Do outro lado do Lago
Do outro lado do Lago, segundo disseram a Deolindo, naquela região protegida, moram os ricos. Indicadores da sorte do mundo, mudadores da rota da Terra, moram em castelos de papéis murados de decretos. Generosos, muitas vezes se dignam de deixar que se os veja - e que felicidade é vê-los - suas faces bambas, seus queixos duplos, as cinturas timpanosas, nobres cavaleiros desafiando garfos e facas de cozinha e fogosos corcéis Mercedes Benz mil novecentos e quantos tantos.
Vai daí, um dia, Deolindo cismou de vê-los e se arrancou daqui, bateu as asas e apousou na península, porque o diabo sempre é mais feio para quem não o pinta. A roupa, molambo esfiapado nos espinhos do cerrado, a cara suja, o corpo magro, a barriga chata, a capanga com paçoca e rapadura, o passo-preto no ombro, Deolindo se assenta à porta da casa do Rico e espera a hora sagrada de conhecê-lo., E uma, duas, três e nem sabe quantas horas, mas ninguém para, só carros saindo e chegando, só madamas preocupadas, ares nobres e contritos, parece que nem têm corpo, só cabeça e busto, mas cadê que me basta?
- Ei, Rico! Uma paçoquinha?
Mas Rico passa zunindo, Rico volta zunindo, Rico tem vestido bonito, Rico tem pintura no rosto, Rico tem casa bonita, Rico tem preocupações superiores, mas Rico não para, Rico dispara, cadê que isso me basta?
E enquanto melado nos dedos, o passo-preto vai cantando, a manhã cariciosa, o vento circunstante, a hora e os minutos gangorrando, que bom não ter destino, não ter lugar para ir, as pedras têm alma, mas não têm objetividade...
- Mas cadê que isso me basta?
Vai daí, Deolindo desenrola o caniço e vai pescar, o passo-preto no ombro, a capanga a tiracolo, o lazo azulado, calmo, quieto, sem destino e objetividade.
(Brasília, 1974)