Das Armas e Artes
O violeiro será o primeiro a morrer amanhã. Talvez, por isto, concederam-lhe o último prazer de manter sua viola.
Creio que aos próprios carcereiros aprazem o dedilhar e a cantoria do velho. Mas, desta vez, suas canções são tristes.
Nossas histórias se entrelaçam, datam de longínquos anos, duma época tão calma e ultrapassada que a memória dela quase se ofusca e se mistura com outras recordações minhas e histórias fantasiosas que ouvi pelo mundo afora.
Eu era criança quando o violeiro cego surgiu na minha vila, quase um mendicante. Comia o que lhe davam, dormia onde o abrigavam, caso carecesse de ambos, arranjava uma cabana sob o feno das alimárias e dividia a ração dos porcos. Isto apenas no começo, quando não o conhecíamos, pois, aos poucos, a voz rouca e os dedos hábeis nos cativaram. Na praça, chapéu no chão, viola na mão e na boca uma canção, o violeiro cantava os cantos da nossa raça, narrava os épicos do nosso povo. E não era apenas mais mendigo; era uma honra recebê-lo em casa e ouvir sua sabedoria em música; o suserano queria tê-lo à mesa, custeando-lhe luxo e banquetes.
Impressionava-me que um cego pudesse cantar tantas coisas que não havia visto, falar daquilo que não sabia. Meu pai reputou-lhe como um mentiroso:
— Não creias nestas baboseiras. O violeiro é apenas um bufão.
Mas o violeiro me encantava, e comumente eu negligenciava minhas tarefas domésticas para ficar ao pé do músico, apreciando suas histórias.
Uma em especial eu aprendi de cor, e apanhei muito por causa dela quando meu pai me flagrava recitando-a, um graveto a tiracolo simulando uma viola.
Se não me falha a memória, o primeiro verso era mais ou menos assim:
Alatiel trazia no peito as efígies
Do leão, da águia e do touro sem doma.
Na lâmina da espada a fama assoma:
“Aço, da Morte inglória me proteges.”
No entanto, para incompreensão de todos os vilões, o músico cego foi expulso pelo suserano, fato que apenas serviu para corroborar as afirmações de meu pai, de que o violeiro não passava dum patife.
Isto não diminuiu meu fascínio por aquela figura, tanto que tomei a resolução de seguir, se possível, uma das duas carreiras no futuro: cavaleiro, e cruzar o mundo como Alatiel, matando dragões e assediando bastiões; ou violeiro, vagamundeando a contar histórias.
Papai jamais permitiria que me tornasse músico, por isto, no intuito de me libertar de tais estapafúrdias elucubrações, ele me enviou para ser treinado por um aristocrata. Como pajem, alimentei as montarias do cavaleiro, carregava suas armas, polia sua armadura, acompanhando-o em torneios.
E foi num destes eventos que me encontrei, pela segunda vez, com o violeiro. Disputando a atenção, entre muitos outros artistas, saltimbancos, flautistas e trovadores, poucos se compadeciam do violeiro cego. Apenas eu lhe prestava alguma reverência.
Uma atroz guerra assolou, então, nossos territórios. Meu senhor, conclamado pelo suserano, se pôs a seu serviço e fomos nós, unidos a outros nobres e campesinos, para o campo de batalha. Atrás das defesas, eu e demais rapazolas nos apressávamos para munir os arqueiros de frechas e os cavaleiros de armas.
Vencemos as batalhas, mas oprimidos por devastadoras baixas.
Ao retornar ao meu vilarejo, desgraça. Toda a vila havia sido devastada pela carnificina, meus pais mortos, meus irmãos se dispersaram pelo mundo. Sem rumo, fugi para outras vilas e burgos. Roubei, enganei, mendiguei, tudo para não morrer de fome. Só não matei porque não tive oportunidade nem necessidade, mas tudo de baixo e vil realizei durante esta minha queda na vida.
Numa destas peregrinações, avistei o violeiro num mercado, cantando por miúdas moedas. Aproximei-me dele e me apresentei, relatando-o a alegria de ver um rosto conhecido após tanta desdita. O violeiro dividiu comigo um pão endurecido e me levou até o celeiro onde lhe permitiram dormir.
Despedi-me com tristeza do músico e retornei à estrada.
Pouco tempo depois, uni-me a um grupo de mercenários. Aprendi o manejo da espada, da lança e do arco. Ensinaram-me a montar e a me defender com escudo.
Quando não assaltávamos mercadores nas estradas, lutávamos guerras alheias por preço justo. Se víamos que estávamos em desvantagem, abandonávamos o campo de guerra. Porém, se percebêssemos que tínhamos a vantagem, permanecíamos até o desfecho, para partilharmos dos despojos. Não lutávamos por honra, glória, ou até a morte, fazíamo-lo por dinheiro, e dinheiro obtivemos.
Na época devida, comprei um título nobiliário e uma quinta. Já não era mais um rapaz, desposei uma virgem e aguardava meu primogênito, quando uma nova guerra se instaurou.
Cansado de tamanha carnificina, abstive-me de integrá-la, apesar de sucessivas e insistentes convocações do suserano. Mas um viajante me trouxe a alarmante notícia de que os exércitos inimigos estavam a poucos dias da minha propriedade. Temendo que os meus caros tivessem o mesmo fim de meus pais e irmãos, reuni meus servos, minhas alimárias e equipamento de guerra, e engrossei o exército do meu senhor.
As batalhas foram encarniçadas e, no decorrer de algumas semanas, recuamos inúmeras vezes, buscando abrigo em bastiões, que caíram diante do exército adversário.
Por fim, abrigamo-nos num burgo e fomos assediados por meses. Os que não morriam nas batalhas, pereciam de fome e peste. Nossos comandantes tombaram em combate e, para minha surpresa, designaram-me como o capitão dos nossos soldados.
Eu não era nenhum principiante nas artes da guerra, assim, conquistamos algumas fugazes vitórias, mas nada que dirimisse nossa derrota. Tudo estava perdido; para nós, restavam apenas a vergonha e a cova.
No entanto, certa noite, alguém pediu admissão ao castelo. Conduziram o viajante até a tenda do suserano. Da minha barraca, pude avistar o velho violeiro cego. Meus pensamentos foram dominados por questionamentos.
O que ele fazia ali? O violeiro e o suserano não haviam cortado relações, muitos anos atrás? Que tipo de importância ele poderia ter para nossa guerra?
Mas não obtive tais respostas.
Na manhã seguinte, descobrimos que o suserano havia nos abandonado; fugido como um covarde.
O desespero se instalou entre os nossos. Se o próprio interessado nesta guerra havia evacuado, era porque não havia realmente salvação. O moral estava baixo, mas, mesmo assim, ainda agüentamos o assédio às muralhas por mais um dia.
Reuni um grupo de valorosos combatentes e preparamos um plano de fuga. À noite, desertaríamos a cidade, levando conosco todos que pudéssemos. Mandei trazer até mim o violeiro, indagando-o qual a mensagem que portava:
— Não há mensagem. Sou apenas um cantador, meu capitão, vou de vila em vila a trovar.
Só que ele mentia, e isto me doía mais, pois ele dividiu comigo seu pão, mas não dividia algo que poderia nos salvar a vida.
Tentamos realizar nosso projeto, mas fomos interceptados por tropas inimigas. Uma horrível batalha ocorreu na escuridão da noite. Às cegas, amigos cravavam suas espadas em amigos, flechas flamejantes atingiam a todos indiscriminadamente.
Levei um golpe na cabeça e tombei inconsciente.
Eu ouvia música. Desorientado, indaguei:
— Estou morto? Esta é a música dos anjos?
Uma gostosa risada ecoou pelo recinto. Abri os olhos e me encontrava numa cela, cercado por grades de ferro. Na cela ao lado, estava o violeiro, rindo, viola a melodiar.
— Ainda não morreste, capitão, mas, amanhã, nós dois seremos decapitados.
Aquela sentença de morte, vinda de maneira tão abrupta e natural, trouxe-me à mente minha esposa e o bebê que crescia no ventre dela. Tentei chorar, mas os calos no coração não deixaram.
— Que mensagem trazias ao suserano? — repeti a pergunta, agora que não havia por que ocultá-la.
Mas o violeiro respondeu com evasivas.
— Condenaram-me à morte alegando ser eu um espião, que trazia informações dos reinos inimigos ao nosso senhor, e que indiquei o modo como ele poderia fugir ao cerco.
Tal resposta meu bastou, e tudo ficou claro como o dia. As canções do violeiro eram mensagens cifradas, revelando mais do que pareciam.
— E como podes cantar sobre coisas que não viste? — surgiu-me esta questão que, desde o primeiro encontro, estava cravada em mim.
— Nem sempre fui cego, capitão, já vi e estive em muitas batalhas. Foi numa delas que me tiraram a visão e, sem ofício, encontrei amparo nesta viola.
Levantei-me e enfiei a cabeça na pequena janela quadrada. Lá embaixo, o patíbulo para nossa execução estava sendo preparado.
— Fico feliz que, dentre todos que já conheci nesta vida — eu disse —, seja ao teu lado que eu tenha de deixá-la. Tu foste, um dia, o que eu sou; e, ao mesmo tempo, és o que eu poderia me tornar. Somos da mesma têmpera; somos do mesmo mundo.
O cego libertou outra gargalhada.
— E tem certeza, capitão, de que, um dia, um outro contador de história se lembrará de nós, e ambos ainda estaremos vivos, rindo juntos nesta mesma cela. Será mentira, mas será bem contada.