(D)efeitos da quarentena
Tieta, como era conhecida na cidade, era o apelido de Antonieta: uma mulher de 40 anos, solteira e que vivia sozinha em sua chácara. As más línguas diziam que ela era tão ruim que seus dois maridos morreram - de desgosto de suas vidas - na convivência com ela. Não criava gatos nem cachorros nem qualquer outro animal porque diziam também - as más línguas - que seu mal humor e sua presença afetava os animais. Quando raramente resolvia passear pela cidade, fosse para fazer as duas atividades que gostava: visitar a bodega do seu amigo Elias ou para comprar ela mesma os mantimentos de seu lar, todos que cruzavam seu caminho olhavam torto para àquela figura vestida de preto da cabeça aos pés.
Diziam alguns que não se podia fixar o olhar para tal senhora pois chamas flamejantes poderiam aparecer e bum! Você estava enfeitiçado! As mulheres, na rua, abaixavam suas cabeças e escondiam suas crianças, os homens embora a olhassem - pois ainda era uma mulher muito bonita - tinham receio do tal “feitiço” ... somente mantinha contato com Elias, que diziam as - más línguas - era enfeitiçado desde jovem pela beleza da... da... bruxa! “Cala-te boca! Que ninguém ouça!” “Deus o livre, coitadinho...” Enquanto isso, ela passava de cabeça erguida ainda cumprimentando a todos. “Ainda por cima é arrogante!” “Olha só o cinismo dessa filha do capiroto!” “Ah! Se fosse na época da fogueira...”
Certo dia, um vírus muito letal chegou à pequena cidade. Ninguém poderia mais passear pela rua nem manter contato com seus vizinhos, parentes, conhecidos ou amigos. Ninguém sabia ao certo do que se tratava, se era uma gripe, uma virose passageira, uma nova peste negra... o que sabiam era que deveriam ficar reclusos, e alguns acreditavam que a existência da bruxa poderia ser o motivo do castigo. Sabendo disso, logo, um jovem médico recém-chegado no lugarejo e conhecedor dos boatos que envolviam tal senhora, ficou curioso para conhecer essa mulher que despertava tanto... mistério e emoções ambivalentes nas pessoas daquele lugar.
Chegando à chácara, ele pode perceber que algo não se encaixava. Segundo rumores, ela vivia em um mausoléu cheio de aranhas e ratos no fim na estrada. Por sorte, andarilhos no caminho lhe indicaram a direção correta... O que ele encontrava era uma mansão belíssima cercada de flores de cada lado da entrada principal, e, muito, muito verde. “Ainda bem que não acredito em fofocas”, pensou. Ao tocar a campainha da mansão, o jovem se depara com a mulher que apesar da idade era a mais bela vista, em toda sua vida, e com um sorriso encantador ela lhe pergunta em que pode ajudá-lo, já o convidando para entrar. Ele, por sua vez, não sabe se está mais maravilhado com àquela mansão ou com àquela presença marcante na sala de estar. Ele então lhe explica o motivo de sua visita com uma pontada de culpa por - sequer por um momento - ter desconfiado.
Após longas horas de conversa à beira da lareira, regadas a licor, ela sorri dizendo: - Acho que tenho algo que irá gostar. - E sai. Não dá tempo nem ele sentir apreensão; ela volta com um sorriso radiante e um frasco pequeno o qual lhe entrega. Ele pergunta do que se trata e ela diz que, em seus anos estudando botânica, naquele recipiente havia um remédio purificador que não iria curar o surto, porém ajudaria na imunidade. - Uma gota só é suficiente. Acredito que deva servir para boa parte das pessoas da vila. - Ele sai então, contente com o frasco na mão e agradecido pela tarde encantadora.
... em seu consultório surgem cada vez mais casos de pessoas infectadas com o tal vírus e ele, sem saber quais procedimentos tomar mais, resolve utilizar o líquido purificador a cada paciente - ainda saudável - que chegar em suas mãos. Com o passar do tempo os casos começam a diminuir, porém um fato curioso acontece: pessoas antes amáveis se tornaram rudes, crianças “obedientes” se tornaram ariscas e o humor do povoado mudou. Até o próprio médico que se considerava corajoso agora vive com medo até de ver sangue! Mas apesar do medo ele resolve enfrentar a tal “bruxa” para tirar satisfações e exigir uma solução imediata... ele bate na porta uma, duas, três vezes, e nada. Toca a campainha, e nada. Já está a ponto de voltar quando ouve uma mulher chamando por seu nome no jardim.
- Me perdoe. Não queria deixá-lo esperando... Aos fins de semana dispenso os empregados e eu mesma cuido dos afazeres. Esse aqui é o meu preferido. - fala ela apontando para as flores - Elas não são lindas? - indaga com um leve sorriso.
- Eu não vim aqui para saber de flores... - diz ele já irritado - venho lhe contar um fato e espero que possa ajudar. Ultimamente tudo no vilarejo está mudado... as pessoas não agem mais como elas mesmas... e acho que a senhora deve saber o porquê... afinal, o que tinha naquele frasco?
- O remédio purificador de que conversamos - fala ela calmamente.
- Mentira! E por que estou sentindo tantas coisas que antes não sentia??? Eu sinto medo de tudo!
- Todo remédio tem seus efeitos colaterais... pensei que o senhor soubesse, doutor.
- E por que não me avisou antes? - diz ele com indignação. Ela simplesmente silencia por um momento e diz:
- Veja só essa roseira. Ela não é linda? - Ele permanece em silêncio. Ela continua. - Eu de fato a amo, mas se encostar nela... - ela perfura seu dedo, fazendo-a sangrar - Ai! Ela me fere.
- O que a senhora quer dizer com isso? - fala ele com as mãos nos olhos para evitar ver o sangue escorrendo.
- O remédio é purificador, mas também revela o que tem no seu íntimo. Vai limpando e purificando e à medida que faz isso revela aquilo que tentamos esconder, aquilo que temos no coração... se você sente medo, não creio que seja tão corajoso quanto pensava. - Afirma ela, enquanto enrola seu dedo furado em um paninho branco retirado do pescoço.
- Há um antídoto para isso? - indaga ele, retirando a mão dos olhos, seguro de que agora pode olhar para ela sem desmaiar.
- A natureza é perfeita e abundante... Você poderia curar seu mal utilizando uma mistura de sangue de dragão, sílfio, um pouco de alho e mel, mas lamento dizer que o segundo item está extinto.
- E como curamos isso?
- Meu jovem, não há cura para sentimentos profundos senão enfrentá-los.