220 - Regresso
Aprendeu cedo a desligar-se. Parava o olhar e deixava de ouvir. Voltava por onde muitas vezes nem sabia, à casa onde se criou. Entrava pela porta do palheiro, chamava o cão e ficava a ver morrer o dia. E o dia despedia-se de modo sempre diferente, espectáculo de cores e sombras, de luz e cinzas, de profundidade. Deus nunca se repetiu em todo o lado onde leu a Sua assinatura! Desta vez deixou parados os dedos no teclado e voltou. Viu-se descalço, calções remendados, o arco e o gancho à espera da corrida, o cão de orelha espetada, a avó a praguejar na cozinha de terra batida, o lume de brasas rubras, o caldo a apurar. Sentou-se à mesa, partiu a broa de milho, soprou a colher meia de sopa e tocou com o olhar todos os lugares onde o pai já não estava, nem a mãe ou os irmãos. A velha ajeitou o lenço, limpou as mãos ao avental de xadrez barato, espantou o gato e desapareceu. Ele soube que a não voltaria a ver tão cedo. Ainda, em vão, se atrasou com as migas, ainda rolou nas mãos a laranja à espera que outros viessem e quando tudo começou a mudar viu o palheiro fazer-se escritório, a mesa da cozinha alindar-se em secretária e a resmunguice da avó, ganhar a voz do chefe que, como sempre, exigia que atarefa, que não mandou em tempo fazer, estivesse pronta. Regressou, por fim, com os gritos que vinham do gabinete. Releu o texto do relatório, acertou a pontuação e quando chegou a sua vez, ele disse: - Que demora, Augusto!