UM DIA UM LOBO - (De todos os meus textos, este o que prefiro)
                                   (Na integra)

A Jorge Lescano, in memoriam






                          UM DIA UM LOBO
                                                                                                                                                                       
             
 
          Era uma vez um lobo que, ainda hoje, por mais que se esforce, não consegue se lembrar de alguma vez ter sido bom, incontestavelmente bom, embora sempre tenha tido excelente memória. Desde criança, seu ABC circulava na boca de cantadores, repentistas... e em variadas versões, das quais restaram duas: a primeira narra a saga de um antropófago bem sucedido; na segunda o caçador termina o conto agradecendo a Academia pelo Oscar de melhor roteiro. Quanto ao lobo, vivia então na plena ignorância disso tudo, que os dias lhe eram dados para brincar de pega-pega, roda-pião, troca-troca, amarelinha...
        Tempos depois, quando já o deixavam explorar sozinho a floresta – nosso herói, como podem ver, era um lobinho obediente e submisso – atravessou-a para conhecer a casa da vovozinha. Aproximou-se furtivamente pelos fundos. A velha rachava lenha no quintal e do interior vinham roncos que ele logo deduziu serem do vovô.
            Ainda adolescente, seu pai o levou para conhecer a rua e a moradia de Chapeuzinho, ele pôde até antever a ponta do dito-cujo por uma fresta da janela e sentir o cheiro dos bolinhos que a mãe da menina fritava naquele instante.
              Na festa de dezoito anos conheceu o caçador, presente entre os convidados. Desde aí, fizeram-se bons amigos e muitas vezes se entretinham em longas discussões sobre o final da história. O caçador, como diriam os amigos pescadores, puxava a brasa para a sua sardinha, ao passo que o lobo se antevia recebendo a estatueta de melhor ator.
               Enfim, chegou a noite dos seus vinte e um. A façanha que o tornaria imortal estava marcada para o crepúsculo do dia seguinte. O lobo bebeu, comeu, fumou, cantou, dançou e, na alta madrugada, fugiu para o próprio quarto com a loba mais cobiçada daquelas redondezas.
         Quando acordou, dois dias após, estava um lixo. Não se lembrara de tomar um Engov antes, muito menos um depois, portanto, ao recobrar a consciência, destripou o mico. Chapeuzinho, vovozinha, caçador se lhe haviam varrido completamente da memória; nem adiantava brigar com o relógio que este, sim, despertou na hora certa.
             Somente na terceira noite após tantas peripécias, nosso herói compreendeu, com a devida clareza, o significado profundo da expressão era uma vez. Chorou, chorou, chorou, sentindo-se culpado, culpado e culpado até a medula dos ossos, perante a vovozinha, Chapeuzinho, o caçador; perante si mesmo; perante a História.
             Desde então, nunca mais o viram. Soube-se muito mais tarde que, em fuga da baixa Idade Média, pedira asilo em um mosteiro Zen.
          Na massa progressivamente cinzenta de seu cérebro havia surgido a primeira, a grande, a imprescindível pergunta: “Sou realmente um lobo mau?” Na busca de resposta, repensou toda a existência no doce lar paterno, desde os mais verdes anos. Nada encontrando que o desabonasse, foi-lhe nascendo outra questão, muito mais crucial: “Se minha natureza é intrinsecamente boa, por que fui destinado ao papel de lobo mau?”
          Deu um nó no pensamento do nosso pobre personagem, seguido por outro, pior: “Eu era um lobo bom, digamos, mediocremente bom, como a grande maioria. Mas, se a lenda me determinava mau é porque ela sabia mais de mim do que eu mesmo. E que fiz? Fugi do campo de batalha. Sou um traidor, um covarde.”
                 De repente, a luz: “O verdadeiro lobo mau não era eu.”
               Mas a sombra: “Como não era eu. A floresta é a mesma da lenda, a vovozinha idem, o caçador ibidem. Vi a casa, a ponta do chapeuzinho, todo mundo, desde que me entendo por lobo, me conta tin tin por tin tin essa história da qual sou o protagonista, embora certas más línguas me queiram apenas coadjuvante.”
               “Bem... Nas versões escritas não aparece nada sobre meu pai nem sobre minha mãe – Que Deus a tenha! – nem sobre o avô de Chapeuzinho, que ouvi roncar. Mas, isso não prova nada. Os historiadores, os contistas costumam usar balança diversa da dos mortais comuns para determinarem quem tem peso suficiente para entrar em suas narrativas (ainda que como meros figurantes tal o centavo) e decidiram da nenhuma-valia de minha mãe, de meu pai, do avô de Chapeuzinho; que motivo teriam para me tornarem astro, assim feio e cantando tão mal? De fato, não devo ser o lobo famoso da lenda.”
       A essa altura a cabeça do nosso-para-si-mesmo-quase ex-protagonista doía tanto que ele se ergueu do tatame e foi de cela em cela  a pedir um comprimido. Ninguém o tinha e tanto burburinho acabou por chegar aos ouvidos do Mestre Superior que veio saber o que estava ocorrendo. Como seria um tanto inoportuno contar-lhe as elucubrações de lobo ocidental, disse apenas que estava à procura de um comprimido. O monge manteve o silêncio zen. Cabisbaixo, nosso herói sofrido voltou para a própria cela tão cansado, que acabou dormindo sem remédio e sem koan (a fala que "desperta" os seres do sono de existir).
 
 

 
            Atores perplexos, suspensa a apresentação da peça, público indignado e exigindo o dinheiro de volta, Shakespeare se revirando no túmulo em Stratford-on-Avon. Quem poderia prever aquele desfecho, bem no meio do espetáculo? Era o ano de 1626 e o Terceiro Festival de Teatro Amador homenageava o Mestre morto há uma década. Durante duas semanas os amantes da Arte Dramática iriam se deliciar com os desmandos da megera domada e se enternecer com Ariel; se deixariam oprimir pelos crimes dos Macbeth e derramariam lágrimas por Romeu e Julieta. Ninguém estava preparado para as cenas improvisadas durante a apresentação de Hamlet, no quarto dia do Festival.
        Tal apresentação vinha sendo aguardada sob grande expectativa porque a antecedia um boato segundo o qual o ator do personagem-título era um talento verdadeiramente promissor, dos destinados não apenas a conquistar as plateias de Londres, como também as da Europa culta. Imaginem isso um século e meio antes da eclosão do individualismo romântico! Todos queriam conferir o trabalho do jovem ator que até aquele momento apenas desempenhara papéis secundários em peças de muito pouca expressão.
                 Que o dissessem seus companheiros de palco! Durante os ensaios, quantas palmas! Que magnífico Hamlet, que grande intérprete estava nascendo ali! Impossível escapar à emoção impressa nas falas do personagem e ao sofrimento estampado em sua face. Todos os colegas aplaudiam, sem qualquer ressaibo de inveja. Tamanho entusiasmo acabou por chegar aos ouvidos de eminente crítico, que após assistir a um dos últimos ensaios atestou a excelente performance do jovem no suplemento cultural mais importante da cidade.
                   Noite de estreia, teatro lotado. Hamlet e seu luto, Hamlet diante do espectro do pai, Hamlet dilacerado pela denúncia do assassínio. Começa o terceiro ato. Polônio e o Rei se ocultam para observar à vontade o pseudo louco. Este inicia sua fala emocionada e lúcida à qual se seguirão o diálogo com Ofélia e o comentário do Rei, mal convencido da loucura apregoada por Polônio. Ser ou não ser... eis a questão... e Hamlet emudece, estampa-se-lhe nos olhos intenso pavor, as faces se cobrem de palidez cadavérica. Põe-se a correr pelo palco, uivando, em seguida acerca-se de Ofélia, que acabou de entrar em cena, agarra-a, tenta mordê-la. Estupefatos Rei, Polônio, donzela, bastidores, diretor, plateia compreendem, simultaneamente: Hamlet está mesmo louco. Dali, o promissor intérprete Harmful Lupus, amarrado, é transferido para o hospício mais próximo, nos arredores da cidade.
 
 

 
                Berlim, primavera de 1863. O Sr. Jakob Grimm, filólogo, vai pela rua remoendo saudades do irmão Wilhelm, saudades particularmente aguçadas nesta noite igual a tantas outras que ambos compartilharam sob o aroma das lendas camponesas, nos jardins das bibliotecas, na primeira leitura, quando meninos, da Canção dos Nibelungos. Wilhelm, cuidadoso, preciso, o companheiro ideal para as aventuras do espírito.
                O Sr. Jakob vai caminhando tão absorto que nem se dá conta do vulto a segui-lo sabe-se lá desde que rua, talvez desde a hora em que saíra da Academia de Ciências, quando a lua cheia começava a se mostrar, ainda translúcida.
                   “Sobretudo negro, cabelos desgrenhados, enormes olhos escuros, mãos como as de um lobo” assim a descrição que fez do desconhecido ao Inspetor de Polícia, naquela mesma noite. “Agarrou-me pela nuca, obrigou-me a dar meia-volta, olhou-me com incrível intensidade enquanto apertava-me a garganta - eu só conseguia pensar em tal fim absurdo para quem dedicara toda a vida às pesquisas literárias, científicas. De repente, uma nuvem branca lhe passou pelo olhar, foi afrouxando os dedos, cambaleou como se fosse ter um desmaio e disse, com voz sufocada e profunda: “Por sua causa tornei-me um judeu errante, apátrida.” Em seguida, desapareceu. Mas era bem real, veja estas marcas no pescoço.”
 
 


 
                 “Ela só faz o que quer. Às vezes penso que tem má índole. É um horror pensar isso, mas tenho quase certeza: foi ela quem envenenou o gato da vizinha. Minha filha não tem pulso para educar essa menina. Eu tenho, por acaso? Mas é preciso torcer-lhe o pepino, creio que ainda é tempo. Vou engrossar minha voz, ela vai ver com quantos paus se faz uma avó de verdade.”
               “Faço gato e sapato da vovó e ela nem liga. Adoro levar-lhe os bolinhos que minha mãe frita, só para deixá-la doidinha o dia inteiro. Mas não me iludo: essa permissividade toda transforma as crianças em adolescentes problemáticos e estes em adultos completamente neuróticos.”
            “Deve haver algo como uma tecnologia do amor, mecanismos que tornem essa energia mais eficaz. Abandonei o curso de Psicologia no segundo ano e me mudei para cá com meu marido, quando ele assumiu o cargo de guarda-florestal. Hoje sou apenas uma boa dona-de-casa. Nenhuma revista especializada... aqui o correio não chega... se pelo menos ela tivesse um irmãozinho... o pai caiu fora antes disso.”
              “Na tradição simbólica, o lobo é uma figura de significado ambivalente: sob o aspecto negativo este animal selvagem simboliza a energia demoníaca; sob o aspecto positivo é relacionado à evolução espiritual tornando-se, portanto, um símbolo de luz, talvez pelo fato de enxergar bem no escuro. Hades, Senhor dos Mortos, usava um manto de pele de lobo.”
                “Um dia ele disse que gostaria de ganhar o Oscar de melhor ator. Eu não faço questão do de melhor roteiro, prefiro trocar tal notoriedade pelo prosseguimento desta vida anônima na companhia dos meus bem-amados bichos.”

               Excertos: “Chapeuzinho Vermelho Revisitado”, de Edmund Fromm Lobo; Editora “A Lenda Viva”; 1968; 2ª edição.

 
              “A primeira edição deste livro é de 1963. De lá para cá muita coisa mudou, não o suficiente para me fazer renegar as propostas lançadas naquele momento, no qual importava divulgar as conclusões de dez anos de prática na Psicanálise, atendendo predominantemente a jovens na faixa de doze a dezoito anos.”
          “Quando comecei a clinicar, em 1949, não avaliava claramente a importância dos contos de fada para a formação da psique infantil e juvenil, a influência profunda das bruxas, fadas, lobos maus, considerados em sua dimensão simbólica.”
         “Os jovens que apresentavam os maiores desajustes emocionais e de conduta eram aqueles que haviam introjetado apenas o primeiro nível dos personagens-tipo. Esse primeiro nível, o da superfície das ações, revela uma visão maniqueísta do mundo: as fadas são o bem, as bruxas e os lobos personificam o mal enquanto nas camadas subterrâneas cada símbolo tem face dupla, é simultaneamente bom e mau.”
         “Comecei a me perguntar por que os jovens mostravam tanta dificuldade para integrarem em si mesmos tal dualidade, o que os levava a ver o mundo sempre em termos de branco/preto, cristão/herege, verdade/mentira. E fui me dando conta: a causa desta dificuldade está na Educação.”
           “Escolhi o conto "Chapeuzinho Vermelho" como base de estudo porque é o mais conhecido e me parece emblemático também no que refere às relações de poder, cujos sentidos e conotações se alteram a partir dos diferentes pontos de vista. Para apreender e tornar clara tal multiplicidade fiz o máximo possível de leituras dos arquétipos: avó,  Chapeuzinho,  mãe,  lobo,  caçador.”
        Início do texto introdutório à 2ª edição de “Chapeuzinho Vermelho Revisitado”.
 
 

           Em 11 de agosto de 1971, sob o governo do general Garrastazu Médici, é promulgado o Decreto-lei n° 5692, que fixa diretrizes e bases para o ensino de 1° e 2° graus no Brasil. No auge da ditadura militar, com o amordaçamento de todas as vozes divergentes, apenas uma ou outra, impávida, se ergue em protesto contra o referido Decreto-lei. A revista “Educação Hoje”, uma dessas poucas, publica matéria no mês de novembro com declarações de pais, educadores e profissionais de diferentes áreas sobre as mudanças a serem deflagradas no ensino. Destaquemos a colocação de uma professora secundária (como se dizia na época) a qual, por razões óbvias, preferiu não se identificar e, em seguida, o depoimento mais extenso do doutor Edmund Fromm Lobo:
         “A Reforma de Ensino de 1° e 2° graus, como todos sabemos... não, como a maioria, certamente, não sabe, é o fruto espúrio do Acordo MEC-USAID, de 1969. Nossa escola pública, apesar de suas mazelas, proporcionava aos jovens alguma formação crítica, humanista. Agora e muito mais a médio e a longo prazo se tornará apenas caricatura de si mesma visto que, já a partir de 1972, não teremos mais Filosofia nem Sociologia no currículo do 2° grau. Isso é retirar dos jovens o direito ao pensamento. Onde estaremos, daqui a duas décadas?”
 
       “Tinha a intenção de fazer de “Chapeuzinho Vermelho Revisitado” um texto libertário, que levasse as pessoas a pensar. Quanta gente me procurou, colegas da área, professores... Houve polêmica, é claro, muitos achavam as colocações reacionárias, diziam que relativizar a dicotomia bem/mal seria diluir nos jovens a consciência da luta de classes, a consciência da oposição entre classe oprimida e classe dominante. Eu retrucava, tentando explicar que esta era uma visão simplista, redutora. Não chegávamos a declarar estado-de-guerra, de modo algum, embora a tendência geral fosse de extremar as posições.”
          O doutor Edmund deixa a revista “Educação Hoje” aberta sobre a mesa do consultório. Vai até a janela, abre-a, oferece o rosto ao vento. Vinte andares abaixo, a Avenida Paulista, que ostenta ainda a fachada de muitos de seus antigos casarões, começa a acender as luzes do crepúsculo e a cruzar intensamente seus veículos, nesta hora de fim de expediente. 1971 corre, também, para o término. Prossigamos a leitura:
           “Universidade de Brasília, Comissão da Cultura Popular, Paulo Freire. Não sentia oposição real entre minhas propostas e as deles e o livro se mostrou útil tanto que em 68 ganhou uma 2ª edição, que coincidiu com as magníficas rebeliões dos jovens em Paris e em várias praças do mundo, inclusive do Brasil. E agora me vejo citado como um dos mentores intelectuais dessa execranda reforma de ensino. Escolheram, a dedo, os trechos do trabalho que – agora me dou conta – permitem interpretações passíveis de manipulação, talvez por falhas de linguagem, alguma questão mal formulada... O que não quero nem vou admitir é o uso fraudulento dos seus princípios, os quais reafirmo. Só pretendo limpar meu nome, refutando um por um, os argumentos daqueles que, por má-fé, me incluíram em grupo de extrema-direita; creio que possa contar, para esse desagravo, com algum espaço nesta conceituada revista.”

      O doutor Lobo não teve a satisfação de ver sua autodefesa publicada em qualquer número posterior da “Educação Hoje”, periódico suspenso por tempo indeterminado. “Vejo-me obrigado a repetir, como tantos outros, que ninguém pode prever as consequências de seus mínimos atos. Por que não mantive as ideias no interior do consultório? Não consigo lavar as mãos, não há inocência possível.”
 



 
     Um lobo anda pelas ruas. Há seis meses perdeu todos os empregos temporários, ficou sem moradia, livrou-se do computador, embora ainda atenda pelo nome de Osicran, seu derradeiro apelido na Internet. Osicran, efebo de Atenas, mais ou menos heterossexual, intensamente viajado, atlético, olhos negro-azeitonados, de passagem por São Paulo, em disponibilidade plena. Por estes dias, alugou um canto no extremo da calçada-fronteira entre a Ipiranga e a São João, ponto privilegiado. Todas as noites enrola a cabeça nos lençóis, mas tem problemas para dormir porque um dos colegas de quarto trouxe para casa um aparelho de TV furtado no Metrô, o mais recente prodígio da tecnologia digital, em cores, com controle remoto, com cinco polegadas e som estéreo; transmite todas as novelas e noticiários da Rede Globo e assim todos podem acompanhar o sobe-desce da Bolsa de Valores, o desembarque dos States na Iugoslávia que ninguém mais sabe o que é, a saga dos afogados na enchente do Anhangabaú, a previsão do tempo para amanhã, a prisão do bandido pela infração de fumar no elevador, o recebimento, pela família, da orelha do sequestrado, orelha enviada pelos sequestradores para provar que o referido ainda está vivo e de repente lá estão na telinha Osicran e os outros mendigos ali na calçada em imagem de alta definição no show dos cowboys mais autênticos da nossa tradição rural a enviarem beijos à plateia enlouquecida mas Osicran confunde tudo e julga que está vendo um trio elétrico tocando na missa de Páscoa enquanto as tietes gritam para o padre LINDO LINDO LINDO e a personagem chora sentida que o pai não sabe da sua existência acordou agora após trinta anos em coma enquanto o pobre Osicran não consegue dormir sequer um mísero minuto por causa das câmeras pulgas e compara: “A outra Idade Média foi bem menos barulhenta, apesar das Cruzadas.” Aproveita a entrada dos comerciais e o farol vermelho para se recordar das próprias pessoas virtuais: ex-psicanalista famoso, neurótico assumido, membro da Greenpeace, professor de Língua Árabe, sem-terra, violinista de orquestra sinfônica, cantor pop, atriz de cinema pornô, halterofilista amador, voyeur profissional, colecionador de gibis raros, manequim, consultor sentimental e o farol fica verde câmera ação receita de Chicken Pie atenção um frango limpo e cortado em pedaços duas colheres de sopa de suco de limão sal pimenta do reino uma cebola picada três colheres de sopa de óleo líder de seita pedófilo lolita drag queen professor de ikebana fiscal de rendas animador de TV. Durante os tempos de Internet, Osicran aprendeu muito. Viajou pelo Louvre, recitou tantras no Tibet, fez sexo oral com feminista dos anos sessenta, estudou Húngaro em Budapest, acupuntura na China, soube, nos bastidores, quem ganhou o Oscar de melhor ator, escalou o pico do Everest e, após tanto aprendizado, já não sabia distinguir pera de morango. E o sono fez-se sonho e do sonho fez-se o branco e do branco foi nascendo Osicran, o jovem grego. E como era belo, atraiu muitos efebos nativos a lhe proporem orgias na Ilha de Creta, senhoras procurando detalhes sobre o iate de Onassis e ainda outros tantos com a pergunta: O milênio termina em 31 de dezembro deste ano de 1999 ou em 31 de dezembro de 2000?
 


 
       O lobo caminha pela Praça da República, pára num sebo, compra um livro, senta no banco, entre as pombas e os cachorros vadios. Acaricia a lombada do volume como se tocasse corpo de mulher. Sente saudade, não sabe bem de quê. Talvez tenha a ver com o título TODOS OS HOMENS SÃO MORTAIS, de Simone de Beauvoir, talvez esteja doente da própria imortalidade, isso deve pesar muito. Já leu o livro, mas faz tanto tempo... só lembra que é também a história de um ente imortal.
 
 
 
           "Eu interrogava pacientemente o jovem inca e, pouco a pouco, enquanto atravessávamos o imenso planalto situado a mais de oito mil pés acima do mar, e onde cresciam ainda cactos azuis, eu ia ficando a par do que fora o império de seus maiores. Os incas ignoravam a propriedade privada; possuíam em comum as terras que lhes eram distribuídas anualmente, reservando-se uma terra pública para a manutenção dos funcionários e abastecimento dos armazéns em época de penúria; denominava-se “Terra do Inca e do Sol”. Cada índio ia, em determinados dias, trabalhar essa terra e também lavrar os campos do enfermo, da viúva e do órfão. Trabalhavam com amor, convidando-se entre amigos e juntando aldeias inteiras para lavrar as suas parcelas: os convidados acorriam com a mesma solicitude com que teriam acorrido a uma festa. Todos os anos, havia distribuição de lã e, nas terras quentes, o algodão das terras reais era de todos; cada um fazia em sua casa o que lhe era necessário, sendo todos pedreiros e ferreiros, ao mesmo tempo em que donos de um campo. Não havia pobres entre eles. Eu escutava Filipillo e pensava: “Eis o império que destruímos, o império que eu desejava estabelecer sobre a terra e que não soube construir!”
 
 
                                               [...]
 
 
          "- Vede – disse-me meu jovem guia. – Vede o que fizeram dos homens de minha raça.
            Pela primeira vez, sua voz impassível tremia e, à luz da tocha, vi lágrimas em seus olhos. Nas galerias sombrias trabalhava um povo inteiro que não era mais um povo de homens, mas de vermes; não tinham mais carne nem membros, a pele escura colava-se-lhes aos ossos, que pareciam quebradiços, como galhos secos; já não tinham olhar e pareciam nada ouvir, martelavam os muros com gestos de autômatos; por vezes sem um murmúrio, um desses negros esqueletos desmantelava-se no chão e surravam-no com chicote ou barras de ferro; se não se levantasse rapidamente, matavam-no. Durante mais de quinze horas por dia, escavavam a terra e eram alimentados com um pouco de pão feito de raízes socadas. Nenhum vivia mais de três anos."

              Do livro "Todos os homens são mortais" de Simone de Beauvoir




        Damos de cara um com o outro, ele vindo eu indo em direção ao edifício Copan, aquele de frente para o Hotel Hilton, na Avenida Ipiranga. Surpreende-se, eu não.
        Pensei que estivesse em casa, digitando o texto. Veio me visitar?
       Estava, mas branqueou tudo. Resolvi sair, vagabundear. E você, já releu todo o livro?
       O da Simone? Ah, sim... sempre a mesma história: incas, maias, astecas, judeus, albaneses...nada muda, nunca. Por falar nesse assunto, o que pretende fazer de mim?
       Vamos tomar um café no Floresta.
     Sujo desse jeito? Vá lá, que seja. Aqui ninguém mais repara em nada, mesmo. Me paga o café?
     Faz meia-volta e seguimos para o Copan. Durante o trajeto, todos os mendigos que passam por nós o cumprimentam, pelo nome.
      Você é famoso por aqui, hein?
     É verdade, mas acho Osicran horrível, não soa grego nem troiano.
     É um anagrama.
     Sei, de Narciso. Um pouco forçado, enfim...
    Tem outra idéia?
    Nenhuma, afinal você é o narrador. Como planeja terminar este... conto...  esboço de novela... novelo...?
    Rascunhei duas possibilidades, não funcionam. Na primeira, você está em 2027, procurando um manuscrito nas ruínas da biblioteca.
    Que biblioteca? Que manuscrito?
   Sei lá. Um manuscrito desconhecido, que lhe elucide, em definitivo, a questão de sempre: Sou um lobo mau? E quem o ajuda a procurá-lo? Chapeuzinho Vermelho, que se tornou sua discípula. Você está muito velho, para morrer...
     Ah, vai me matar?
     Pretendia... Já tentaram isso antes.
    Quer saber? Se você não tivesse perdido a minha pista tantas vezes, eu já teria encontrado a resposta, em algum outro século. Já chegamos à porta do XXI, e nada. Incompetência dá nisso. Bem... diga a segunda versão.
     Osicran acabou de reler TODOS OS HOMENS SÃO MORTAIS e se põe a pensar na Idade Antiga. Deita-se no banco da praça, dorme. Sonha. No sonho, o dia amanhece com as meninas incas dançando ao redor de Narciso. Elas vestem alvas túnicas de algodão e trazem, sobre a cabeça e nas mãos, lindas coroas de flores. De repente param, formam um círculo e erguem preces ao Deus-Sol. Gostou?
       É estranho... Por que esta cena?
       O balcão do Café Floresta está lotado. Aguardamos.
       Por que esta cena? Já pensou se os europeus não chegarem? Se Atahualpa não se der ao sacrifício?
                               ?
      Seremos todos incas, das Guianas à Patagônia.
      E daí, faremos outra História?
     Engulo em seco, sinto um nó na garganta. Osicran o percebe, imediatamente:
      O que houve? Você ficou branco...
      Respondo, com esforço:
    Qualquer Império é Erro Monstruoso, já a partir da Ideia de Império. Este Café é um dos melhores da cidade.
     Também acho. Daqui, vai para onde?
     Talvez assistir ao “Shakespeare Apaixonado”, lá no Belas Artes.
   Também você? Quanto a mim, sempre gostei dos heróis de Hollywood, desde que morava na floresta. Esse aí, dizem que é bom.
      Vamos ver.
    Vamos? Não posso ir vestido assim, ainda mais ao Belas Artes. Mas, logo logo, esse filme passa na TV. Quando descobrir o que vai fazer de mim me avise, por favor. Devo permanecer um bom tempo no endereço atual. Boa sorte, caro amigo.
     Obrigado, eu o procuro. Sempre se acaba chegando a algum final. “É, sempre se acaba chegando...” entretanto, enquanto subo a Rua da Consolação, só me ocorre que, mais uma vez, não ganharemos o Oscar de melhor roteiro, tampouco o Oscar de melhor ator.



Texto escrito em 1999
Republicação

Nota. Este texto esta em "Hidra inofensiva para heroismo nenhum" postado como e-livro no Recanto. Quem se interessar pelo livro, so baixa-lo.