos de ira também fazem par com a paixão.– Platão então estendeu o copo na minha direção sugerindo que eu adicionasse mais um pouco do líquido embriagante.
Enquanto eu abastecia seu copo, continuei perguntando:
-Essa alma irascível seria a mais sublime das almas?
Platão respondeu como se não acreditasse no que ouvira:
- Óbvio que não, Cyntia, não seja assim tão rasa! Achei que você fosse uma mulher um pouco mais inteligente.
- Perdoe minha ignorância, mestre. – Respondi tentando esconder-me atrás de um grande gole no meu copo de azeitona.
Platão fez uma pausa momentânea, como se tentasse organizar as ideias e prosseguiu:
- A terceira alma é a Alma Racional. Está em nossa cabeça. É ela que nos conduz pela vida, é quem nos faz pensar e produzir conhecimento. É o “chacra” da sabedoria. Embora eu considere essa coisa de chacra esotérica demais para o meu gosto, mas essa nomenclatura é boa para que minha filosofia alcance o senso comum.
Eu não poderia me sentir ofendida por aquela fala ríspida, preferi recolher-me à minha insignificância intelectual e sorver mais um gole para tentar ficar bêbada de uma vez por todas e ter justificativa para minhas perguntas idiotas. Depois de um longo silêncio eu tomei coragem e perguntei:
- Então é preciso que o homem tenha domínio sobre as três formas de alma para alcançar a felicidade?
Platão respondeu com um sorrisinho irônico:
- Finalmente uma conclusão inteligente, minha amiga! – E caiu na gargalhada. Depois prosseguiu: Mas não se trata somente de domínio, há que se aliar as três partes da alma com as duas partes do mundo para se ter um todo.
Sorri e falei em tom de brincadeira:
- Então é mais do que duas rodelas, gelo e vodca, né amigo?
- Sim. - Ele riu compreendendo minha brincadeira. - Tem muito mais coisas, minha querida. “Uma vida não questionada não merece ser vivida”. É importante compreender que “a paz do coração é o paraíso dos homens”, é aí que está o sentido das coisas.
- E como viver bem, mestre, como fazer a vida ter sentido?
Ele disse comprenetrado:
- Tem que morrer. “Tudo o que vive provém daquilo que morreu”. Devemos matar o que há de ruim em nós, renascer.
- E quanto à filosofia, será preciso compreendê-la? – perguntei desanimada.
- Não. A filosofia está em todas as coisas, feliz de quem pensa, feliz de quem se compromete com o seu mundo ideal, inconformando-se com o mundo material. “Os olhos do espírito só começam a ser penetrantes quando os do corpo principiam a enfraquecer”. Mas não é necessário conhecer profundamente a filosofia, um professor meu certa vez me disse que basta “conhecer a si mesmo”. Só isso já é complicado pra caramba!
Percebi que o meu amigo, o geniososo e impaciente Platão, estava um pouco alterado pelo álcool, acudi-o de um passo trôpego. E ele sorrindo disse:
- É hora de meu espírito ficar penetrante!
Caiu deitado no meu sofá e está dormindo embriagado, escorrendo um fio de baba pelo canto da boca, enquanto lhes escrevo essa narrativa. Será que ao acordar suas palavras serão lembradas?
Fim.