O NASCIMENTO DA JUSTIÇA


     Era uma vez um pequeno reino, desses não muito diferente do seu, cheio de belezas esquecidas, sobrepostas por um caos de miséria moral e física.      Neste reino, onde a Justiça já não encontra morada, crianças dormem ao relento enquanto os excessos escravizam com mais ímpeto aqueles que deveriam bem governar.
     Foi no primeiro dia de inverno, exatamente quando a noite se faz mais longa, que uma sincera lágrima brotou no rosto da Deusa da Sabedoria, trazendo com ela um oceano de piedade. A singela gota escorreu por sua divina face tocando a terra fértil do jardim celeste, fazendo nascer, como nascem as flores, a jovem Deusa Temperança, virtude superior de rara beleza.
     — Não perca tempo, minha filha. Vá! Vá! Use o amor que tens pela justa medida e encontre a virtude suprema da Justiça. Faça-a despertar no coração deste triste reino.
     Obediente e amante da humanidade, a jovem Temperança soprou um desafio aos ouvidos dos poucos devotos que ainda oravam no templo de sua mãe. O desafio se fez ouvir aos quatro cantos: “para que voltassem a ser dignos do auxílio dos deuses, aquele reino deveria apresentar a ela, num prazo de três dias, um homem de coração justo”.
     Um após outro, homens das melhores cortes foram apresentados diante do templo, mas todos falharam em sua demonstração de justiça aos olhos invisíveis da divindade que tudo desvela.
     Na escura floresta daquele reinado, vivia um humilde lenhador que soube do desafio por seu filho, mas conhecedor dos seus próprios defeitos, tratou de cuidar de sua vida.
     O jovem filho, de saúde exuberante e sóbria beleza, sentia desde aquela misteriosa noite de inverno como se o seu coração quisesse explodir. Possuidor de uma visão aguçada, sabia que o pai era o único homem justo capaz de atender aos requisitos da Deusa. Ainda pequeno, quando sua mãe morreu e o pai viúvo assumiu o dever de educá-lo e protegê-lo, conheceu, no convívio com aquele homem austero, o verdadeiro espírito de justiça, que sabia dar a cada um aquilo que lhe correspondia, sem jamais ceder aos seus próprios interesses pessoais.
     Confiante, ao entardecer do 3° dia o jovem se dirigiu ao agora lotado templo do reino.
     — Meu pai. Ele é o homem justo a que procuram! — bradou na entrada do santuário com todo o vigor que carregava.
     Para a surpresa de todos, a própria Deusa da Temperança fez-se visível pela primeira vez, pairando sobre a multidão. O povo se curvou, mais por medo do que por devoção, pois cada um, na medida do peso de seus próprios pecados, via naquele rosto divino a figura terrível de seu algoz pessoal, pronto a julgá-los e executá-los impiedosamente.
     A Deusa encarou o filho do lenhador com interesse, pois era o único que se mantinha de pé. Puro que era de coração, aos olhos do jovem a Deusa era a própria encarnação da beleza e por isso sentiu que se morresse ali mesmo em sublime contemplação, consideraria ter tido uma vida plena.
     Percebendo o estupor inocente do jovem frente a sua beleza, a própria Deusa sentiu algo estranho e enrubesceu, mas se recompôs tomando a palavra sem que ninguém percebesse.
     — Que este homem que se diz justo de coração então se apresente.
     — O meu pai nada diz, nobre Deusa. Sua simplicidade o faz homem de poucas palavras. Insisti que viesse comigo, mas entende estar velho e não se acha digno de estar em sua presença
     — Além de justo é um pai humilde.
     — Dou testemunha da sua justiça. De resto, terás que ver por si mesma.
     — Mas o que te faz ter tanta certeza sobre teu pai.
     — Minha certeza vem dos meus olhos. Após a morte de minha mãe, ele cuidou de mim, e me educou sem nunca me faltar. Ao se relacionar com as pessoas e com a natureza, sempre o vi dar a cada um aquilo que lhe corresponde sem tomar nada para si que não lhe fosse devido.
     — Então vá buscar teu pai. Diga-lhe que eu o convoquei e que não se demore.
     O jovem saiu correndo pela floresta, carregando a imagem da Deusa em suas lembranças. No caminho, porém, percebeu algo diferente que atiçou todos os seus sentidos e o pôs em estado de alerta. Estava sendo observado por algo temível.
     — Sei que está aí! — disse o jovem em voz alta. — Sinto sua presença.      Apresente-se!
     A copa das mais altas árvores estremeceram e uma monstruosa serpente surgiu.
     — Onde vai com tanto ímpeto, rapaz – disse a serpente.
Assombrado, o jovem juntou forças e respondeu com franqueza: – Estou a serviço da Temperança. Vou em busca de meu pai. O homem mais justo deste reino.
     A serpente aproximou-se ainda mais e o rapaz, embora firme, não disfarçou o medo.
     — Gosto de homens justos – sibilou a serpente –. São para mim muito apetitosos. Já os covardes nem tanto. Por que não tentou fugir, quando teve a chance?
     — Porque este é o único caminho que leva ao meu Pai.
     A força daquelas palavras traspassou a serpente como uma lança.      Perceberá que talvez não estivesse diante de uma presa comum e por prudência decidiu aplacar sua fome sem demora. Antes, porém, de completar o impulso para o ataque final, foi tomada de grande estupor. Um grito de rapina se vez ouvir por toda floresta ao mesmo tempo em que uma gigantesca sombra se projetou sobre o jovem. Soube então, a serpente, que a Águia Solar, sua única predadora, concedera sua proteção ao rapaz.
     — Vou deixar-te passar porque o cheiro do seu medo me dá náuseas – dissimulou a serpente enquanto iniciava sua fuga.
     Antes que pudesse olhar para cima a sombra desapareceu e o jovem se viu sozinho com o coração acelerado. Decidido, tomou folego e prosseguiu.      Só depois refletiria como serpentes, águias gigantes e uma Deusa belíssima entraram tão rápido em sua vida.
     Agora, a meio caminho de casa, próximo a um vilarejo, foi aplacado por uma fome e um cansaço sem fim. Uma senhora aproximou-se dele com um cesto de roupa muito pesado.
     — Ajude essa pobre senhora a carregar esse fardo.
     Cansado, sentiu o impulso de negar, pois ainda tinha outra uma missão a cumprir. Contudo, aprendera com o pai a não ignorar o menor dos deveres, não importando as circunstancias. Tomou a pesada cesta e seguiu. Em recompensa a senhora ofereceu-lhe uma mesa farta para compartilhar com sua família. Pensou em ficar por ali, mas o dever lhe chamava mais alto. Tomou um pedaço de pão e guardou para que o pai o repartisse quando chegasse em casa.
     Aproximando-se do pequeno chalé, estranhou o silêncio do machado. O som das batidas do ofício de seu pai era como uma melodia que o acalmava e o fazia sentir-se em casa. A porta do chalé estava entreaberta. Quando pôde finalmente olhar para dentro encontrou seu pai no chão. Diante dele estava a própria Temperança.
     — Pai! Pai!! – dizia o jovem, sacudindo o corpo inerte na esperança de despertá-lo.
     — Mal pude conhecê-lo — disse a Deusa — Senti que não podia esperar e vim vê-lo pessoalmente. Quando ele me viu, sorriu com os olhos, caiu de joelhos e morreu. Antes, porém, deixou-te um recado: — diga a ele que mantenha a fidelidade.
     Sobre o corpo do pai, via-se um filho em sincero luto. Alguns minutos depois juntou forças para falar: — Morreu o único homem justo que conheci, Deusa filha. Nada mais tenho a lhe oferecer.
     A Deusa sentiu a dor daquele jovem como se os dois fossem a mesma pessoa e isso a apavorou. Era a segunda vez que ela sentia algo diferente em relação ao jovem. Fechou os olhos para refletir, mas antes que tivesse tempo sua mãe, a Sabedoria, apareceu em todo seu esplendor.
     — Perdoe-me, minha mãe, — disse a Temperança — não fui capaz de encontrar a Justiça. O pai deste jovem era minha última esperança.
     — Vejamos — disse a Sabedoria com sobriedade.
     — Levante-se, filho de lenhador. Deixe-me te olhar melhor. Sim. É o que me parece. Mas preciso de mais uma certeza. Sei que está de luto, mas tenho uma última missão para você. És um exímio caçador. Entre mais fundo nessa floresta escura e traga para mim o corpo do Macaco Rei. Se assim o fizer, ressuscitarei teu pai e serás o herói que salvará este reino.
     O jovem demonstrou perturbação. — Por que me torturas assim, grande Deusa? Sabes que o Macaco Rei é o animal mais sagrado dessa floresta.      Como poderia matá-lo?
     — Nem para ressuscitar teu pai?
     O jovem pareceu confuso. Por um segundo pensou que talvez pudesse abrir uma exceção, afinal, era o desejo da própria Deusa. Mas a dúvida logo se dissipou. Agora compreendia em seu coração o recado do seu pai. Olhou nos olhos da Sabedoria e disse a única resposta que lhe era possível:
     — Não derramarei o sangue de um animal sagrado nem para salvar o meu pai. Eis a minha maneira de honrá-lo.
     — E honra a mim também — sorriu a Deusa. Acostumada que era a fazer milagres, acabara de ver o maior de todos acontecer sem a sua intervenção.      Um adolescente morrera na sua frente e renascera não apenas como homem; mas como um verdadeiro ser humano.
     — Veja, minha filha. Enquanto procuravas a Justiça, esbarraste no teu próprio destino. Este jovem é a encarnação da Coragem e da Fortaleza.      Diga-me. O que seu temperado coração está lhe dizendo?
Temperança sorriu e disse: — Estava confusa, mãe, mas sua sabedoria retirou toda a névoa. Amo esse jovem com tanta força que nem o universo inteiro caberia em meu coração.
Emocionado e surpreso, a intuição do jovem reconhecia a verdade, mas sua mente, ainda duvidava. — Estás enganada, Deusa Mãe. Meu pai era um homem justo e virtuoso. Eu nada sei.
     — Tens razão, meu jovem. Sabes pouco. Mas ao pouco que sabes és extremamente fiel, não abandonando teus princípios nem diante da dor ou do prazer.
     — Insisto. Estás enganada. Não posso ser corajoso. Hoje mesmo tive muito medo.
     — Teve medo e ainda assim agiu guiado pelo coração. Não é exatamente isso a coragem? Alegra-te, rapaz. Não ressuscitarei teu pai, pois a Alma deste educador grandioso já não cabe neste mundo. Ele viverá em espírito em eterna abundância a serviço do Divino. Quanto a você, se ainda desejas salvar este reino, deverás então casar-te com minha filha e dar cumprimento à profecia: “Sob a benção da Sabedoria, Temperança e Coragem se unirão para dar nascimento à Justiça. Ela, então, governará este reino e um ciclo luminoso surgirá”.
     Diante o olhar da Sabedoria, os dois jovens se contemplaram num êxtase de um amor imortal.
     Foi então que ao raiar do primeiro dia da primavera, um casamento celeste foi celebrado, não em qualquer lugar, mas num pequeno reino, destes não muito diferente do seu.