SAPATINHOS COR-DE-ROSA
Introito:

A porta do berçário se abre dando passagem à enfermeira que, ao colo, um recém-nascido trazia. Aproximando-se de um berço vago, nele depositou o precioso fardo. Arrumou – com carinho maternal – a minúscula touca, a fralda, os cueiros e se foi.

Junto ao bercinho recentemente ocupado, um par de brilhantes e curiosos ocelos se abriu. -Psiu!... Ei!... Acorda pô! -Ham!... Hum!... O quê foi? - acudira a, também, recém-chegada que questionou:
-O quê você está querendo comigo? - indagou!
-Conversar, ora bolas!... Cheguei às 18h30min e, até agora, não estava tendo com quem bater um papo. Estou numa solidão danada e preciso conversar com alguém para matar o tempo, xará!...
-Eu cheguei há poucos instantes e...
-Sei! Eu sei – retrucou, meio que, entediado, o interlocutor! Eu vi quando a enfermeira chegou trazendo você. Fingi que estava dormindo para que ela se mandasse logo e, assim, pudéssemos – estando a sós, claro – bater um papinho numa boa... “numa nice”, sacou? E, com o firme propósito de não perder tempo, partiu célere para o ataque:
-E aí, colega?... Você é uma mocinha ou um rapazinho?... 
Sou uma mocinha, uai!... Respondeu, com dengosos modos, a menina que – desnecessário dizer – era uma mineirinha da gema!...
-Nossa! Eba, eba!... Deixa eu ver, deixa. Pelo amor de Deus, deixa-me ver o que nos diferencia. E, demonstrando incontida aflição, repete aos gritos: deixa!
-Humpf! Hum, hum, hum! Nã, nãnim, nanão! É melhor nem pensar nisso - está bem?... E, enfezadinha, retrucou: -Mas que sujeitinho atrevido, sô! Onde já se viu tamanha ousadia? Humpf! Cruz credo! Moleque!.. Bobão sem vergonha!... Não vem não, viu?...
 
1ª Parte:

O barulho dos ritmados passos, vindos pelo corredor, são ouvidos. Ruídos na fechadura da porta indicam que ela começava a se abrir e...
-Psssiiiiuuu! Sussurra o menino! Fecha os olhos e faça silêncio! Vamos fingir que estamos dormindo, porque a enfermeira está chegando. O pedido é atendido. O silêncio se faz presente e reina no berçário.

Ato seguinte, a porta se abre totalmente. Um facho de luz, proveniente do corredor, desvirgina a tênue iluminação do berçário emoldurando a silhueta da temporária babá no portal. Já dentro do ambiente, ela se dirige a uma pesada cortina. Com redobrados cuidados para evitar o barulho, abre-a! Diante dela surgem duas caras amassadas contra a espessa vidraça, mostrando dois sorridentes e “bobos marinheiros de primeira viagem”: os mais novos papais dos recém-nascidos. Eles quiseram, e chegaram até a esboçar – em um tom mais elevado – algumas palavras. Todavia, o ar grave e o indicador em riste levado aos lábios (Num gesto característico que imortalizou a classe das guardiãs da saúde.) os obrigaram a se calar. Fechando com esmero a cortina e porta, a enfermeira partiu deixando no recinto os frutos dos partos. A penumbra de outrora para o berçário retorna.

Do outro lado da vidraça, no corredor, os papais se abraçam em confraternização. Até então não se conheciam, nem de elevador. Todavia, os nascimentos dos filhos foram os elos da corrente que os tornaram amigos de eras medievais. Eles - ignorando os avisos de que “é proibido fumar” - acenderam dois havanas fazendo ascenderem às alturas a fedorenta fumaça. Uma nova guardiã da saúde, contudo, os interpela e acaba com a farra. Em silêncio – mas sorrindo baixinho – saem para um boteco em frente à Maternidade onde extravasam as suas alegrias contidas.
 
2ª Parte:
Dentro do berçário – e aproveitando a rara oportunidade – o peralta voltou ao ataque:
-Oi. Psiu!... Eeeiiii! Acorda bebezinha! 
-Hum, hem! Oi!... O que foi menino?... Dá um sossego, vai!...
-Caramba! Já estava aí, dormindo novamente pô? Será que só sabe fazer isso: dormir e ficar chupando esse seu bico idiota? Dissera o trêfego menino!

A má educação – o modo chulo e brusco ao falar – feriram a frágil barreira dos sentimentos da dócil e meiga menininha. E ela chora incontidas lágrimas.
-Buuuuaaaa!... Buuuaaa!... Snif!... Snif... Buuuaaa!... Buuuuaaaa!...
-Oi! Pssiiuuu. Por favor, gatinha, não chore mais não. Fui um grosseirão. Foi mau – valeu? Desculpa-me – tá legal? Não vou e não quero mais magoar você – me perdoa! Vamos ficar numa boa, numa bem legal, vamos? E demonstrando ares de preocupação com o incontido choro da menina, indaga: - Estou perdoado, estou?
- Snif!... Snif. Buuuuaaa, (Soluços)! Está (Snif) bem (Snif, Snif!)... está (Snif!) bem! Está (soluços!) perdoado!...
-Legal... legalíssimo! Beleza pura gatinha!.. Agora, vai!... Deixa-me ver, deixa gata!...
- Ver o quê, seu... assanhadinho de meia tigela? Está pensando que eu sou dessas que andam por aí se oferecendo... se... se... mostrando para todo mundo?
- Não, gatinha! Não é isso! Eu só queria ver se você é uma mocinha mesmo, uai (O menino, também, era mineirinho, estilo “come quieto”)!...
- Nada disso!... Não senhor!... E tem mais: “pode tirar o seu cavalinho da chuva, tá bom?” Aqui não tem nada para ser visto assim... sem mais nem menos – sacou?
- Ah!... Deixa, vai!... Mostra-me, mesmo porque eu nunca vi essa famosa e tão “perseguida diferença” que dizem existir entre nós homens e mulheres. Mostra-me! Por favor, mostra-me! Estou morrendo de curiosidade.
 
EPÍLOGO:

Vencida pelo cansaço, ela entrega os pontos e resolve mostra-se ao menino para que ele pudesse ver a famosa diferença existente entre um menino e uma menina. Resoluta, diz:
- Está bem, está bem! Eu vou lhe mostrar seu bobão sem vergonha. Tarado, duma figa!...
- Oba!... Grita – numa profusão de alegria – o travesso menino!
- Ela, então, docilmente, começa a desnudar-se como se estivesse a ouvir um blues executado por Louis Armstrong. Tem início o tão sonhado “strip-tease”. Ela retira de sobre si uma manta. Em seguida, com a perninha direita, joga para o mesmo lado o cobertozinho que, até então, cobria parte do seu maravilhoso corpinho.
Os olhos do menino mal cabem nos glóbulos oculares. Parecem querer saltar para fora das órbitas – era enorme a sua ansiedade! A baba, impossibilitada de ser contida pelo babadouro, escorria em profusão pelos cantos da minúscula boca formando uma cascata de lascívia. Ele parecia ser (E era – devo dizer!) um predador prestes em abater a sua presa.

O ‘bum, bum, bate cum bum’ que se ouvia, não era o troar dos tambores de um desfile militar. Era, sim, o acelerado coração do menino que, ao bater, imitava o troar dos célebres Canhões de Navarone – tamanha era a sua incontida fúria. Parecia – sintetizando – uma bateria de mísseis antiaéreos, fazendo o seu som espargir-se pelo silente ambiente, destoando-o com o silêncio sonhado.

Todavia, a força da poesia fazia o som do suave blue se sobrepor aos dos tambores, canhões e bateria dos voluptuosos mísseis antiaéreos. E o blue invade o ar enchendo de ternura e sensualidade o tenso ambiente.

Ela, prosseguindo no seu ato de desnudar-se, retira – desta feita – o cueiro e um diáfano lençol: as últimas peças que lhe cobriam. Maliciosamente, tentadora como uma bailarina a bailar a dança do ventre, fita-o nos olhos. A sua postura era a de uma esfinge, cuja figura parecia dizer-lhe: -“Decifra-me ou te devoro!” O seu olhar e sorriso eram mais enigmáticos que os da Gioconda. A sua beleza vem à tona e ela se mostra tão, ou mais, bela que Vênus – a deusa do amor, réplica da Afrodite Grega!

Ele, contudo, não sente a poesia que se esparge pelo ar. Não vê o misterioso olhar que o perscruta. Os seus animalescos pensamentos voam. Os olhos, ávidos, estão a mirarem o berço/palco, local de onde, em breve, veria brotar o diferencial existente entre um menininho e uma menininha – motivo maior da sua obstinada curiosidade.

A música – suave, terna, envolvente e concupiscente – assume o seu papel de proxeneta ao exaltar, ainda mais, os ânimos do tenso ambiente. O suor poreja na testa do menino e cai, em profusão, se misturando à grossa saliva que da sua boca escorria, fazendo aumentar o volume da Niágara salivar.
A menina, em ato contínuo de “grand finale”, levanta a perninha e diz toda fresquinha, toda dengozinha:
-Veja! Não lhe falei – seu boboca – que eu sou uma mocinha? Repara bem, seu tonto/idiota: - Meu Sapatinho é Cor-de-Rosa!
 
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Altamiro Fernandes da Cruz
Enviado por Altamiro Fernandes da Cruz em 27/05/2020
Reeditado em 09/08/2021
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