A FRATERNIDADE

O gato me encarava com seus olhos amarelos. Quase todos os dias ele vinha me ver e se empoleirava na minha janela, fitando-me com curiosidade.

— Sai daqui, gato imundo! — eu o repreendia todas as vezes, com muita severidade.

Sempre que eu o enxotava, ele se arrepiava e me mostrava as garras, em seguida empinava o traseiro peludo e ia embora desfilando, esnobando-me, dizendo-me que eu era apenas mais um humano para ele.

Hoje, diferente das outras vezes, ele apareceu com uma carta enroscada no seu pequeno pescoço. Estranhei esse ato, nunca havia visto um gato correio.

— O que tem para mim? — ele tentou arranhar-me quando fui pegar a carta, como se dissesse que eu precisaria pedir com educação. — Devo estar louco, não serei gentil com um gato! — decretei.

Quando fui novamente pegar a carta, ele repetiu o gesto violento de anteriormente; desafiando-me, mostrando ser um animal de classe.

— Tudo bem! — respirei fundo e disse para o bichano. — Poderia, por gentileza, permitir-me pegar esta porcaria de carta? — o bicho miou enraivecido, como se ordenasse que eu não usasse impropérios.

— Se é assim que você quer, farei. — tentei mais uma vez convencer o gato de que havia um pouco de educação em mim. — Se me permitir, senhor Gato, poderia eu pegar esta carta? Que inclusive é algo extremamente extraordinário, pois eu nunca vi um gato que transmitisse recados, muito menos um que exigisse educação da parte dos outros.

O animal mostrou os dentes, não como se estivesse com raiva, era mais como se estivesse sorrindo. Sorrindo não, gargalhando de mim.

Aproximei-me dele e dessa vez o bichano deixou-me pegar a missiva.

A letra era apressada e bonita, não havia muita coisa escrita. Porém o conteúdo dela, devo salientar, era um tanto quanto curioso. Dizia o seguinte: “Em seu sangue corre o legado dos Antigos. Honre cada gota que lhe corre nas veias. Use a sabedoria como seus antepassados usaram e acima de tudo, nunca deixe a luz virar trevas, nem o dia virar noite. O eclipse é a morte dos sacerdotes.”

Fiquei a meditar o que aquilo dizia. Quando levantei meus olhos, o gato tinha ido embora, como fazia sempre depois de implicar comigo.

Meu dia transcorreu sem nem mais um imprevisto, porém a carta continuava matutando em meus pensamentos. Como um alerta de que algo fabuloso me aconteceria.

Quando a noite chegou, aconteceu o fantástico que eu pressentira. Minhas pernas ganharam vida própria, eu não conseguia controlá-las, eu era simplesmente guiado por elas. Por vezes tentei impedi-las de não dar mais nenhum um passo, contudo o efeito desejado não surtiu.

Foi desta maneira que eu compreendi todo o significado daquela carta. Minhas pernas me levaram diante de um templo abandonado, com as paredes descascadas e precisando de uma reforma. Eu já havia visto esse templo em várias ocasiões e em todas elas eu me senti como se estivesse hipnotizado.

O transe foi quebrado quando o gato preto parou diante de mim. Só que no segundo seguinte, já não era o animal que estava mais ali, a criatura transformara-se em um homem moreno e alto.

— Ainda acha que não deve respeito aos bichos? — perguntou o estranho.

— Como isso é possível? — eu não conseguia assimilar o que meus olhos viam.

— Sua família faz parte dos Antigos, uma fraternidade que existe há milênios. Assim como eu, você também tem o Dom, o poder que nos permite manter o equilíbrio do mundo.

— Esse templo decrépito é o local de reunião de vocês? — interpelei com zombaria.

— Pobre criança. Tão tola. — o homem voltou a virar gato e rumou à entrada do templo.

Eu o segui e quando transpassei o portal, tudo ao meu redor se desfez e com grande velocidade se refez. O prédio era o mesmo, mas não era mais um monte de ruínas, estava belo e com grande esplendor. Até mesmo a paisagem pelo lado de fora mudou. O que era uma pequena chácara, tornara-se um enorme deserto, fui transportado pelo tempo-espaço.

— Que lugar é este?

— O Sagrado Coração do Egito. — Disse outro homem que eu não vi da onde surgiu. O gato que me acompanhara havia desaparecido, para variar.

— Quem é você? — perguntei, atônito.

— Serei seu guia, te ajudarei com o seu Dom.

— Isso é loucura. Um gato exigente com uma carta amarrada ao pescoço, ainda vai, mas um templo que se transforma e viaja para o Egito, aí já é demais.

— Você irá se acostumar, — disse o meu guia gentilmente.

Era muita coisa acontecendo de repente. Muita informação para reter. Mas, mesmo apesar do pequeno surto que eu estava tendo, senti-me estranhamente familiarizado com aquilo. Não era como se eu me sentisse em casa, era como se eu estivesse na casa de um parente muito próximo que há muito eu não via. Talvez demorasse para eu compreender o que minha família era ou o que faziam no passado. Eram muitas dúvidas para nenhuma resposta.

O meu guia saiu para o jardim e lá fora estava o gato, ele voltou a se transformar em homem e acenou para mim, com um sorriso zombeteiro no rosto.

Com certeza demoraria para eu me acostumar.