Estrella Crepuscular
O sol refletia em seu cinto de ouro enquanto caminhava com determinação no salão do Primeiro Ministro. A cada janela que passava, não podia deixar de esgueirar seu olhar para a podridão das ruas, em contraste gritante ao Palácio Real. Ainda assim, mantinha a face queimada pelo sol rude e impenetrável.
O Primeiro Ministro seguia os passos do homem com atenção, enquanto acariciava seu gato, que deitava tranquilamente em seu colo. De suas mãos enrugadas, pendiam anéis com as mais belas jóias, de todos os lugares do mundo. Suas vestes eram cuidadosamente costuradas à mão, com os tecidos mais finos passíveis de serem encontrados. Agora, os homens se encaravam frente a frente.
- Você sabe - começou o Primeiro Ministro - que essa missão é de primazia importância para a nação, certo, Sr. Villanueva?
O pirata deu um meio sorriso, tentando manter-se simpático perante à repugnância que sentia por tal senhor.
- Sim, Vossa Senhoria. Tenho ciência de que sou a única pessoa capaz de acabar com seus pesadelos. - O sorriso alargou-se um pouco mais.
- Ora, poupe-me de suas palavras ácidas. Anos e anos tentando derrubar-me; e quando suas incursões dão errado você prontamente bate a minha porta para oferecer-me seus serviços. Veja, Sr. Villanueva; não é que eu não seja grato a sua bravura de enfrentar esse demônio, mas eu bem sei que não fosse a riquíssima recompensa, você não ousaria adentrar meu Palácio.
Villanueva era o pirata mais temido e mais conhecido de Puerto Tormenta. Suas incursões visavam o saque de navios reais e a distribuição de suas riquezas - roubadas - ao povo maltrapilho que perambulava pelas ruas, sem possibilidade de sustento próprio. Seu navio, Estrella Crepuscular, era o mais rápido e mais bem equipado de todo o Oceano Pacífico. Seu maior orgulho, porém, era sua tripulação. Homens e mulheres que foram libertos da escravidão; e se tornaram perfeitas máquinas mortíferas. Não existia uma alma viva que não sentisse sua espinha arrepiando ao deparar-se com a bandeira negra do Estrella. Era verdade que a recompensa milionária fora o principal motivo que o atraíra para tal caçada, porém tinha em mente um destino nobre para o ouro. Além disso, tirar um pouco desse ouro saqueado da posse do asqueroso Primeiro Ministro já era recompensa suficiente. Villanueva enrugou a testa, retirando uma mecha de seus cabelos negros de sua face, e disse:
- Bem, paremos então com esse teatro. Você me paga um terço do valor agora, e o restante quando eu trouxer-lhe a cabeça da criatura.
O Primeiro Ministro bateu duas palmas e um serviçal apareceu detrás das cortinas, trazendo consigo um enorme saco de tecido vermelho. Jogou-o aos pés do pirata, tremendo. Fez uma reverência ao Primeiro Ministro e saiu da sala, apertando o passo. Villanueva recolheu o saco do chão e espiou dentro. Pela primeira vez desde que entrara no Palácio, sorriu com sinceridade. Lançou um último olhar ao Primeiro Ministro e cuspiu no chão antes de virar-se para sair. Ainda teve tempo de ouvir o Primeiro Ministro advertindo-o:
- Na próxima vez que entrar no meu Palácio, seu pirata imundo, é bom que esteja com a cabeça do Demônio! Do contrário, será a sua que estará aos meus pés.
Três dias e três noites Villanueva passara em Puerto Tormenta negociando, comprando armas, aprimorando seu navio e treinando sua tripulação para a caçada mais perigosa que já empreendera. Na quarta noite, enquanto a cidade dormia e o único som era o alto e ameaçador rugido do mar, o Estrella Crepuscular desatracou do porto, domando a maré alta e as intempéries de Poseidon.
Os primeiros dias de navegação foram tranquilos, todos sentiam-se corajosos e dispostos a encarar o perigo. Na quinta noite em alto mar, entretanto, dois tripulantes sumiram. Villanueva sabia que isso significava que agora o navio estava muito próximo do covil da criatura. Ordenou que a âncora fosse lançada ao mar e aguardou. Os dias que se seguiram após isso foram de grande tormenta para os piratas.
O mar parecia revoltar-se com o Estrella. Ondas cada vez maiores açoitavam seu convés, tomando para si seus barris de mantimentos. O sol era cada vez mais raro, podendo ser visto apenas timidamente por entre espessas nuvens negras que se assomavam no céu. Quase não era possível distinguir o dia da noite, e uma desesperança horrível acometeu aquela tripulação que não mais cantava e não mais sorria. Seus corações pareciam chumbo, assim como o céu. Todos os dias um tripulante diferente desaparecia sem deixar rastros; e todas as tentativas de Villanueva pegar a criatura em seus ataques eram vãs.
Os marujos tinham pavor de ficarem sozinhos, temendo serem a próxima presa do monstro, e andavam sempre em bandos, tremendo e encolhendo-se nos cantos. Quem visse essa cena, jamais imaginaria que aqueles eram os piratas que outrora domavam os mares e assassinavam todos que se interpusessem a eles. O capitão também já demonstrava sinais de desgaste físico e psicológico, uma vez que no décimo dia atracado a comida tornara-se escassa e eles estavam sempre molhados, pois a tempestade não cessara por nem um segundo.
Após treze dias - para a tripulação podia ser o quinto ou milésimo dia, pois há muito não conseguiam mais medir a passagem do tempo - e com a tripulação reduzida a três marujas e o capitão, Villanueva achou que de fato morreria. Seus ossos estavam congelando e uma pneumonia comprimia seus pulmões. Fora a primeira noite, entretanto, que ninguém sumiu. Apesar de toda a dor, uma chama de esperança nasceu nos corações dos navegantes do Estrella Crepuscular.
Na noite seguinte, Villanueva caminhava com dificuldade, segurando-se nas bordas do navio, fazendo sua vigília habitual. De repente, um som baixo mas constante começou a cingir do som da tempestade. O capitão sabia muito bem que havia outro som ali, pois há muitos dias o som da água era a única coisa em seus ouvidos. O pirata apertava os olhos para o mar, tentando discernir de onde vinha tal som, mas as ondas e a chuva atrapalhavam muito sua visão. O som começou a ficar mais claro e muito mais alto. Logo, o barulho das ondas tempestuosas eram apenas um eco baixo; enquanto o navio se enchia da mais bela canção já ouvida por todos os presentes.
Aquela era a voz mais doce de todas, e a música soava como um alento para ouvidos tão maltratados. De repente, uma pequena parte do mar pareceu se acalmar, e ele ficou do azul mais claro já visto. De lá, despontou das profundezas a criatura: seus cabelos eram verde escuro, como as algas. Sua pele tinha um tom amarelo e enrugado que causava repulsa. Sua cauda era de peixe. O conjunto todo era horrendo e causou nojo em Villanueva. O pior, entretanto, eram seus olhos. Dois abismos intocados pela luz ou pela bondade. Até mesmo a bandeira do Estrella parecia clara diante daquela monstruosidade negra.
.A sereia sorria maliciosamente, mostrando dentes pontiagudos e mortais. O pirata desembainhou sua espada devagar, enquanto se aproximava cada vez mais da criatura. Quanto mais ele se aproximava, mais alta sua canção se tornava - o que era muito estranho considerando que ela apenas sorria, e não mexia os lábios. A sereia tocou com suas mãos escamosas na borda do navio, lançando seu corpo para mais perto de Villanueva. Os dois agora estavam a centímetros um do outro, e a canção era tão alta que soava como gritos, gritos de milhões de homens. A sereia apoiou-se na borda do navio e levou as mãos ao rosto do pirata, pronta para dar-lhe um beijo de escuridão eterna; e Villanueva sentia-se engolido pelos seus olhos de buracos negros quando ouviu uma mulher gritar-lhe: “Gloria, não!!!”. A voz parecia muito baixa, e vir de um canto muito afastado, mas foi o necessário para que Gloria Villanueva se lembrasse da monstruosidade que enfrentava. A sereia percebeu o exato segundo em que os olhos de Gloria saíram do abismo e voltaram a enxergar o monstro como o era. Numa voz rouca e inumana, a sereia gritou:
- O quê?? Homem nenhum escapou de meu canto! Homem nenhum escapou de minha ilusão!!
Eis que Gloria brada sua espada no ar, e segurando com força o pescoço da criatura, diz:
- Eu não sou um homem!!
Sua espada entrou dilacerando o peito e coração da sereia. Um sangue negro e fétido escorreu de sua ferida, enquanto ela se debatia e gritava na voz de todos os homens por ela devorados.
Gloria não tinha certeza de como não seria afetada pelo canto da sereia, mas sabia que precisava silenciá-lo. Afinal, ela matava muitos homens que não mereciam tal destino. E os que mereciam, bom, para eles Gloria guardava sua espada.