Entre o Céu e a Terra
Levantei-me de repente no meio da noite quieta, quase fluorescente e silenciosa. Sabia que os meus pais estavam dormindo, mesmo não os vendo. Minha percepção por algum motivo estava ampliada e notava as coisas ao redor sem precisar olhar para elas. A casa, os móveis e o gato também dormiam. Minha cama estava encostada na parede da janela que dava para a rua e olhei para lá. Percebi todas essas coisas num instante, quando me dei conta de que não estava simplesmente despertando de meu sono. O meu espírito deixava o meu corpo, que repousava confortável sobre a cama. Caminhei para fora de casa. Sou uma garota medrosa, mas dessa vez não senti medo.
Não havia movimento na rua. Olhei para o céu e vi alguns clarões e riscos de fogo, muito distantes dali, seguidos por sons estranhos. Depois vinha o silêncio, no meio do qual ouvi alguém correndo. Fiquei curiosa. Cruzando a rua em que eu estava alguma coisa pequena, que não consegui identificar, passou rapidamente para o outro quarteirão. Fui ver o que era. De repente outra coisa parecida passou correndo. Por onde entraram me deparei com os dois seres no chão, brigando, puxando o cabelo um do outro e se estapeando. Eram duas figuras pequenas e roliças, que não passavam da minha cintura. Pareciam duendes. Fiquei ali parada os observando. Ambos ficaram congelados quando perceberam minha presença, um em cima do outro, e viraram a cabeça devagar para mim. Arregalaram os olhos quando me viram. Do meio deles uma moeda reluzente saiu rolando e caiu próximo do meu pé. Abaixei-me para pegá-la. Era linda e dourada. Os homenzinhos, enquanto eu apreciava a beleza da joia, levantaram-se devagar e saíram correndo, juntos, como se a briga não tivesse acontecido. Corri atrás deles, mas eram muito mais rápidos, apesar de serem gordinhos.
Andei naquela mesma direção quando do nada outro homenzinho, mais obeso que os outros, cruzou o meu caminho. Tentou correr de mim também, mas era tão pesado que não conseguia se distanciar. De vez em quando ele olhava para trás, girando a cabeça e o corpo, para ver se tinha me despistado. E se assustava quando me via. Os fogos continuavam a riscar o céu. Os clarões eram menos intensos. Ao passar pelas casas notei que umas eram mais iluminadas e coloridas que as outras. O número das que eram escuras aumentava. Não estava gostando da sensação, mas a curiosidade de saber o que eram aqueles seres, para onde iam e se possuíam mais daquelas moedas lindas falou mais alto. Foi quando me dei conta, com a distração do lugar, de que havia perdido o terceiro homenzinho.
Eu não reconhecia o lugar. Isso era estranho porque eu conhecia o meu bairro muito bem. Quase não enxergava as casas e a rua. Senti minha clarividência ficar mais fraca. Em uma parte totalmente negra vi surgirem dois olhos vermelhos. Senti frio e falta de ar. Tentei me virar, mas não consegui. Permaneci hipnotizada nos olhos rubros da criatura sinistra, que saiu das sombras e revelou a sua forma. Metade homem e metade lobo, peluda, com presas e garras. Soltou rosnados cavernosos iguais de javali e disparou em minha direção, correndo como um animal. Ele era terrivelmente rápido e saltou quando estava perto. Pude sentir seu hálito quente, quando subitamente surgiu cortando o céu, como um raio, um jovem que atingiu, com um poderoso golpe, o rosto da criatura que deslizou pelo chão desacordada para longe dali.
O jovem ficou ali parado em posição de luta e olhava em volta para ver se apareciam outras ameaças. Seus cabelos lisos e sua pele eram brancos e seus olhos eram de um azul cintilante. Depois baixou a guarda e virou-se para mim.
– A moeda que você pegou – disse-me estendendo o braço direito com a palma da mão aberta. Era difícil desfazer-se dela, mas não tinha como dizer não, especialmente depois do que presenciei. Ao entrega-la, ele esfregou com os dedos a moeda que transformou-se em cinzas e me advertiu:
– Isso é ouro de tolo, cuidado com isso.
– “Ouro de tolo”? – balbuciei entre dentes.
– É o mesmo que dizer que nem tudo que reluz é ouro. Qual o seu nome completo?
Esforcei-me muito, mas consegui lembrar apenas do meu primeiro nome, Clarice.
– Não saia daqui – disse-me o jovem.
Depois olhou para cima e sumiu como um raio cortando o céu, ressurgindo logo em seguida da mesma forma. Depois me estendeu novamente a mão e fez sinal com a cabeça para que eu pegasse o que tinha nela. Era uma pedrinha brilhante parecida com uma brasa incandescente.
– Coma! – ordenou fazendo sinal com a cabeça.
Peguei a pedrinha e ao tocá-la senti um calor muito bom invadir o meu corpo. Deu mesmo vontade de comê-la e foi o que fiz. A sensação foi maravilhosa.
– Consegue lembrar-se do nome agora? – insistiu.
– Sim! – respondi.
– Excelente! – comemorou ele – Escuta-me, você ficou muito tempo aqui e precisa voltar para a sua família. Vamos que já é quase dia.
– E por que você não me leva pra casa? – perguntei.
– Isso não adiantaria mais, precisamos ir a outro lugar rápido – disse puxando-me pelos braços.
– E qual é o seu nome?
– Laylah.
– Laylah – repeti sussurrando e admirando a sua beleza.
Algum tempo depois chegamos em algum tipo de santuário, envolto por um grande feixe de luz que tocava o topo dos céus, pelo qual subiam e desciam seres semelhantes à Laylah. Ele segurou a minha mão para entrarmos no lugar. No portão principal havia um homem muito alto, vestindo uma roupa diferente que ficou me olhando de canto de olho, desconfiado.
– Vem! Disse-me Laylah apertando o passo.
Depois atravessamos alguns corredores até chegar a um amontoado daquelas pedras brilhantes que ele havia me dado para comer, das quais saíam chamas coloridas.
– Toque as chamas Clarice e volte para casa.
– Mas... – disse com a voz trêmula.
– Vamos Clarice! Você precisa voltar para a sua família! – interrompeu-me ele preocupado.
Então toquei as chamas e senti meu corpo formigar. Olhei para a minha mão e vi que ficava translúcida.
Depois olhei para Laylah e o abracei.
– Adeus e muito obrigada!
– A Deus – despediu-se sorrindo.
E voltei para casa.