Menino Jorge
O dia era 7 de junho, era uma data que entrara no seu calendário de comemorações. Tratava-se do dia que, depois de um período demasiadamente longo para ele, foi-lhe permitido sentir a vida sem a privação do maior direito de um ser humano. Há um ano que ele vinha exercendo uma atividade infindável, que era reaprender a “regostar” das suas coisas.
Como se estava em um período de não convívio social, por conta de um vírus aí que andava assolando o planeta, não havia a possibilidade de estar acompanhado das pessoas queridas que acompanharam todo esse seu período pregresso. Havia ainda muita dúvida no ar sobre a manutenção de um isolamento para poder enfrentar o risco de contágio em contrapartida a uma certa flexibilização que algumas pessoas andavam se permitindo. Pelo estágio da doença ele e seus familiares e amigos concordavam ainda em manter as restrições orientadas para o distanciamento social.
Então, qualquer referência sobre a data comemorativa se dava por meio de telefonemas e mensagens celulares. E assim houve de falar com alguns e de trocar palavras com outros. Uma amiga, coincidentemente, fazia aniversário naquele dia e pode-se haver uma parabenização de mão dupla. Estava tudo bem e dentro da conformidade possível, no entanto emergia aquele sentimento de falta de um contato humano, nem que fosse visual, uma interação com um ser vivo.
Resignado, já ao cair da noitinha naquele dia, ele teve a ideia de ir até o posto de gasolina perto da sua casa. Ali havia uma loja de conveniências com uma pequena varanda ao lado. Pensou em tomar uma cerveja enquanto fumaria um charuto com a segurança de uma distanciamento de pelo menos 10 metros para qualquer pessoa. Seria, sim, um bom lugar para contemplar reminiscências e para lá se dirigiu.
Estava devidamente instalado, estrategicamente colocado em visão direta para a rua principal na sua absorta missão de observar os poucos veículos que por ali transitavam. Foi quando, num momento em que o brilho de uma luz não identificada se fez ligeiramente mais forte, ele reconheceu a pessoa que dobrava a esquina. O corpo avantajado e o sorriso largo na face não deixavam dúvidas. Trajava uma larga camiseta do U2, bermudas box e um surrado par de tênis com meias esportivas. Na mão esquerda uma sacola onde se notava que devia conter as suas coisas de sempre: livros, impressos com artigos e o indefectível iPad.
Entrou direto pela loja de conveniências e, momentos depois, avançou pela varanda vindo sentar-se ao seu lado.
– E aí, menino Jorge?, ele indagou.
– Rapaz, que surpresa! O que você está fazendo aqui?
– Vim comemorar com você. Achei que você estava precisando.
– Sim, é verdade. Mas como você sabia que eu estava aqui?
– O nosso amigo não falou com você pelo telefone, pelo dia de hoje? Ele me avisou que você estava aqui. Como eu estava perto, resolvi dar uma chegada.
– Poxa, que legal. E o que acontece que parece que você está sempre por perto?
– (rs) Pois é, eu tenho os meus segredos, hehe.
– Muito bom, muito bom mesmo. Há quanto tempo, rapaz. A última vez que nos vimos foi no enterro da minha mãe, já há três anos praticamente.
– Sim, isso mesmo.
– E você? O que faz zanzando por aí? Nem está usando máscara.
– Bem, você deve saber que eu não preciso dessas coisas.
– Verdade. Eu soube que você partiu e já está em outra. Mas, então, o que faz aqui?
– Eu nunca deixei de estar aqui.
– Bem que seus amigos sempre disseram que você eternamente esteve junto o tempo todo e de todos ao mesmo tempo.
– É, eles nunca entenderam isso (rs). Agora, então, mais do que nunca, né, menino Jorge?
– Pô, te agradeço muito essa visita. Fiquei feliz.
Beberam mais algumas cervejas e conversaram sobre o momento atual e as infinitas coisas que compõem as diversas vidas. Da sacola saíram as últimas notícias esportivas possíveis para o momento. O iPad turbinado agora podia prever alguns movimentos sociais e políticos, mas isto ele disse que não podia revelar. Congratularam-se e se despediram. O amigo partiu enquanto ele, preparando-se para voltar à casa, ainda foi fazer algumas compras. Ao retornar à mesa para pegar suas coisas e com aquele regozijo de, afinal, ter estado com um ser vivo, deparou-se com um livro que o amigo deixara, com uma dedicatória:
“Menino Jorge, se cuida. E lembre-se que a história está do seu lado. Alexandre Gontijo.”