Mandela e um fantasma em Soweto

Jones era assombrado. Não sabia bem por qual tipo de espírito, se bom ou se mau, certo é que a maldita voz sempre aparecia sussurrando em seu ouvido. Os espíritas, se o tivessem conhecido, talvez diriam que ele era obsidiado.

Vivia um inferno. E o pior é que a voz se comportava como uma conselheira, sempre com frases de efeito que o levavam a refletir sobre o que estava acontecendo e as vezes sobre a vida que levava.

Era 1988. Ao acordar, na imensa favela que vivia em Soweto, na África do Sul, a voz já se apresentava: “Nenhum sol vai brilhar no seu dia hoje. A lua bem amarela, não vai aparecer para jogar.”

-Maldição, tenho que ir para aquela mina!, pensava ele, logo cedo.

Trabalhava em uma mina de carvão. Odiava o que fazia, ganhava pouco, não tinha condições mínimas de trabalho, mas era dali que tirava o seu sustento e de seus familiares. Batia seu ponto e Makenda seu chefe, já começava os tradicionais berros com os quais conduzia a equipe:

-Vamoooosss, sem preguiça cambada de idiotas!, dizia ele.

“Toda vez que ouço o estalar do chicote, meu sangue corre frio.”, dizia a voz.

Dessa vez você tem razão, respondia ele mentalmente.

Depois de um dia cansativo de trabalho, esperava o ônibus que o levaria de volta. Sujo e cansado, pensamentos confusos rondavam sua cabeça, mas a voz era inconfundível:

“Abra seus olhos e olhe bem. Você está satisfeito com a vida que está vivendo?”

As vezes a sinceridade dela chegava a doer. No retorno pra casa, entrando em Soweto, via a polícia dando dura nos jovens da vizinhança. Descendo do ônibus encontrou Steve, que havia sido preso injustamente há cerca de 1 mês, e acabara de ser liberado.

-Foram dias duros na cadeia, mas eu resisti., disse ele.

“É meu amigo, estamos na rua novamente. Eles dizem que estamos livres mais uma vez”, arrematava a assombração.

Como a voz poderia ser tão sensata? Como sempre tinha as palavras certas, para o momento certo?Não conseguia compreender.

Chegando em casa, Elizabeth , sua esposa, era só reclamação.

-Não temos comida o suficiente, as crianças estão sem material escolar e essa casa caindo aos pedaços. Até quando vamos viver assim?, questionava ela.

“Não chore mulher, tudo vai dar certo”. Sentiu vontade de mandar a voz se calar, mas as palavras lhe trouxeram alento. Abraçou a companheira e as repetiu para ela, que devolveu-lhe o abraço ainda mais apertado, sinalizando que haviam surtido efeito.

Na TV, via notícias de que havia uma pressão internacional para a libertação de Nelson Mandela e de seus companheiros presos políticos. Diziam que havia rumores de que, nos bastidores, conversas aconteciam entre eles e o governo.

“Até que os ignóbeis e infelizes regimes que mantém nossos irmãos oprimidos, em Angola, África do Sul e no Moçambique, sejam destruídos, pra sempre banidos, haverá guerra!”, disse a voz que a essa altura já havia se tornado uma grande conselheira.

As manifestações populares cresciam e a polícia aumentava a repressão. O medo era geral.

Na mina, o trabalho só aumentava e as condições ficavam cada vez piores. Jones estava esgotado. Sentia vontade de largar tudo, se mudar para o interior, criar seus filhos no campo, como faziam seus ancestrais. A vida em Joanesburgo já não lhe seduzia mais.

Mandela havia sido transferido para a prisão de Victor Verster, agrícola e de segurança mínima. Vivia em uma casa com o carcereiro e um cozinheiro, e as negociações com o partido do presidente avançavam. A libertação do líder estava próxima, e com ela a esperança do fim do apartheid, da realização de eleições democráticas e de dias melhores.

“Todo homem tem o direito de decidir o próprio destino”, dizia a misteriosa voz.

Era fevereiro de 1990 e a libertação de Mandela aconteceria no dia 11, um domingo.

No dia marcado, Jones não acreditou quando viu pela TV o líder e sua esposa de mãos dadas. Ele estava livre. O povo cantava e vibrava nas ruas.

“Por que você não ajuda a cantar, essa canção de liberdade?”, aconselhava o amigo invisível.

Jones foi pra rua com sua esposa e as crianças. O êxtase era total entre o povo negro da África do Sul.

Será que viveremos dias melhores?, perguntou Elizabeth.

Simultaneamente, Jones e a voz responderam: “O tempo irá dizer!”

Sorrindo e olhando a multidão festiva, abraçou a esposa que tanto amava.

Obs: Todas as frases da voz misteriosa foram retiradas de canções do incomparável rei do reggae, Bob Marley.

Bruno Dias dos Santos
Enviado por Bruno Dias dos Santos em 02/05/2020
Reeditado em 03/05/2020
Código do texto: T6935366
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