O Dr. COM ORELHAS DE BURRO
O Dr. COM ORELHAS DE BURRO
Corria fama de ser bom pintor e melhor retratista. Na verdade, Jerónimo dos Pincéis era um homem dotado de traço fácil, que desde menino o haveria de ocupar uma vida inteira. Quando criança, na falta de um lápis e papel, desenhava no chão, com a ajuda de um pauzinho feito lápis. Foi crescendo e desenvolvendo seu talento cada vez mais, tornando-se um prestigiado e respeitado pintor. Inicialmente, fazia exposições de rua e assim foi trilhando com dureza a sua afirmação de artista, subindo degrau a degrau toda a escala possível e que refreou por falta de ambição. Ainda assim, atingiu patamar de respeito, que falando-se de pintura, o Jerónimo dos Pincéis era presença constante. Figura controversa, com verdadeira alma de artista, de Jerónimo contam-se muitas coisas, entre elas a de uma senhora que mandou fazer um quadro e no final só queria pagar metade do preço.
- Ai sim. Só quer pagar metade, perguntou Jerónimo.
- Sim.
Jerónimo era um homem tranquilo, calmo, que sabia encontrar sempre saída para as dificuldades e agora não foi diferente. Bateu com o quadro no joelho tendo-o partido a meio.
- Tome lá metade.
O Dr. Tenreiro, um médico já entradote na idade, sabendo das qualidades de Jerónimo no retrato, um dia dirigiu-se ao atelier de pintura e pediu para Jerónimo o retratar a partir de uma foto, pois a sua vida não lhe deixava tempo disponível para se expor.
Jerónimo, normalmente retratava reproduzindo a partir de fotos e fazia-o com excelente qualidade. Era habitual colocar na vitrina de uma loja durante duas a três semanas e às vezes um mês, um retrato que ele achasse lhe tivesse ficado excelente, tal como o fazem os estúdios de fotografia, que expõem as fotos mais “bonitas”.
O Dr. Tenreiro não tinha dúvidas acerca da qualidade do pintor, e que essas mesmas exposições lhe davam absoluta confiança. Era muito exigente e queria, dizia ele, morrer e deixar aos netos uma cópia fiel e valiosa, em quadro a óleo, da sua pessoa.
Depois de conversa introdutória havida entre eles, Jerónimo disse que no mínimo demoraria três meses, porque estava assoberbado de trabalho com pintura de retratos de padres, fundadores de uma ordem e que as comissões fabriqueiras os queriam para a inauguração e abertura do salão nobre do mosteiro da Abadia, ao que o Dr. concordou, ressalvando apenas que o queria para o seu aniversário, que ocorreria dentro de seis meses. Contou que faria setenta anos e que pretendia fazer uma grande festa na companhia de todos os familiares e para surpresa, pretendia apresentar o quadro para o neto mais novo o descerrar.
Respeitado o prazo inicial, o Dr. Tenreiro passou pelo atelier para ver se já estava pronto, ao que Jerónimo disse estarem alguns pormenores ainda por melhorar, tais como: nariz, mãos e dar um pouco mais de brilho aos olhos. O Dr. mal escondia a satisfação pelo retrato e ao chegar a casa disse à mulher que se confirmava toda a qualidade de retratista do Jerónimo. Na verdade, dizia ele: o retrato ainda estava melhor que a foto, com mais vida e cores mais vibrantes.
Duas semanas depois, o Dr. telefonou ao pintor a perguntar se já o podia ir buscar, tendo recebido de resposta que já concluído desde a semana passada.
Quando o foi buscar, o Dr. não sabia o preço a pagar, pois foi um pormenor que não foi abordado em tempo certo. Jerónimo era um homem com sensibilidade social e sabia distinguir o pobre do rico. Deste modo levou mais caro do que levaria a uma pessoa de menores recursos, mas não tanto que levasse o Dr. Tenreiro a não querer o quadro, argumentando que não estava nada parecido com ele. Jerónimo, em face desta argumentação do Dr., apenas disse:
- Está bem Sr. Dr., se acha que não está parecido consigo, deixe-o ficar. Eu fiz o que sabia. Dei tudo de mim.
Assim foi. O Dr. Tenreiro acabaria por não levar o quadro em razão do preço pedido, em que o seu cinismo falou mais alto e subestimou toda a qualidade expressa do artista, que ele mesmo, no seu intimo reconhecia.
Despediram-se, cumprimentando-se com a cordialidade que só um artista de raiz como Jerónimo o faria, sem qualquer recurso a discussão e o Dr. lá foi sem o quadro, mas com o dinheiro no bolso.
Ainda o Dr. não teria chegado a casa, já Jerónimo lhe havia pintado umas orelhas de burro no quadro, deixou secar e foi-o colocar na vitrina onde habitualmente fazia as suas exposições.
As pessoas passavam e diziam: Olha o Dr. Tenreiro com orelhas de burro.
Moral da historia: A arte tem de ser paga pelo seu justo valor e não há dinheiro que algum dia venha a apagar da memória, que o Dr. não tinha mesmo orelhas de burro. Rsrrsrsrs.