Voo 93
Estados Unidos, setembro 2001
As comissárias de bordo se postavam nos corredores para sua rotina de instruções, logo após as portas do voo 93 se fecharem e o piloto anunciar a todos que o voo finalmente havia sido liberado. O voo que conectava Nova Jersey com São Francisco na Califórnia, estava 45 minutos atrasado. “Espaço aéreo ocupado” informaram nos autofalantes, mas a aeronave, finalmente, dava partida e se movimentava. Com movimentos dignos de medalhistas em nado sincronizado, três aeromoças dançavam em suas posições padronizadas, o que parecia um exagero, visto que o voo estava com menos da metade de sua capacidade e, talvez, apenas uma fosse necessária para os observadores.
Os poucos passageiros que ali havia, mal prestavam atenção à sincronia e exatidão com que instruções básicas lhes eram passadas, afinal, muitos já estavam acostumados a voar e decoraram cada instrução. Mas um deles, observava com atenção cada movimento das aeromoças, não porque era novidade, mas porque sabia o que era estar falando na frente de um público que mal o ouvia e sabia o valor que havia num simples olhar interessado. Este, era Erk Ullyson, mais conhecido como Professor Ullyson, professor doutor de Historiografia Grega na USFCA, Universidade de São Francisco, na Califórnia.
Erk, tomava este voo quase que semanalmente, nos últimos dois meses, mas esta viagem seria especial, seria a última por longos meses, pois suas aulas finalmente se iniciariam nesta semana e por algum tempo não poderia voltar para visitar sua mãe em Nova Jersey, que morava sozinha e era muito carente.
Após o fim das instruções das três aeromoças, que o agradeceram com um sorriso, seus olhos se voltaram para a marca que havia em seu antebraço, do lado mais interno. “Seu pai tinha uma marca igualzinha a essa”, lembrou ele da primeira vez que sua mãe lhe contou sobre seu pai. Não falara muito, apenas que ele era um grande homem e que lhe dera um grande presente, o próprio Erk. A marca estava ali desde que nascera, e foi crescendo com o passar dos anos, acompanhando o crescimento de seu corpo e, a cada ano, foi tomando uma forma bem específica. A forma de um raio.
Erk passou o polegar esquerdo sobre a marca em seu antebraço enquanto lembrava desta primeira conversa com sua mãe, ajudava-o a relaxar e fazia-o pensar em seu pai, este ser misterioso que sua mãe tanto amava, mesmo ele os tendo abandonado por todos esses anos.
Um puxão em seu umbigo e um peso em seus ombros, indicavam que o avião levantava voo. Lá fora, nuvens negras cobriam o céu, conforme o avião subia, o tapete negro de nuvens se estendia no horizonte, “provavelmente cobrindo todo o país”, pensou ele, calmo. Sentia-se calmo durante as chuvas, mesmo dentro de uma caixa metálica que trepidava com a turbulência ao cruzar algumas nuvens. Cada clarão que via no horizonte, era como um sorriso de um pai que nunca vira, um pai que não compartilhava dos mesmos olhos ou do mesmo nariz, um pai que carregava também uma marca de um raio. Em meio a turbulência e avisos do piloto, Erk, ouvia sussurros baixos, como de alguém que rezava a algum deus por proteção. Mesmo os comissários, mantinham-se sentados, tamanha a violência dos solavancos da aeronave, fazendo estremecer o emocional de todos os demais passageiros.
Em sua calma, Erk, notou uma passageira que, também, não parecia se abalar com a situação, uma jovem muito bela, que trazia em seu rosto uma expressão de grande determinação, ao seu lado, sua avó (como pareceu a Erk) curvava-se sobre os joelhos rezando em sussurros, aparentemente desesperada e com a cabeça coberto por um lenço. A jovem, em seus vinte e poucos anos, se levantou, olhando para ele como que ironizando todo o medo das pessoas, e se dirigiu até a frente do avião.
“E ainda vai usar o banheiro? Ousada”, pensou Erk.
Instantes após ela sumir através das cortinas que sepa
ravam a classe econômica da primeira classe, foi possível ouvir outro som em meio ao urro dos trovões lá fora e as conversas e rezas desesperadas do interior da aeronave. Erk escutou o som de gritos abafados e uma porta que batia. Confuso, esperou, até que um bipe das caixas de som, veio em resposta, anunciando uma possível explicação do piloto sobre o que ouvira. Mas a voz que ouviu, não foi a voz do Capitão Jason, tão familiar e presente em quase todos os seus voos nos últimos dois meses, foi uma voz feminina, com um sotaque forte, indicando que não era dali.
— Senhores passageiros, peço que se mantenham calmos e não saiam de seus assentos. Há uma bomba neste avião. Detonaremos se qualquer um de vocês tentar se levantar. — E com um tom irônico, concluiu — Obrigada.
O bipe, indicando que o microfone desligara, trouxe, também, silêncio total para o interior da aeronave. Mesmo os raios e trovões pareciam ter se afastado, podendo ser ouvidos apenas bem distantes. Os passageiros, ainda mais aterrorizados, se entreolharam. Toda a paz e calma de Erk, sumira junto com o anúncio da sequestradora. Uma mão se levantou na poltrona da primeira fileira, carregando um dispositivo, o polegar acariciando um botão vermelho. Nesse momento, todos olharam paralisados, até mesmo o avião parara de dar solavancos, como se até mesmo este gigante de aço temesse o simples apertar daquele botão.
— Ouviram? Ninguém se levanta sem eu mandar! — anunciou uma voz masculina que segurava o dispositivo, enquanto o homem se levantava. Ele também tinha um sotaque, mas bem mais leve do que da sua parceira, e se levantou da poltrona do outro lado da velha senhora que ainda rezava.
Erk, sentia algo familiar neste sotaque, mas não conseguia identificar de onde era. O terror que sentia aumentava, conforme as nuvens negras se dissipavam, toda sua confiança se esvaía.
Psiu.
Olhou para o lado, um homem, sentado na janela oposta à dele, o chamava. Erk acenou com a cabeça, indicando que o escutava. O homem sussurrou, abaixo do som dos choros e orações ainda mais desesperadas que dominavam a aeronave:
— São terroristas. — Com uma das mãos, estendeu a Erk um celular, a tela acesa revelava uma conversa por SMS, a outra pessoa dizia que dois aviões haviam batido nas Torres Gêmeas. — Temos que fazer algo.
Erk ficou com os olhos vidrados na tela pelo que lhe pareceram horas, cenas de todas suas conquistas passaram em sua cabeça, sentiu de novo a alegria ao abrir a carta o convidando para dar aula de Historiografia Grega na USFCA, tudo isso culminou naquele momento, como se fosse uma piada de mal gosto das fiandeiras do destino, as Moiras da mitologia grega, querendo encerrar sua vida em seu ápice. Olhou de volta para o homem de olhar determinado, que ainda o fitava aguardando resposta:
— Eles vão derrubar o avião de qualquer jeito! Melhor tentarmos algo! — insistiu ele, em tom de urgência. Erk, devolveu o celular, o terror que sentia perdia força frente a certeza da morte. As nuvens que antes se dissipavam, agora, voltavam a cercar o avião, como se querendo acompanhar de perto aquela cena digna de uma tragédia grega. Trovões voltavam a bradar do lado de fora, fazendo as paredes do avião vibrarem em sua fúria.
O som de choro e reza aumentava, inflamando-se com a fúria da natureza lá fora. O homem da poltrona 22A sussurrava para outros passageiros, preparando-os para o que viria a seguir. A calma chegou novamente ao coração de Erk, acalentado pela fúria da tempestade, acariciou novamente a marca que o unia a seu pai. “Um grande homem”, lembrou das palavras dela. “Vou honrar este amor que sentiu por ele, mãe. Ele saberá do que eu fiz, onde quer que esteja.”
Erk ficou observando aquele líder improvisado, aquele herói valoroso que surgia com a necessidade, observou-o aguardando algum sinal. Quando seus olhos se encontraram novamente e, os dois, fizeram menção de se levantar, um grande solavanco golpeou-os de volta para o assento, gritos ecoaram pelo avião que balançava violentamente pelo céu tempestuoso, uma voz crescia em meio a toda essa profusão de sons. A voz daquela velha senhora, que rezava com seu rosto coberto por um lenço. Sua reza foi ficando cada vez mais alto e, somente então, Erk conseguiu entender suas palavras. Primeiro distinguiu uma palavra em meio ao caos e trovões: Tífon. Era o nome do mais terrível gigante na mitologia grega. Ao ouvir este nome, Erk, se concentrou no resto e percebeu que, o que antes achava ser uma oração, eram palavras proferidas em grego antigo, palavras estas tiradas de códices milenares, consideradas lendas e histórias mitológicas, eram palavras do Ritual de Sacrifício, para libertar o grande gigante que engoliria deuses e destruiria a todos.
Impulsionado por um forte clarão, cujo som reverberou em seu coração, Erk, levantou-se com um salto gritando na mesma língua proferida pela velha:
— O QUE ESTÃO FAZENDO? — ao ouvir sua própria voz, naquele idioma antigo, seus ouvidos reconheceram o sotaque da voz que ouvira no autofalante e do jovem que carregava o detonador.
O jovem esticou o braço para frente, mostrando o dispositivo, ameaçadoramente:
— Agora é tarde! Vocês serão as últimas almas a alimentar o grande Tífon. E, enfim, ele terá forças para se reerguer e se libertar! — respondeu o terrorista, no mesmo idioma. A velha proferindo suas palavras ainda mais rápido e mais alto. Os demais passageiros se entreolhavam confusos com tudo o que acontecia, sem entender o que diziam.
Erk olhou, de canto de olho, para o homem da poltrona 22A e acenou com a cabeça.
— Parem já com isso! — disse Erk, para aquele que portava o detonador, no momento em que um grito bravo, digno de Aquiles e seus valorosos guerreiros, ecoou pelo avião:
— AGORA!
Uma confusão de braços e pernas se arremessaram sobre o corpo do jovem, acertando, também, o da velha, calando sua voz e arremessando para longe o detonador.
Quando se levantaram para ver onde o dispositivo estava, se surpreenderam ao ver que tanto o jovem, quanto a velha, haviam sumido, apenas suas roupas restavam no chão, como se seus corpos estivessem se transformado no próprio ar que respiravam. Os três homens que haviam pulado sobre o terrorista, olharam para trás, atônitos, procurando em Erk, alguma resposta. Ele deu de ombros, sem entender.
Uma voz voltou a ecoar pelo avião, não vinda das caixas de som, mas das próprias paredes do gigante de metal. A voz, como que das profundezas do mundo inferior, vibrou em seus ouvidos e corações, naquele idioma ancestral:
— Não tem problema, mortal, posso continuar mesmo sem meu corpo. As filhas de Hécate garantirão que vocês não me atrapalhem mais.
E, com isso, a voz continuou ressoando nas paredes do avião, proferindo as palavras do ritual que ofertava suas almas ao ser mais temido do Olimpo. Mesmo o bravo herói da poltrona 22A, tremeu e teve sua força esmagada ao reconhecer que se tratava de algo além do mundano. Os passageiros se acovardaram, aceitando o seu destino, mesmo sem entender as palavras, sabiam que a vida, não seria uma opção. Que a luta era inútil.
Erk manteve-se em pé no corredor, destemido, sabendo que não sairia com vida, mas determinado a impedir o ritual de ser concluído. Sob o som de trovões que tentavam suprimir as vozes que ressoavam num tom profundo e metálico, Erk, deu um passo em direção a cabine do piloto. Com seu passo, as roupas de seu algoz, antes caídas no chão, ergueram-se no ar, sendo preenchidas, como se pelo próprio sopro de Tífon, um corpo surgia ali. Não mais o corpo de um jovem de pele em tom cobreada, mas um corpo espectral de uma mulher, garras no lugar das mãos, uma das pernas feita de bronze, a outra, como a de um asno. Sua cabeça em chamas incandescente encheram a aeronave de uma luz alaranjada, que lutava com o brilho azulado da luz dos relâmpagos que invadia pelas janelas.
— Uma empusa. — disse Erk, reconhecendo o ser mitológico presente em tantos contos.
— Sente-se mortal — ameaçou a criatura, abandonando a língua ancestral, para que todos entendessem.
— Jamais — respondeu ele, determinado. Seus olhos, fixos nos olhos sem alma daquela criatura, não perceberam uma luz que surgia. De seu braço, da marca de seu pai, uma luz azulada começava a irradiar para todo o seu corpo.
Ao verem isso, os passageiros e comissários, um a um, foram se levantando, colocando-se logo atrás daquele que acreditavam ter sido enviado para lhes proteger. Erk, agora, brilhava com a luz de todos os raios da tempestade que os assolou.
— NÃO SEREI SACRIFICADO! — gritou Erk. Sua luz engolindo a luz das chamas que refletiam nas paredes.
— NÃO SEREMOS SACRIFICADOS! — gritou o homem, aquele da poltrona 22A, sem saber o porquê. Apenas seguindo aquele ser celestial que o inspirava.
E, seu grito, ecoou, numa sincronia que a humanidade só consegue em momentos de profunda necessidade, todos gritaram junto. As vozes em uníssono vibraram forte nos ouvidos de Erk, enchendo seu coração e pulmões com o som dos trovões, Erk, gritou com a voz de todos:
— NÃO SEREMOS SACRIFICADOS!
Um clarão encheu o avião.
O silêncio tomou conta de tudo.
Erk, sentiu seu corpo deitado, mas sem dor nenhuma. Confuso. Levantou-se. Olhou para baixo, via seu corpo em pé sobre um chão branco, sem sombras, sem paredes. A claridade ao seu redor, trazia o brilho puro daquela luz que tanto lhe confortava. O brilho de um relâmpago. Erk foi caminhando por esse espaço vazio.
Uma voz grave preencheu o silêncio em seus ouvidos.
— Obrigado meu filho.
— Pai? — perguntou ele, confuso.
— Sim. Você carregou minha marca com valor. Impediu que o mundo fosse destruído. Vocês, os 40 que embarcaram nesta viagem. Morreram como guerreiros. Impedindo um ritual que dependia de cordeiros. Obrigado.
O som da última palavra, ecoou pelo vazio, sumindo aos poucos no infinito.
Levando consigo toda a luz.