Sob a terra

“Que escuridão é essa?” “Onde estou?” “E por que não ouço minha voz?”

Foi assim que ela parecia acordar de um longo sono. Embora sentisse seus olhos bem abertos, nada via. Tentava se mover, mas era inútil. Gritava, mas não se ouvia. Tentou se controlar, respirou fundo, sentiu um cheiro forte de flor decomposta, de terra molhada e madeira. Pensou que ainda sonhava, procurou adormecer para acordar em outro contexto, fechou os olhos e tratou de pensar em coisas boas.

Lembrou-se de viagens e momentos importantes para ela, filhos pequenos, grandes, netos, marido, pais, irmãos. Era o que fazia sempre que tinha dificuldade para dormir. Mas dessa vez foi difícil, pois não podia se mover e aquele odor era muito forte. Tentou se lembrar da noite anterior. Era difícil, havia muitas imagens misturadas e desconectadas. Sentiu cheiro de éter, gosto de remédio amargo, picadas nas veias. Teve maior dificuldade em respirar.

Aos pouco foi se lembrando de uma agonia constante e crescente, do medo de morrer, da dificuldade em pedir socorro, das palavras de consolo que ouvia. Lembrou-se também do desejo de uma fé muito maior do que a sua, de se entregar para uma vida em outra dimensão, que fosse melhor e sem sofrimentos e arrependimentos.

Especulou que já estivesse em outro mundo, e que esses momentos antecederiam à luz do lugar que seria sua morada eterna. Sentiu medo de não ser merecedora desse lugar e tentou recapitular os males que porventura tenha provocado. Tudo parecia tão irrelevante, tão pequeno, e ela não queria pensar nisso. Simplesmente aguardou.

De repente lhe ocorreu que estivesse ali por engano; que, afinal, não era sua hora; dormia profundamente, mas não morria. Nesse momento, pareceu congelar – embora não sentisse calor ou frio – e pensou ter sido enterrada viva. “Como isso pode ter acontecido?” “Onde estavam todos, que não verificaram que eu ainda vivia?”

Se conseguisse, espernearia, gritaria, choraria. Mas uma calma incrível a dominou. Perguntou-se se era mesmo seu desejo continuar viva, e ouviu-se dizer que talvez não, queria mesmo experimentar outras coisas.

Teve todo o tempo do mundo para recapitular sua vida. Como foi feliz na infância! Viveu numa casa de vila com vários irmãos, pai, mãe e avós. Todos pareciam felizes. Na adolescência teve grandes amigas, alguns amores fugazes, grandes alegrias e várias decepções. Do casamento, eram mais fortes as últimas lembranças, de um relacionamento mais fraternal e menos romântico. Nenhuma grande paixão, tampouco uma grande desilusão. Dos filhos, lembrou-se da tarefa cumprida em criá-los e formá-los tal como manda o figurino. Para os netos, desejou boa sorte e concluiu que já não eram problema seu.

Apenas cogitou a possibilidade de voltar àquilo tudo e não encontrou razão maior do que sua curiosidade pelo desconhecido. E decidiu ficar em silêncio absoluto para que não percebessem que ainda vivia. Achou que mais cedo ou mais tarde chegaria sua vez de ser chamada.

Fechou os olhos já cerrados e aguardou feliz e pacientemente.

Anelê Volpe
Enviado por Anelê Volpe em 28/11/2020
Reeditado em 29/11/2020
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