Querido amigo
Querido amigo
Caminhando com leveza pelo bosque, seu coração pulsava mais forte ao lado dela, talvez ela fosse diferente das demais, talvez o entendesse, então movido pela força do seu coração, ele expõe sua fragilidade;
— Quando as coisas não estão indo bem, eu me fecho para o mundo em meu próprio casulo, tudo fica escuro aqui dentro e não há ninguém que pode ou queira me ajudar.
Ela apenas ouviu o som das minhas palavras e acenou com a cabeça, não disse uma palavra, talvez não tivesse palavras para dizer ou não quisesse, então eu soube que ela era como todas as outras, e todas sempre vão embora.
“Por fim, colocou-se a certeza que seu coração batia mais forte que o dela”. (Amorim, Charles).
Depois disso dei um tempo para garotas, passei a encontrar meu amigo Paulo com mais frequência, ele era conhecido como poeta do “campus” embora não quisesse usar esse título, qualquer um poderia ser poeta para ele, ele apenas falava de assuntos do coração e via o mundo com simplicidade. Enquanto alguns chamavam de poeta, outros o ignoravam, diziam que ele era um completo louco, achando-se um poeta, e até brincavam entre si, chamando-se de poetas malucos. Eu não me importava com isso e continuava caminhando com o Paulo, o que ele falava, o amor que ele sentia me dava vontade de ser como ele, um poeta, mas tudo que eu pensava ou dizia outro poeta já tinha pensado e falado, talvez minha vocação não fosse para ser poeta e porque devemos ter uma vocação para alguma coisa, não podemos simplesmente assustar os pombos e abraçar as árvores?!
Paulo era o cara mais incrível que conhecia, andando com ele dava para sentir o cheiro da natureza, o bater das asas dos pássaros, e até mesmo sentir o orvalho da terra, detalhes que passam desapercebidos, mas não para um poeta.
Uma vez eu estava sentando no bosque com Paulo, quando lhe perguntei; — Como pode amar o amor sem amar alguém? Ele olhou para mim e calmamente respondeu; — Como posso amar alguém sem amar o amor?! Essa resposta tocou-me profundamente, adentrou em meus pensamentos e perfurou os conceitos padronizados de amor em meu coração, quando você tem uma experiência assim; as coisas passam a fazer sentido para você.
Outra vez, no meio do semestre nos encontramos na biblioteca, era comum vê-lo com pilhas de livros sobre a mesa e aquele olhar distante como se estivesse encenando uma peça de Shakespeare, então fui até o seu encontro e lhe perguntei; — Por que tantos livros se está lendo apenas um? Às vezes penso que sou como um livro que ninguém se interessa em ler, Paulo pausou sua leitura, levantou suas vistas até o encontro dos meus olhos e disse; — Um bom livro é o primeiro a ser lido, porém, esquecemos que os melhores podem estar abaixo dos nossos olhos entre os títulos.
Suas palavras sempre me faziam ver o mundo com um novo olhar, andem com os poetas, ouçam o que eles têm a dizer.
Após alguns dias, estava aproximando do fim do semestre, e não tinha mais visto Paulo, fui até os bosques do “campus”, mas não vi os detalhes de sua alma poética, fui à biblioteca, mas os livros estavam apenas enfileirados e limpos, sem marcas aparentes, o que poderia ter acontecido com ele?! Me perguntava constantemente, até que um dia fui até a árvore que costumava abraçar, e lá encontrei uma carta entre os galhos, só poderia ser de Paulo, subi rapidamente e alcancei o galho, após segurar a carta em mãos, iniciei a leitura;
“Querido amigo”
“O mundo é um lugar frio e insensível para os poetas, não se aventures em tal caminho que leva somente a dor, o tempo que dedicaste a mim me fizeste muito bem, mas acredito que eu lhe fizeste mal com minha sensibilidade ou o que chamavam de loucura poética, as flores que peguei me feriram com seus espinhos, as árvores que abracei não me acalentaram, temo que perdi algo que não sei, algo que esvaziou, mas não se preocupe, me encontro livre caminhando nas avenidas onde desconhecem a dor, estou flutuando no ar me sentindo parte de algo, consigo sentir o bater de asas de um beija-flor, deixei essa carta apenas para lhe dizer que o mundo real não é para os poetas, vivi minha vida achando fazer parte de algo, quando, na verdade, nunca fiz parte de nada, não sei, mas estou escrevendo com um único desejo, seja seu próprio livro e também sua leitura favorita, não se importe com os títulos mais conhecidos ou lidos, a sua arte está nas palavras que cercam a sua alma, na grafia do seu coração. Talvez contarão a minha história ou se lembrarão apenas de um louco poético, de onde eu estou, os vejo em suas risadas vazias e abraços falsos, status e títulos enfileirados, não poderia suportar tal. Fiz a minha versão de amor, me amei e amei o tempo que estive escrevendo esta carta, e amarei o tempo em que não poderei mais escrever. Não quero que pense em mim como um covarde, nem mesmo quero que pense em mim, não mereço ser objeto de seu pensamento, quiçá, de ninguém. Estou alçando voo junto aos pássaros cantando odes à liberdade.
Eu me fiz de poesia para ser declamado
Me transformei música para ser tocado
Até cantei para assim ser escutado,
Então decidi ser saudade
Para talvez ser lembrado.”
- Paulo, o poeta louco.
Depois de ler essas palavras, lágrimas escorreram dos meus olhos e uma torrente de tristeza da minha alma, me sentia imóvel no meio do tempo, essas palavras tiraram a terra dos meus pés, sufocaram o ar do meu corpo, era uma carta de despedida, os poetas não deveriam se despedir, deveriam ser eternos.
Depois desse dia, minha percepção sobre tudo mudou e descobri que a partida de Paulo foi o seu melhor poema, pois agora ele era o assunto do “campus”, onde eu fosse, as pessoas me perguntavam sobre ele, os professores me paravam, até estudantes de outros cursos me procuravam para saber o motivo, sua partida trouxe uma intensa comoção a todos, e agora eu me via em seu lugar, abraçando árvores, ouvindo o bater de asas dos pássaros e declamando poemas, me tornei um poeta.
Com o passar dos dias, aquelas pessoas que me paravam e perguntavam sobre ele diminuíram, na verdade, eu ainda as via, porém, elas nem sequer lembravam de mim, os professores estavam mais preocupados com assuntos curriculares do que assuntos de alma, a poesia em mim, foi se elevando, passei a ter os olhos de Paulo, ouvia aquelas risadas vazias e abraços falsos, entre “status” e títulos, não me encontrava ali também, comecei a ir mais à biblioteca do que de costume, constantemente conversava com outros poetas nos livros que eu lia, as outras pessoas não me entendiam, mas eu posso compreendê-las, é difícil enxergar o mundo além da bolha sistemática, passei a ser chamado como o aprendiz do poeta louco, o título me pareceu engraçado e tenho certeza de que onde quer que Paulo estivesse, ele estava rindo também.
Terminei o semestre, me formei na faculdade, fiz poucos amigos, escrevi alguns livros, algumas pessoas foram ao lançamento e apenas poucos livros foram vendidos, não fiquei triste com isso e vi que agora aquelas palavras que Paulo escreveu em sua carta faziam sentido, o mundo é um lugar frio para poetas e o reconhecimento por um curto período só vem com a partida.
Os anos se passaram, conheci uma garota que no primeiro dia a pedi em namoro, para minha surpresa ela aceitou, acho ela tinha um pouco da minha loucura também, ela era apaixonada por arte, não pintava, mas conhecia a história de cada pintor famoso; Van Gogh, Monet, Rembrandt e Picasso eram os seus favoritos, e eu amava esse entusiasmo nela.Comecei a lecionar filosofia na faculdade que me formei, o “campus” mudou, novas árvores foram plantadas, bancos mudaram, iluminação foi ajustada, era um lugar diferente, mas sempre que eu estava lá, me lembrava do meu amigo Paulo e sua alma poética de décadas atrás, acredito que ainda podia sentir sua energia naquelas árvores brilhantes e no orvalho entre elas, saudades. Chegando em (casa) bastante cansado, minha filha mais nova veio me abraçando e dizendo; — Papai, papai, leia esta carta para mim, acho que um dia quero ser poeta como você.
Ainda de joelhos e emocionado com essas palavras, peguei a carta da mão dela e abri, quando li estava escrito; “Querido amigo”.
Algumas lembranças jamais partem do nosso coração.
- Paulo, O Poeta Louco
Por: Márcio André Silva Garcia