O Vazio
Tudo se desfez. Seu lar. Seus amores. Sua vida. Seu mundo. O vazio agraciou todas as coisas, sendo elas, reduzidas ao nada. Mas ela, somente ela, restou. O vazio a repudiava. Ele não a dava o direito da não existência. Ela estava sozinha. Restando somente ela e o nada, e mesmo esse nada, ainda a neglicenciava.
E então ela vagou.
Um ser semelhante a ela, avistou.
Sua pelagem negra, de início, a assustou.
Mas ainda assim, ela continuou.
Seus movimentos, em direção a ele, quase vacilaram mas ele era o único que restou.
Ao redor dele, inúmeras telas se dispunham a flutuar; ela não sabia como aquilo estava acontecendo. “Isso é magia?” As palavras atrevidas saíram de sua boca, quase sendo inaudíveis.
-Magia? O que seria magia pra você? - Uma voz grave saiu do ser, que estava postado à frente de uma tela.
Aquilo a pegou de surpresa, mesmo de tão longe ele a havia notado. Sem dar sua resposta, ela parou de caminhar até ele e contemplou um pequeno quadro. Esse quadro flutuava por dentre outros que, sendo maiores que ele, desviavam de sua atenção.
-Não toque nisso. - Em uma fração de segundos, o ser estava ao lado dela. Ele retirou aquele pequeno quadro dali e o implodiu. - Foi um erro dele ter feito tal quadro. - Disse aquele ser, com um ar distante.
Ela evitava olhar para aquele ser. Seus olhos dourados a desconcertaram e abaixo da pelagem negra se via um homem; embora não pudesse o chamá-lo assim. Ela sentia que conhecia tal quadro.
Em suas longínquas lembranças, sua tia havia lhe apresentado: uma linda obra de Monet, chamada Nenúfares. Isso a encantou e, por impulso, ela embarcou numa tentativa falha de se tornar artista. Mas aquilo foi erro. Ela se recusou a pensar naquilo.
-O que é você? - De súbito, ela perguntou. Aquele ser estremeceu e pigarreou antes de responder.
-Não se espante. Posso parecer estranho, mas já vi muitos de vocês antes. - Não era uma resposta que ela esperava, mas ele prosseguiu. - Não planejo fazer mistérios por aqui. Todas as artes que teço, em meus aposentos, refletem o fim de seu mundo. - Ele apontou para as inúmeras telas à sua volta. - Eu já vaguei pelo seu mundo. - O tom de sua voz abaixou.
-Você ainda não respondeu o que lhe perguntei. - Sua surpresa foi, subitamente, substituída por uma expressão séria. Seus olhos o encararam, enquanto aquele ser divagava em seus pensamentos.
-Eu sou parte do nada. E por isso mesmo, sou neglicenciado por ele. - Ele fez uma pausa e a encarou. - Talvez você também seja, huh? É a primeira vez que um humano pisa por aqui.
Ela continuou a encará-lo; ela não era cética como os ateus, mas sua crença estava sendo desafiada a todo momento naquele lugar. Ao seu redor, ela percebeu: diversas pinturas lúgubres e trágicas - indubitavelmente lindas, embora ela se esforçasse para não admitir-, a traziam para seu torpor. Em um dos quadros, se via, tal ser, pintado fracamente enquanto destilava caos pelo mundo.
-Era você, não é? - Com um riso satírico, ela desviou os olhos para ele. Em resposta, ele meneou com a cabeça.
O ser que havia levado seu mundo para desgraça, estava a seu lado, enquanto a encarava seriamente com um olhar penoso.
-Não me olhe assim. - Ela tornou a olhar para as pinturas. - Na verdade, acho que você fez bem em destruí-lo.
O ser pensou em falar algo. O olhar dela era tão inexpressivo quanto o de uma coruja e, com solenidade, ele se afastou dela.
“Talvez haja um motivo para ela estar aqui.” ele pensou na medida em que seus passos iam cruzando a porta.
O ar era rarefeito, mesmo para ele era difícil respirar. Ele ergueu suas asas e alçou voo. Embaixo dele, tundras se estendiam pelo térreo. Ele havia a deixado sozinha. “Talvez ela precise de tempo para pensar.”.
Já era tarde, ele tinha que se apressar. As bombas escorriam pelos ares e dizimavam os arredores. Aquelas criaturas eram insistentes. Tais criaturas surgiram no momento do fim de seu mundo e, desde então, ele resguarda seu lar e detêm-os.
As pequenas gramíneas eram afugentadas e queimadas por eles, ele se ergueu rapidamente e perfurou uma daquelas criaturas com suas garras. Restavam mais cinco. Com seu toque rápido, a outra criatura implodiu, não restando nenhuma migalha de seu corpo. As outras fugiram e, sendo elas tão rápidas quanto a luz, tornava difícil a perseguição atrás delas.
Com uma aparente preocupação, ele retornou para seu lar. A menina estava dormindo em sua cama, os cabelos esvoaçando com o ar que saía da janela. Ele se aproximou dela e a cobriu.
Novamente, pegando seu cavalete, tornou a pintar. Em suas memórias tais lembranças estavam frescas: o fim daquele mundo, seja em chamas, em névoa ou gelo, o inspirava. Ele, sendo tomado pelo torpor, pintava rapidamente as imagens que passavam pela sua cabeça.
A menina se levantou e, com os olhos entreabertos, vislumbrou a pintura daquele ser. Uma pintura que não remotava a um fim, mas sim a um começo. Ele tecia, calmamente, cada pincelada daquele nascimento. Ao se aproximar dele, lágrimas eram visíveis. Aquilo a surpreendeu.
Ele terminou sua pintura e, ao se virar para o lado, viu os olhos dela fixos na pequena tela. Ele não havia percebido a presença dela antes. Permanecendo minutos sem se falarem, ele se levantou. O silêncio, tão costumeiro e sufocante para ele, era uma espécie de agradecimento por ela estar ali.
Novamente, ele saiu mundo afora. Ela, sendo deixada sozinha, se indagava ainda mais de seus pesares. Não sendo contaminada pelas dúvidas, aceitou viver ali. Mas algo estranho ocorria: em apenas um dia, uma fraqueza tomou posse de seu corpo como nunca antes em vida. “De qualquer forma, eu já deveria estar morta.”, e nisso ela se tornou indiferente ao destino de que tais sintomas poderiam levá-la.
Novamente aquele ser retornou. Sua respiração estava ofegante e ela não se conteve em perguntar.
-O que você faz lá fora?
-Evito a decadência deste mundo, embora soe irônico. - Mesmo a respondendo, ela continuava com curiosidade no olhar. - Lá fora, não há lugar para ti. Mas posso lhe afirmar: lá não é tão belo quanto seu mundo.
-Então é por isso que ainda não o destruiu? - Com um tom sarcástico, ela o questionou.
Ele apenas deu de ombros e retornou a pincelar.
A noite caía vagarosamente, ela imaginava o que estava além dali; impedindo seus pensamentos de permanecerem apenas para si.
-O que você acha da morte? - Com um longa pausa, ele respondeu.
-Apenas invejo vocês, humanos, por saberem de seu fim. A morte, para mim, é apenas um retorno ao nada. Ao vazio. No momento que ele a renega, você se torna incapaz de morrer. -Disse ele, com um olhar taciturno.
-Sabe, talvez seja o contrário. -Disse ela, sem continuar o pensamento.
-O que quer dizer?
-Digo, talvez ele não te renegue como achas. Quem sabe o que há no final? Mesmo você, uma criatura tão estranha, não tem certeza. -Disse ela, com uma voz baixa. - Você não é tão diferente de nós humanos.
Aquilo o estremeceu. Como ela poderia dizer aquilo? Sendo ele, um ser tão poderoso como era, sentiu-se ofendido. Mas depois de um tempo, ele também acreditou naquilo. Suas frustrações, sua inveja, seus desejos… tudo era tão similar a ele e, ao mesmo tempo, tão diferente. Tais discrepâncias eram tão superficiais que o tornavam iguais em essência.
A noite caiu por completo, dando lugar ao sol. Na tundra afora, ele saiu. O dia estava estranho; “talvez seja pela conversa de ontem”, pensou. Seu corpo estava mais pesado que o habitual, tornando difícil a locomoção e o voo. Ele se feriu bruscamente, machucando sua pata direita e ferindo seu rosto.
Ao retornar para casa, a expressão dela, quase inexpressiva, tomou-se pela preocupação. Ela cuidou de seus ferimentos e, com uma pequena repreensão, disse a ele para não voltar para lá. Mas de nada adiantou.
Mais uma vez, alçando voo, ele percebeu que tudo havia ficado pior. A secura, a queimação, tudo se inundava em fuligem e fumaça. Ele se recusava a perder seu novo lar. Com uma fúria latente, ele dizimou as vinte criaturas que voavam em seus dispositivos. Ele se machucou a ponto de não retornar ao lar.
Enquanto a noite se aprofundava, seu ser clamava pelo vazio. Pela morte. Mas o vazio, novamente, o rejeitou. Ainda havia algo que o mantinha ali além de sua inspiração. Sua afeição por ela, de forma quase pueril, ele se deu percebeu. Um sentimento jamais sentido antes; ele não estava mais sozinho.
A noite foi longa, sendo transbordada em palavras não ditas e em lágrimas derramadas.
Quando retornou para casa, se encontrou na solidão novamente. Ela não estava mais lá.
Depois de infinitos dias, infinitas dores; seu estado de torpor não era mais suficiente. Sua inspiração estava se esgotando, como da última vez. Ele estava enlouquecendo, com a sede de destruição crescendo cada vez mais em seu ser.
Quando, pela última vez, impediu o bombardeamento de seu mundo, ele decidiu se entregar.
Chegando ao ninho daquelas criaturas, descontou sua sede, seu descontentamento e sua tristeza nas vidas inocentes que se manifestavam ali. Não restando nada, retornou ao seu lar sem conseguir voar. Depois de quase um ano, se viu novamente em sua casa. Nada havia mudado. Exceto uma coisa.
A presença dela havia retornado.
Um monstro se erguia perante a mim. Com suas longas asas negras e seus pés feridos de tanto andar, ele se debatia enquanto era tomado por um sentimento desconhecido. Ele tossia e, cada vez mais, sua respiração se enfraquecia. Tentei ajudá-lo mas eu era apenas uma miragem de sua imaginação. Eu não existia. Eu não era real. Não poderia eu, ultrapassar a barreira que me desconectava do mundo dele. Eu era apenas uma ideia. Uma concepção. Aquilo me dilacerava, embora não houvesse nada para me dilacerar. Ele sorriu para mim em meio sua dor, e seu corpo foi se desfazendo em fagulhas. Mas quem, na verdade, se desfez fui eu.
Eu o esperei por tanto tempo, embora não houvesse mais ele em minhas memórias.
O que restava a mim, agora, era simplesmente retornar ao vazio.
“Finalmente.”