marcelina

Tinham acabado de passar pelo caixa. Era um luxo duas garrafas grandes de refrigerante para um fim de semana. E ainda havia a chance de que sobrasse um tanto para a semana. Cada vez com menos gás. Não entendia como as bolhinhas fugiam tão fácil, mesmo com a tampa fechada. Espertas. Imaginava se ficavam todas juntinhas perto da tampa, como um gato inquieto atrás da porta, esperando a fresta.

A cachaça de seu pai não tinha bolhas. Mas exalava forte, quase pedia máscara. Por vezes, pensava em deixar a garrafa aberta, a ver se evaporava inteira. Não gostava de seu pai sempre com aqueles olhos vidrados, o andar cambaleante. Mas tinha medo. Vai que ele descobrisse.

Agora sentia alívio. E alguma coisa que acreditava fosse prima da felicidade. Não sabia em que grau. Sabia que era bom andar se equilibrando sobre os canos do estacionamento, com seu pai um pouco à frente, sacolas de guaraná nas mãos. Não via seus olhos. E nem ligava, naquela hora, para os sutis desvios de rota que o andar dele sofria. Às vezes para um lado, às vezes para outro, às vezes repetido. Assim era até divertido.

Sentia alívio toda vez que transpunha barreiras. Toda vez que pulava um cavalete, pensava. Uma vez vira uma corrida na TV. Os homens tinham que pular vários seguidos cavaletes enquanto corriam. Às vezes conseguiam, noutras derrubavam, tropeçavam, caíam. Era mais ou menos assim que se sentia.

O caixa do supermercado era um cavalete. Tinha medo que a moça não gostasse dos olhos vidrados ou do vapor de cachaça do pai. Tinha medo que ele se exaltasse. Que os refrigerantes não pudessem vir. Sentia falta de ar. Um frio na barriga, um nó na garganta. Um desalento.

A entrada do supermercado grande era um cavalete. O velhinho simpático que ficava ali, atrás de um pedestal, tomando conta da vida como um padre, não era simpático. Não com ela. Seus olhos se transformavam, seu cenho franzia. Sua cara fechava.

Do alto da escadinha de seus nove anos, sabia que havia algo errado nisso. Intrigava-lhe a causa. Não podia ser seu cabelo, bem menos liso que outros. Nem sua pele escura. Nem sua roupa rota, lavada na véspera, cheirosa de sabão. Não podia ser nada disso, porque nada disso tinha importância.

Talvez fossem os olhos vidrados do pai. Talvez porque seu caminhar fugisse da linha. Porque ele evaporasse cachaça dos poros. Ou porque, por isso, o velhinho pensasse que fossem querer levar mais que refrigerantes. Ou que fossem querer não pagar.

Fosse o que fosse, a transformação da cara do velhinho também dava-lhe falta de ar. O frio na barriga. Um aperto no peito. Seu corpo sofria. Sonhava com o dia em que os cavaletes acabassem. Mas às vezes achava que ia mesmo era ter que treinar bastante, para ficar boa em pular cavaletes, como os melhores corredores que vira na televisão.

Ficava mais à vontade no ônibus. Preferia roletas a cavaletes. Gostava de ver a porta abrir sozinha. Subia os degraus como quem fazia algo importante. Pena que não tinha lugar para sentar. Era muito bom andar de ônibus sentada. Era o passeio. De pé, menos: sentia-se pequena, perdida no bolo de gente, cheirando costas e peitos vespertinos.

Era curta a caminhada do ponto em que desciam até a casa. Mas o sol das sete horas do horário de verão ardia. Se seu cabelo crespo e volumoso ao menos protegesse... Mas não. Parecia que esquentava ainda mais.

Fiona esperava na porta. Era só Fiona que esperava na porta. Às vezes. Magra, nariz afilado, pelo curto, costelinhas à mostra. Achava que Fiona era como ela. Parecia às vezes desalentada, ficava de língua de fora, respirava rápido. Noutras brincava, saltava, rodopiava, como se fosse possível ser feliz. Não sabia direito quais eram os cavaletes da Fiona.

Só Fiona às vezes esperava na porta. A mãe, não. Quase já não se lembrava mais de seu rosto. As feições iam-lhe sumindo, a imagem cada vez mais esfumada, desfocada. Fazia força para fixá-la, mas cada vez dava menos certo. Transpor o esquecimento era um cavalete, dos altos.

Não entendia que sentia abandono. Não sabia que o abandono era aquilo, e que ele dava medo. Não entendia que o medo, no corpo, era falta de ar, frio na barriga, nó na garganta.

A mãe tinha ido embora quando ela tinha dois anos. Não se lembrava do dia. Não se lembrava bem das coisas dessa idade. Não sabia ao certo o que tinha ocorrido. A vó só dizia que a mãe não tinha juízo, que só pensava em homem. O pai não falava. Sua expressão era a pinga, os olhos vidrados, o andar desviante. Nem sabia mais se ele tinha existido antes da cachaça.

Desde então, quando passara a frequentar a escola matinal, depois da aula ia para a casa da avó. Almoçava, ajudava-a com a louça craquelada, meio encardida do tempo. Fazia a lição, brincava um pouco, até o pai chegar. Depois o ônibus, às vezes o mercado, a casa, a Fiona, a jantinha da marmita da casa da vó. No final de semana, quem sabe um refrigerante. Nove anos, e já a monotonia. Uma espécie de brincar de tédio.

Mas sempre a ausência. E a presença. Assim também naquela noite. Mesmo sabendo que era sexta-feira, que amanhã era o fim de semana, e que tinha dois guaranás grandes na geladeira.

A ausência da mãe parecia sempre passear pela casa estreita, curta. Não entendia como algo que não era podia ser tanto, tão forte. Não sabia o poder do vazio. Tinha saudade da mãe que mal lembrava. Sentia falta da mãe que desconhecia. Era dentro do vazio que circulava o frio que sentia na barriga.

E a presença. A presença do pai que não era, que parecia um fantasma, com seus olhos vermelhos, brilhantes, lacrimosos, perdidos. Seu silêncio vidrado. Estranhava-lhe como alguém presente podia ser tão pouco, tão baço, tão líquido e volátil.

Não sabia, mas aprendia contradições.

O pai tinha guardado os guaranás, catado a garrafa de cachaça e o copinho, e já estava sentado no sofá rasgado, com a TV ligada. Olhava para a TV, mas não que a visse. Dava goles no copinho como se não houvesse outra possibilidade, nenhuma alternativa. Talvez não houvesse.

Se não fosse a Fiona... Estaria sozinha. Mas estava. Coitada da Fiona...

Teve uma ideia estranha: sair dali. Sair daquele espaço estreito e curto, das paredes de pintura manchada e velha, do telhado desforrado. Sair do vazio cheio de ausência e tão falto de presença. Sair...

Mas era noite. Sair para a noite seria um cavalete? Certo que sim, porque era escuro e desconhecido. Mas não era justamente isso que tinha que fazer: treinar para ficar boa em pular cavaletes? Além do mais, era bem provável que o escuro e desconhecido fosse melhor, menos vazio. Que nele encontrasse presenças menos cambaleantes e ausências menos ostensivas.

De uma coisa tinha certeza: o pai não perceberia tão cedo. Só se ele eventualmente quisesse alguma coisa enquanto ainda conseguisse pedir, enquanto ainda lhe saíssem da boca palavras, não grunhidos. Porque, depois dos grunhidos, ele já não esperava resposta: desfalecia. Conhecia bem o procedimento.

Abriu a porta. Fiona saiu na frente e parou. Ela adorava fazer isso. Ou talvez também tivesse medo do escuro. Ela também saiu. Passar a porta, sozinha, daquele jeito, para a noite, foi mais do que subir no ônibus e diferente de transpor o caixa. Mas também sentiu alívio. Um alívio diferente. Uma desopressão. Embora ela não soubesse que sofria de abandono, que sentia opressão, que a ausência era ostensiva... Que aprendia contradições.

Naquela hora, não havia por ali ninguém na rua. As casas simples, muitas habitadas inacabadas, espaçadas por terrenos baldios e mato, estavam escuras, poucas com luzes fracas à frente. Mas, na verdade, nada era tão escuro assim. Além das luzes dos postes, os olhos acendiam o mundo aos poucos. Os olhos iam aprendendo a acender o mundo na escuridão. Andar no escuro era mais fácil do que estacar no claro. Não sabia que estacar e estancar eram tão próximos.

Depois de andar um tanto bom, sem saber que era assim, questões começaram a atacá-la. Iria até onde, até quando? Quanto andaria, enfim? Deixaria que Fiona decidisse, já que ela ia sempre à frente? E se se cansasse e não conseguisse voltar? Enfim, pretendia voltar?

Nesse instante, do nada apareceu um gato preto. Veio roçar-lhe a perna. Deu a volta, rabo eriçado. Sem rodeios, sem licença. Como se acarinhar quem aparecesse fosse necessário, natural. Como se carinho fosse necessário, natural. Como se não existissem cavaletes, caixas, velhinhos em pedestais. Cachaças, cambaleios, ausências...

Fiona estacou, indignada. Tinha cara de surpresa, a boca meio aberta, numa expressão de estupefação diante da audácia alheia. Como se pedisse que alguém a segurasse para não atacar o intruso. Embora de forma alguma pretendesse fazê-lo: conhecia bem unhas de gato de outras pouco felizes experiências. Mas tinha que fazer figura. Até Fiona ocupava-se de sua imagem.

Passou a mão no gato. Ele se eriçou mais, deu meia volta e repetiu o entorno. O rabo tremeu. Mostrou que gostava. Que carinho era necessário, natural. Que a felicidade tinha muitas primas, bolhinhas eram mesmo espertas, passear de ônibus era bom.

Não sabia que aquele felino preto lhe ensinava, mas aprendia. A simplicidade, o valor do roçar, o carinho da preguiça, a preguiça do carinho... Que era possível ser feliz, mesmo infeliz, preto, de rua... Com abandono, ausência, presença demais... Sem forro nem mãe.

Guaranás eram mesmo doces e bons. Cachaças podiam evaporar inteiras. Os olhos acendiam o escuro aos poucos.

Resolveu voltar dali. Deu meia volta. Fiona percebeu depois, retornou e retomou a frente. O gato seguiu-as pouco, como se tivesse cumprido a missão.

Ainda não sabia, mas tinha tomado uma decisão. Uma decisão sobre sua vida. A decisão de voltar do escuro e aceitar. Aceitar as luzes baças, as paredes manchadas, o doce dos guaranás eventuais, os vapores, as presenças e as ausências. Aceitar, mas não se imobilizar.

Aceitar para seguir e mudar. Estacar na birra era estancar a vida.

Já tinha aprendido muito com as bolhinhas, os corredores de cavalete, os gatos pretos, a Fiona. Até com seu pai de olhos vidrados e sua mãe desaparecente.

Embora ainda não soubesse, já tinha achado o alento no escuro.