A DERROCADA DE UM PÉ ESQUERDO

* Por Herick Limoni

Eles nasceram aos 27 dias, em um florido e quente mês de outubro. Assim como quase todos os recém-nascidos, eram lindos, capazes de enternecer o mais duro dos corações. Eram perfeitos, com todas as suas partes intactas e delicadamente uniformes. Já nos primeiros meses de vida provocavam nas pessoas aquela vontade quase irresistível de mordê-los, em razão da forma arredondada e macia que passaram a ter. Eram de salivar a boca!

Como é muito comum acontecer com gêmeos, eram inseparáveis. Onde estava um, o outro estava junto. Não poderia ser diferente. Ambos caminhavam na mesma direção e assim seria para sempre. O laço pélvico que os unia nunca seria rompido. Não brigavam nem mesmo quando um deles, inadvertidamente, sujava-se em um excremento canino, o que provocava gargalhadas no outro que se mantinha, então naquela ocasião, ainda limpo e livre dos odores fecais. Só havia uma coisa que os deixava tristes: quando um deles, por motivo de fratura ou lesão, encontrava-se prejudicado em sua locomoção, o que limitava, necessariamente, a vida do outro. Fora isso, era só alegria.

Os anos foram passando e eles foram crescendo. Quando crianças seu número não passava dos 30, mas agora, na adolescência, já calçavam 39 e começavam a sentir o peso do corpo, cuja alimentação, baseada em fartas e generosas porções de sanduíches, pizzas e outras guloseimas, fazia-os ganhar quilos e mais quilos, e toda essa carga, resultado de uma vida desregrada, tinha-os como sustentáculo quando estavam em pé. A vida começava a deixar de ser um mar de rosas.

Apesar disso, se havia algo que lhes agradava imensamente era quando, já na idade adulta, tinham que dirigir. Em razão do peso que crescia vertiginosamente quase não mais saiam de casa à pé. Não fosse o carro, talvez tivessem que se contentar com uma vida de poucas e penosas idas ao banheiro e à cozinha. Mas ali, no comando dos pedais, eles eram os protagonistas. Ainda que o pé direito exercesse algumas funções a mais, ambos sentiam-se vivos, importantes, e porque não dizer, essenciais. Não havia disputas. Trabalhavam juntos e magistralmente conduziam aquela engenhosa máquina pelas ruas da cidade. Tinham imenso orgulho do que faziam. Apesar de não verem nada, podiam sentir a brisa que entrava pelas janelas e aquilo lhes era como um fôlego de vida. Foram muitos e variados modelos de veículos que estiveram sob o domínio daquela dupla cuja sintonia podia ser comparada à afinidade entre Bebeto e Romário no ataque da seleção canarinho na copa de 1994. Tudo ia muito bem, até que algo mudou tudo.

Em uma manhã chuvosa, em um mês de março, o corpo que comandava aqueles pés, já cansado das dificuldades para entrar e dirigir veículos pequenos, em razão do peso e do tamanho que alcançara, decidiu, mais uma vez, que era hora de trocar de carro novamente. Seus pés, que sabiam de sua intenção, ansiavam pela oportunidade de conduzir outro veículo de um modelo diferente dos quais já estavam acostumados. Estavam como criança antes de abrir uma caixa de presente no dia do aniversário, tamanha era a euforia. Apesar de já terem passado por aquela situação em diversas ocasiões, sempre lhes era como uma primeira vez. Negócio fechado, dirigiram-se para o momento tão solene, no qual, enfim, ajudariam a tirar outro automóvel da inércia. Porém, tão logo se ajeitaram no seu confortável interior, descobriram algo que iria mudar para sempre a relação entre ambos: o carro era automático!

Pelo ineditismo da situação não lhes foi possível perceber de imediato o tamanho do problema. Já no caminho para casa e sem perceber o que estava ocorrendo, o pé esquerdo tentou, por várias vezes, manter-se ativo, e isso resultou em várias freadas bruscas ao longo do trajeto nos momentos em que acionava o freio pensando estar pisando na embreagem, como sempre fazia. Essa situação perdurou ainda por alguns dias, até que, finalmente, conformou-se com sua nova condição de abandono. Foi uma tristeza geral. Seu irmão gêmeo até tentou sugerir um revezamento, mas para quem nunca havia utilizado o pedal do acelerador, a coisa poderia resultar em tragédia. Melhor não, pensou. Preferiu agarrar-se à esperança de que logo logo aquele corpo se cansaria, e retornaria para um veículo manual. Passaram-se dias, meses e anos, e isso não ocorreu.

Cansado da vida monótona de manter-se inativo nas horas que mais lhe apraziam, não demorou a cair em uma profunda depressão. Nada mais lhe importava, nada mais lhe alegrava. Nem mesmo as cócegas que por vezes ganhava lhe faziam rir. Se pudesse, encheria a cara na bebida para esquecer, ainda que momentaneamente, da vida desgraçada que agora levava. Mas nem pra isso o corpo que os comandava prestava, pois não pensava em outra coisa a não ser comer. A essa altura, o pé tinha a forma quase idêntica a de uma pata de elefante. A frustração pelo ostracismo a que foi submetido era tão grande que entregou os pontos. Deixou-se infestar pelas frieiras, que lhe comiam as carnes e lhe adicionavam à terrível aparência um odor fétido. Suas unhas estavam enormes e sujas. Os bichos-de-pé procriavam em velocidade supersônica, em virtude do terreno fértil que encontraram.

Mas o pior ainda estava por vir. Não demorou muito e umas manchas escuras surgiram em suas extremidades. Era o diabetes que atacava. Começou perdendo um dedo, dois, cinco. Perdeu toda a sua metade anterior. Por mais que tentasse, não encontrava razões para viver. Até que, numa triste manhã de terça-feira, em um mês de agosto, seu sofrimento chegou ao fim, ao ser amputado em uma cirurgia que durou pouco mais de uma hora. Havia sido, enfim, vencido pela tecnologia.

* Mestre e bacharel em Administração de Empresas

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